O Invocador Sagrado - Capítulo 18
O som da água criou a sinfonia para aquela luta.
Roan estava cara a cara com o mascarado, as esferas negras no lugar dos olhos arrepiaram seus nervos.
Andavam em círculos, trocavam análises rápidas, cada um planejando o próximo passo.
As pancadas e batidas de fundo pareciam mudas se comparadas à tensão. O ar denso transbordava uma aura de suspeita e precaução.
— Pegue mais leve, Lark — disse o homem azul. — Não precisa morder, só riscar.
“Huh…? Ele deu uma ordem para quem?”, pensou e por segurança deu uma olhadela ao redor
Esse foi o maior erro, deixar de olhar do oponente num momento perigoso. Quando virou o rosto para frente, um jato pressurizado voou em sua direção e forçou os instintos ao máximo.
Desviou virando a cabeça para o lado, um pequeno corte riscou sua bochecha e o restante do ataque partiu uma pedra sólida em pedaços.
A pressão de Roan caiu só de imaginar o efeito daquela força em si. Respirou fundo e bateu a ponta do cajado contra o chão para se recompor, era sua vez de revidar.
— Oh, impressionante… — admirou o inimigo.
Uma pena que não haveria trégua. O mago girou o bastão por cima da máscara e rodopiou pela palma, ao mesmo tempo que fazia um jogo de pés.
Roan gesticulou os dedos e girou o pulso. Esferas negras se formaram à sua volta e, com o apontar de um dedo, foram disparadas em rápida sucessão.
O efeito gravitacional era tão poderoso que o choque das esferas distorcia o espaço, até baterem contra uma superfície dura.
Aquele homem tinha levantado uma parede de gelo sólida, onde os últimos disparos sequer tiraram uma lasca.
O pior de tudo era ver a superfície gelada se deformar em espinhos pontiagudos, que em seguida foram atirados para todos os lados.
O invocador conjurou outra magia ao girar o cajado para baixo, uma faixa de energia negra envolveu sua pele e repeliu a onda de espinhos.
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Aviso
A mana atual está abaixo de 50%
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“50%?! Droga, Ravi, essa seria uma boa hora pra aparecer!”
— O-hó! Bem impressionante! — O mago azulado deu um pulinho. — É a primeira vez que eu vejo um adepto de magia negra tão eficiente, mesmo que só use apenas feitiços de primeiro círculo… Perdão perguntar, mas você seria da frota de Aprendizes Sombrios?
— Talvez eu seja, o que que tem…? — desconversou, tentando arranjar tempo.
— Ora, se for isso, receio que só seja mais um motivo para te matar…
A garganta de Roan secou; tinha acabado de cavar sua cova! Em uma das poucas vezes na vida, veio o arrependimento de ser viciado em mentir.
O sujeito fincou o cajado no chão, gotículas translúcidas pairaram no espaço e se acumularam no entorno da ponta.
Então, o vento congelou, flocos de neve se cristalizaram e uma pessoa paralisou atrás dele.
Era uma estátua de manto negro e aparência juvenil, que tinha acabado de cair naquela armadilha gélida.
— Sabia que é covardia atacar pelas costas, rapazinho? — Virou-se, observando o rosto abalado de Ravi. — Agora, vou terminar com…
— Raposo, agora!
Uma raposa esverdeada saltou das sombras, as garras deslizaram na direção do inimigo e uma mordida nas pernas o impediu de se mexer.
Roan uniu as mãos e tocou o piso, dois pilares de luz surgiram, o ritmo cardíaco acelerou ao limite.
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Aviso
A mana atual está abaixo de 10%
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— Jade, imobilize os braços! Geno, acerte-o na cabeça!
A serpente e o golem de madeira saíram dos pilares numa velocidade absurda e atravessaram a sala rapidamente.
O mago conjurou um jato d’água na direção dos dois, porém o invocador repeliu com uma série de Balas Sombrias que empurraram o ataque de volta.
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Aviso
A mana atual está abaixo de 5%
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— Vão, vão!
Jade serpenteou pelo corpo do companheiro de madeira e adquiriu altura para dar o bote no oponente, enrolando seus dois pulsos como um algema viva.
Geno acelerou o passo, desembainhou a espada e deu um altíssimo salto. A arma desceu em um corte limpo para baixo e fez uma pancada no meio da testa.
Crack.
Uma rachadura dividiu a máscara em dois e a espatifou. Os fragmentos caíram devagar, a face foi oculta por debaixo de uma franja de cabelo branco.
— Isso! — Roan levantou as mãos para o alto e arfou, seu pulmão gritou num surto de vitória.
Entretanto, o ar voltou a gelar. A voz de Roan desapareceu. A serpente deixou de apertar, os dentes da raposa congelaram e as articulações de madeira rangeram.
Foi assim que se livrou das amarras e dos empecilhos que barravam o caminho.
— Bem incrível, cara… Ah, Lark, já pode soltar essa mulher.
Pela ponta do olho, o invocador viu o corpo de sua amiga deslizar ao lado, de barriga para cima e olhos fechados.
Arranhões menores montavam uma ponte vermelha nas costas, enquanto o machado estava com o fio completamente lascado.
— Sabe, eu realmente não sei o que fazer contigo — continuou o mago, com uma das mãos no queixo. — Hum… o que será…
— Ei, ei! Foi um engano, não é o que está pensando!
— Um engano…? — Deu de ombros. — Como um engano? Eu não sou cego.
— Nã-não, a gente só estava de passagem! O seu tigre acabou nos atacando e…
— Ah, deixe dessa bobagem! Além do mais…
Uma pressão esquisita emanou dele, proporcionando uma tontura inigualável a Roan. Suava de medo, cada partícula de seu ser tremia, a paranoia ganhava uma forma de um demônio na realidade.
Desistiu de continuar vendo, protegeu a face com as mãos, escondeu o próprio semblante amedrontado por baixo de uma defesa fraca.
— Um invocador! — E assim toda a pressão desapareceu.
O mago azul tinha enrolado o braço por cima dos ombros de Roan, quase tão amistoso quanto um amigo íntimo.
O gelo que congelava as invocações derreteu, assim como a estátua viva de Ravi, que logo voltou a se mover.
— Você nem imagina como eu esperei por isso! — continuou, apertando o pescoço dele. — Já perdi a conta, talvez foram 10 anos só esperando pra ver alguém como eu! Até que ele de repente cai no meu colo assim!
Lark, o tigre azul, miou e se sentou, abanando o rabo em concordância.
O invocador deu tapinhas no ombro do outro, com mais força conforme sentia o fôlego desaparecer.
Quando foi solto, despencou solo e arfou. Então levantou a cabeça e analisou aquela face amigável; o sorriso largo que ia de orelha a orelha só podia indicar um mau sinal para sua parte.
— Você é… um invocador?
— Em carne e osso! Ca-ham, melhor dizendo, carne, osso e água. Sou um invocador de água.
— Então quem diabos é o demônio da névoa? — perguntou Ravi, torcendo a capa encharcada.
— Sou eu também, em partes… — O invocador de água fez um aceno. — Digamos, esse lugar é para ser supervisionado e ninguém pode vir aqui. Eu expulso as pessoas, mas nunca as mato nem as rapto, só espanto. Às vezes tem que ser na base da força, como aquele elfo de cabelo preto… Urgh. — Largou o bastão, que flutuou sozinho. — Agora, vamos dar uma ajuda na sua amiga, essas feridas demoram para curar sozinhas.
Uma porção de vapor se reuniu na ponta dos dedos e se enrolou em aros brancos. Um brilho circulou pelos aros e conectou todos em uma única linha, que por fim se estenderam e envolveram o corpo de Cassandra.
Roan assistiu ao espetáculo vibrante e seus lábios se torceram quando notou as feridas rapidamente se fecharem.
Tocou a corrente de vapor, o calor trouxe uma memória de uma onda de vento quente, que parecia puxar a fadiga para longe.
Quando a sensação se foi, a mulher deitada à sua frente gemeu de reclamação. Talvez fosse previsível, mas ela estava adormecida num sono profundo após se ferir tanto e agora seu adormecer de princesa tinha sido interrompido.
O homem a segurou pelos braços antes que tentasse qualquer coisa extrema, e como era de se esperar, a fúria incomum de uma anã loirinha era quase imparável.
— Cadê o bicho? — gritou, arrastando Roan com sua própria força. — Eu vou matar, esfolar e fazer de xale!
— Cass, relaxa!
— Relaxar…? O inimigo tá ali de pé e tu tá me segurando, arrombado?! — Girou o pescoço e trincou os dentes, soltando baforadas de ar quente pelo nariz. — Por que esse desgraçado tá parado…? Ele tá me provocando…?
— Ele não está, Cass! — Um puxão praticamente colocou a cabeça da amiga no lugar. — Ele é um amigo, um invocador que nem eu!
— Issae — respondeu o mago, mirando os dedos como duas pistolas na direção do casal. — Sou um cara legal, não sou um demônio ou coisa do tipo… Olhe, até Lark está sendo gentil!
O tigre azul estava em um canto da sala lambuzando as patas. Porém, a reação da bomba relógio que o invocador segurava nos braços era sempre explosiva, a dor nos seus calcanhares para tentar evitar que fugisse era mais do que prova.
— Eu vou matar esse gato Smurf!
O rugido ecoou pela gruta, tão assustador quanto o rosnado de um leão, inclusive assustando o pobre felino para detrás de uma pedra.
— Esperem! — gritou Ravi, batendo um dos pés no chão. — Por favor, senhorita Cassandra, tenha calma! É mais importante descobrirmos algumas coisas… como por exemplo o motivo dele estar aqui e o tanto de armadilhas no caminho. — O rapaz virou o rosto na direção do sujeito azulado. — Se é que você pode responder…
— Ah, mas é claro! — Os acenos rápidos de cabeça indicavam plena concordância no assunto. — Vou pegar uma coisa, me esperem, por favor.
O mago deu as costas e se encaminhou até o altar. Enquanto isso, Roan ainda pressionava as mãos sobre os ombros de Cassandra, dos quais estavam tensos o suficiente para quebrar uma pedra.
Por segurança, deu um tapa na nuca dela, o que por algum motivo diminuiu os ânimos agressivos.
Suspirou de nervoso, apoiou uma mão na nuca e a outra no meio do cabelo suado. A adrenalina foi absorvida pelo cansaço, enfim seus olhos começaram a arder e os músculos doerem.
Pior que isso, no entanto, era o atrito quente na ponta dos dedos de tanto usar magia; a mesma sensação da primeira vez que usou os feitiços.
— E voltei! — Saltitante e com um sorriso, o mago retornou com um pergaminho lacrado por um selo. — É por isso que eu tenho protegido esse lugar com unhas e dentes. Isso é um pergaminho, ou melhor dizendo, é o pergaminho das invocações de água.
— Pergaminho das invocações de água…? — repetiu Roan, uma epifânia martelou seu cérebro. — Um momento, se há invocações de água, não quer dizer que também existam outras?
— Sim, sim. Há mais três elementos principais: vento, água e terra. — Apoiou um dedo no queixo, o semblante pensativo dava uma sugestão diferente ao assunto. — Se bem que… já ouvi falar sobre elementos como luz e escuridão, mas nunca os vi. Vai saber.
“Luz e escuridão…?” Um arrepio cobriu o corpo do invocador, memórias se desdobraram em sua mente. “Seria aquilo?”
— Enfim, me chamo Diilan — continuou o esquisito, enquanto apontava para Roan. — Aliás, seria muito pedir pra você ler isso?
— Por que ele deveria, hein? — resmungou Cassandra, dando um passo em frente. — Tem uma maldição nisso? Não sei quantas histórias em que os personagens recitam maldições existem, mas deve ser uma dessas.
— Não, não! Não é nada disso! — Tocou na própria cintura, de novo retomando a postura confiante. — É porque eu não faço ideia do que seja! Não consigo ler!
— I-isso não pode ser sério, né? — disse Ravi, coçando a bochecha e jogando a coluna para frente. — Por que você tem isso se não consegue ler…?
— Ora, porque meu mestre me ensinou as invocações de maneira verbal e me pediu para proteger isso enquanto não achasse um companheiro de mesma categoria, só assim eu poderia realmente saber o significado do que está aqui. E que destino irônico, eu o encontrei agora pouco!
Todos olharam para Roan ao mesmo tempo, porém ele não reagiu conforme o esperado.
Permanecia estático, travado no tempo e espaço, perturbado por flashes constantes que inundavam sua cabeça num desespero.
Levantou o queixo e respirou fundo, seu coração batia a mil. Podia escutá-lo como se estivesse bem perto do ouvido.
Foi só depois de sentir um toque no ombro que sua consciência retornou e lentamente o ritmo acelerado passou a perder forças.
— Roan — chamou a amiga, cuja expressão não podia estar mais preocupada. — Está se sentindo bem?
— Ah, sim, eu tô. — Estreitou os olhos e bateu no peito duas vezes. — Eu me ofereço para te ajudar, Diilan.
— Ótimo! — Diilan deslacrou o pergaminho num passe de mágica e deixou o papel rolar pelo piso. — Sabe, você é um cara legal. As últimas pessoas que vi aqui foram só uns loucos pensando que eu tinha dinheiro e…
— Ei — cortou Cassandra, cheia de escárnio e com a língua afiada —, se você não tivesse chamado atenção, isso nunca teria acontecido. Era só ir pra outro lugar.
— Ehhh… eu não pensei nisso.
— Não seja dura com ele, Cass. — Roan cruzou os braços e esboçou um sorrisinho cínico. — Além do mais, nunca vou esquecer do seu caso com sua pasta velha.
— É diferente! — Inflou as bochechas. — Ninguém deixa algo que tem apego ir embora.
— Então o mesmo vale pro Diilan. — Deu de ombros e aproveitou para agarrar um pedaço do papel velho
Seus olhos vaguearam de um lado para o outro, analisaram cada caractere posicionado e a grafia bem feita.
Era bonita, estava numa língua bem diferente do usual… ou seja, impossível de entendê-la.
Isso se o sistema não existisse, pois uma pequena tela flutuante sobrevoou o pergaminho com uma tradução exata do que estava escrito lá.
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⌈ ⌉
O supremo pergaminho de
Anaton Gerdes foi obtido.
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Os segredos da invocação
elementar de água serão
repassadas ao proprietário
atual, assim como os
segredos e missões especiais
reservadas àqueles que obtém
tal conhecimento.
⌊ ⌋
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⌈ ⌉
A invocação de água requer uma
mente limpa e brilhante, fluída
e flexível, inquebrável e mutável.
Todo ser que ousar destruir e
quebrar o pacto aqui escrito será
grandemente punido, assim como
todos os seus relacionados que
tocarem neste texto sagrado,
afundados para sempre no oceano.
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O círculo de invocação deve ser
desenhado com sinais da água,
as ondas, os redemoinhos, o gelo,
o vapor, os rios e córregos.
Toda criatura invocada a partir
desta técnica passará por uma
transmutação e se moldará de
acordo com a transmigração
elementar.
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Por meio deste pergaminho,
repasso outros conhecimentos,
tais como
…
⌊ ⌋
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“É muita informação…”
A lista continuava numa infinidade de detalhes desnecessários dos quais Roan não prestou atenção.
Quanto mais descia a barra lateral do sistema, mais se assustava com o perfeccionismo e detalhismo de Anaton, que parecia não ter fim.
— E aí? Entendeu alguma coisa? — Uma pena que Diilan estava animado demais para perceber isso.
— Até que sim… — Ele cobriu a cara com a palma. — Isso vai levar uma eternidade.
Assim, uma longa conversa se desdobrou entre os recém-conhecidos invocadores. Uma conversa que durou a tarde inteira e levou ambos a uma discussão sem fim sobre as palavras do pergaminho.
Roan só pensava em sair dali, já que sua intuição sempre apitava para um pressentimento ruim. O problema era que sua intuição era vesga, mas nunca errava.