O Invocador Sagrado - Capítulo 20
Diilan era definitivamente a pessoa mais idiota que Roan conheceu na vida.
“Como… como diabos esse cara consegue fazer uma invocação se nem mesmo ele sabe desenhar o símbolo?!”
Não bastava a expressão animada e infantil, aquele homem com certeza possuía muitos parafusos a menos.
Era difícil não questionar o motivo dele ter ficado metros abaixo da terra esperando um completo desconhecido aparecer para ler o bendito pergaminho que foi guardado por anos… ou meses, como ele mesmo disse.
Era ridículo, era extremo demais, e por algum motivo Roan simpatizava com essa idiotice absurda por conta de um outro alguém.
— É estranho eu sentir pena de você, Diilan?
— Hã? Por que?
— Nada não, esquece.
Se pudesse lembrar, as últimas duas horas se desenrolaram numa discussão sobre o assunto do pergaminho.
Depois de lê-lo repetidas vezes, chegou ao consenso que esse tal Anaton Gerdes era um exímio perfeccionista.
Grande parte do pergaminho eram informações específicas de como desenhar um círculo d’água.
Para aliviar o fardo, Roan decidiu resumir em três passos: replicar o círculo de invocação, colocar os símbolos de água e apagar o conjunto de linhas no centro.
Só faltava testar a teoria. Roan tirou do bolso o bom e velho diário, onde usou uma pena e tinta — emprestadas de Pólito sem consentimento. — e fez a mesma imagem.
Estava tudo pronto, ele levou as mãos para o alto e foi interrompido por um tapinha nas costas, justamente por Diilan.
— Ei, ei, tenha calma, cara!
Roan suspirou e recuou a mão antes de encarar o outro invocador com uma expressão emburrada.
— O que foi agora?
— Eu lembrei agora de uma coisa e preciso confirmar… — Ele inclinou a cabeça. — Você por acaso conhece os Aprendizes Sombrios?
Roan levantou uma sobrancelha.
— Não, mas eu acabei descobrindo um certo grupo macabro que usavam magia negra como eu…
— Eles usavam capuzes? Tinham ideias erradas?
— Sim, o que tem?
Não houve resposta. O semblante de Diilan contorceu numa carranca, ao mesmo tempo que hesitava em falar alguma coisa.
O invocador não era bobo, notou de revesgueio a alteração do humor dele. Suspirou e, com sua clássica voz cansada, falou:
— Desembucha, Diilan.
— É só que eles são meio loucos da cabeça. Soube na hora que você não fazia parte desse bandinho porque não é doido. — Cruzou os braços, meio receoso de falar. — Sorte a nossa que nenhum sabe realizar invocações.
Roan analisou-o, pois só falava abobrinhas que não traziam a conversa a lugar nenhum. As batidas de pé, o jeito que roía as unhas, só podia ser um claro sinal de ansiedade.
— Diilan, você não tá falando nada com nada. — Agachou-se, esboçando um claro deboche. — E aliás, eles sabiam sim, vi com meus próprios olhos.
— Está mentindo, né? — Agarrou o braço do outro. — Isso é verdade?
Não soube responder. A ardência no pescoço e os calafrios só de ter um vislumbre daquela criatura dentro do covil ainda afetava sua consciência.
Porém uma memória incomum o fez mudar de ideia, a lembrança do rosto assustado de Cassandra no trem, quando ela tentou tocar seu pescoço. Um longo suspiro aliviou seus pulmões, então largou o aperto do homem.
— Eles invocaram uma criatura com um círculo de invocação diferente. Era um sol escuro e uma lua cheia, acho.
— Se lembra de como era a invocação?
— Parecia um… humano. Bom, ele tinha umas garras longas e controlava um fogo preto, os olhos dele eram vazios e…
Roan parou de falar. A queimação no pescoço o impediu, seguido por um remexido involuntário da cabeça.
Aquilo sempre acontecia, como uma memória que rebobinava toda vez que tentava falar sobre o ocorrido.
— Gandriel… — sussurrou Diilan, saltando do chão. — Nós estamos… não, esse país inteiro está em graves apuros! Lark!
O tigre azulado correu na direção do mestre e dobrou as perninhas para que ele pudesse subir.
Não demorou para que trouxesse Roan para cima também, que não conseguiu resistir por conta da força.
O animal atravessou a cachoeira da gruta e se sustentou nas paredes da fenda, escalando até o topo numa agilidade gatuna.
Quase se aprofundou na floresta, se não fosse por uma puxada inconveniente que os derrubou de cima da montaria.
Roan rolou pelo chão e pela primeira vez sentiu a tontura de passar por uma adrenalina momentânea tão rápida.
— Idiotas! Pra onde pensam que vão!?
Como era de se esperar, só Cassandra poderia ter toda aquela força. Numa pose marrenta e com o semblante cheio de escárnio, segurou Diilan pelo cabelo.
— Só esperou eu sair pra fazer isso, né, safado? — O punho recuou na altura do ombro.
— Cla-claro que não, senhorita Cassandra! — Ele tremeu da cabeça aos pés e abanou as mãos. — Só iríamos sair rapidamente, questão de minutos. Por favor, se acalme!
— Me dê um bom motivo. — Esticou o punho para o alto. — E um bom.
— Eu sei quem são os homens encapuzados que atacaram vocês!
Um silêncio reverberou pela floresta. Roan ficou tão chocado quanto Cassandra, inclusive saltou do chão e disparou na direção de Diilan para ter certeza do que falaria.
— Conte.
— Hã? — Uma sobrancelha se ergueu. — Contar o que?
— Contar sobre eles, Diilan! — Agarrou os ombros dele, tão sério que poderia matar.
— Ah, claro…!
Depois de soltar o cabelo, Diilan pigarrou e sentou de pernas cruzadas na grama.
Roan mantinha um dedo colado ao queixo, inquieto quanto ao que seria dito, porém mais ponderante sobre enfim ter uma explicação devida que há tanto tempo necessitava.
— Bem, por onde começar…? — Tirou um fio do cabelo do meio dos olhos. — Lembrei. Eles originalmente eram chamados de Aprendizes Sombrios por serem um grupo especializado em magia negra e por terem uma filosofia do… Mestre do Abismo, Jigral…
Travou um pouco, sem tantas palavras para recitar aquele nome, então continuou:
— “Toda arte sombria deve ser difundida e usada”, resumindo era assim o pensamento deles. Depois de um tempo, eles começaram a usar essas artes para muita desgraça. Voodoos, possessão e até rituais demoníacos…
— Mas se eles são um grupo problemático, por que não foram pegos pelas autoridades? — indagou Cassandra.
— E foram, o porém é que os atos deles recaíram sobre todos os outros grupos e místicos. Isso desencadeou uma perseguição que durou 400 anos… essa trégua deu tempo para a maioria das comunidades místicas se reerguerem, incluindo esses bastardos.
“Para evitar serem reconhecidos, eles mudaram de nome e passaram a se chamar de Sexto Olho. Não houveram problemas, então até o Círculo, a união dos invocadores, não precisava de importar.
E sim, Roan, existem outros como nós, invocadores, só que eles também foram afetados pela perseguição, então só há muito poucos.
Enfim, acreditamos que seria impossível para qualquer um desses fanáticos invocar uma criatura, como tem sido nos últimos séculos, até você dizer o contrário. Imagine, um bando de loucos usando um poder desses livremente…”
— Consegui sanar suas dúvidas?
— Quase — respondeu Roan de imediato. — Você falou sobre um tal de Jigral. Quero saber mais quem ele é, só o vi em livros.
Diilan foi pego desprevenido, o que foi um sinal claro para Roan. A hesitação nos olhos, o modo como falava, tudo parecia levar para uma verdade macabra.
A resposta tardou em vir. O invocador de água esquivava a feição para os lados e deixava inúmeras janelas de um claro conflito interno. Isso até Roan bater palmas e tomar a atenção.
— O que ele é, Diilan?
— O… rei dos demônios. — Recusou-se a encará-lo, como se o nome trouxesse vergonha. — O ser que atormentou o continente a 1.000 anos atrás e deu motivo para uma perseguição em massa contra tudo e todos. Ele é quem o Sexto Olho quer trazer de volta.
— Isso parece mais piada — comentou Cassandra, segurando o riso. — Sério? Trazer um defunto de 1.000 anos atrás.
— Você não sabe o que diz!
A temperatura repentinamente abaixou. Cristais de gelo rodearam-no, os olhos brilhavam num azul fosforescente.
Roan interviu depressa, pondo-se à frente e tocando-o nos ombros. Foi um choque direto, fazendo Diilan retrair a aura congelante e consequentemente voltar a temperatura ao normal.
— Me desculpem, eu me descontrolei… — Abaixou o rosto, embaraçado.
— Está tudo bem, Diilan, acontece. — Roan virou a cara para trás, numa carranca furiosa indescritível e voltada para sua amiga. — Não é, Cassandra?
— É, é… sim. — Meneou a cabeça de maneira travada, menos assertiva que antes.
Um clima desconfortável se instaurou naquela ocasião. Dava para sentir um peso nas costas, mas Roan, como sempre, tinha o dever de quebrar o gelo, pois era o único em posição de fazer isso.
— O que faremos agora que sabemos disso, Diilan?
— Ah, o ideal seria irmos à capital, Vânia. — Apontou o cajado para noroeste. — Lá é onde vive o líder do Círculo. Precisamos informá-lo da situação.
— Espera — interveio Cassandra. — Roan, e a carta?
— Verdade… — Coçou o queixo, pensando no tempo que demorariam na viagem. — Leva muito tempo para chegarmos em Vânia?
O tigre azul, Lark, se meteu no meio da conversa na hora exata. Colocou-se ao lado do mestre que o acariciou na testa.
— Com a ajuda desse amigo, não.
— Melhor nos apressarmos, então… — Roan olhou ao redor, estava faltando alguém. — Cadê o Ravi?
— Eita… — A loira corou, dando alguns passos em direção às árvores.
Momentos depois, reapareceu com o rapaz preso nas costas e com um olho roxo. Ela sorriu, o que só fez Roan se estapear por imaginar que tipo de estupidez ocorreu enquanto ele não estava vendo.
— Deus… Ok, Diilan, vamos lá.
— Todos a bordo!
Cada um subiu no tigre azul — exceto por Ravi, que ficou estirado e de lado. —, então o animal disparou na direção das árvores, numa agilidade felina que rasgava o vento e o permitia se mover a uma velocidade surreal.
Porém, mesmo por essa celeridade, um pássaro o acompanhava no céu. Era uma linda ave colorida, majestosa no voo e na aparência, cujo objetivo se centrava numa única missão: Não perder seu mestre de vista.
*****
Vampiros amavam a noite, igual a seus fiéis vassalos. A lua cheia reluzia entre as nuvens, o vento assoprava um sussurro de morte e a mera presença de uma incomum criatura espantava a vida.
Aquele ser amedrontador, de longas garras e olhos vazios, vagava sozinho pelas árvores, desenhando um traço de morte por onde seus pés tocavam.
Ele parou em frente a um arco de pedra, que dava numa longa escadaria obscura rumo ao subterrâneo.
Ao dar o primeiro passo para dentro, a passagem atrás se fechou, atolada por terra. No entanto, o monstro não se importou e seguiu pelo longo corredor de pedra que se estendia à frente.
Parou na frente de uma porta de pedra, marcada por um aro cheio de símbolos antigos e macabros que iam de uma ponta a outra.
Estendeu a mão, chamas sombrias saltaram dos dedos e cobriram os símbolos, iluminando-os em uma cor negra. Logo, as portas se abriram, dando em uma câmara oval.
Havia um tipo de jardim ali dentro, porém era diferente do usual. O mato era escuro, as flores cresciam com pétalas murchas e os pequenos arbustos eram tortuosos.
Ao centro da câmara, uma grande rosa azulada demonstrava toda a sua beleza, com dezenas de espinhos venenosos mais pontudos que lanças.
— Ah, finalmente te encontrei… — Apoiou as mãos na cintura e mostrou os pontiagudos dentes. — Khamila, a segunda apóstola.
Gandriel ousou invadir o jardim e imediatamente foi atacado por centenas de ervas daninhas, que o chicotearam com raízes duras.
Flores dispararam rajadas de sementes como balas, os arbustos lançaram folhas cortantes capazes de arrancar a cabeça de uma pessoa.
Mas era impossível parar aquele monstro. Uma onda de chamas negras infectou cada ser vivo lá, cinzas foram espalhadas até o jardim se tornar um carpete preto. Apenas a rosa tinha sobrado, lustrosa e belíssima.
Ele riscou uma parte do próprio braço, seu sangue escorreu para os dedos, até ser lançado contra o caule da rosa. O sangue foi sugado para dentro da flor, alimentando-a com um néctar impuro.
Outra saraivada vermelha foi o suficiente para uma verdadeira mudança. As pétalas escureceram, um negro profundo infectava a cor vivida do azul, tornando-o apático e sem vida.
— Venha a mim, Khamila!
Quando cada pétala mudou de cor, a rosa desabrochou. Uma mulher estava lá, de cabelo tão sombrio quanto a noite e aparência tão esbelta quanto o dia.
Ela transmitia uma pureza que não existia, ao mesmo tempo que recriava a certeza de possuir uma natureza maldita. Tudo escondido por um semblante calmo, intacto e frio.
O corpo da mulher deslizou ao chão, em que ficou de pé. Gandriel riu e acenou, agachando-se ao lado dela para verificar a situação.
— Como se sente?
— Fraca… — Mal havia voz para sair. — Onde está o mestre? Onde estão os outros…?
— Selados, todos. Fui libertado há dias, dei sorte…
Pegou um frasco arroxeado, oculto por debaixo de uma infinidade de tentáculos que compunham seu corpo.
Aproximou-o da boca de Khamila e derramou o líquido, que logo perdeu a palidez e retomou o movimento das pernas.
— Preciso de mais… — resmungou, tentando se colocar de pé.
— É, e eu sei onde conseguir mais. — Mais um sorriso soturno alavancou seu humor. — Que tal comemorarmos seu retorno com um grande banquete?
— Um grande banquete…
Foi inevitável se surpreender com a expressão alegre e maliciosa daquela mulher venenosa. Era um riso largo, defeituoso, enlouquecido, mas que transmitia da pior forma possível o desejo de Gandriel, o desejo de destruir e aniquilar.
— Sim, hihihi… Vânia será o meu baile de boas-vindas — Caminhou devagar lado a lado com o monstro, em direção a escadaria de pedra. — E meu grandíssimo banquete.