O Invocador Sagrado - Capítulo 21
A travessia teve sua devida pausa ao anoitecer. Era uma noite linda, cheia de estrelas e com uma lua cheia brilhante.
Lark despencou contra o chão antes mesmo de receber uma ordem para descansar. O pobre coitado ofegava e deixava a língua cair sobre a terra.
Desmontaram de um em um. Por sorte Ravi já estava acordado, assim não precisaram jogar o corpo dele para fora; uma pena que o olho roxo não tinha nem diminuído de tamanho.
Roan olhou para o horizonte, admirado no degradê de laranja e amarelo que desaparecia na escuridão da noite.
Mesmo com o cabelo todo bagunçado e atordoado pelo ocorrido de mais cedo, teve forças para andar um pouco mais. Ao subir uma colina, seus olhos arregalaram.
— Ei, vocês precisam ver isso!
Os outros, curiosos como sempre, subiram a colina em seguida e ficaram igualmente espantados com a paisagem.
Uma grande árvore crescia em meio às outras, alcançando as nuvens e coberta de pontinhos brilhantes em cada galho, como se fossem vaga-lumes gigantes.
— Aí está Vânia… — falou Diilan, com uma mão na cintura. — Vocês não imaginam o quão grande ela é de perto.
— Eu não consigo nem imaginar daqui… — Roan ergueu o queixo, mal conseguia ver os pontos luminosos entre as nuvens. — É lá que o líder do Círculo vive?
— Lá no topo? Hihi. — Diilan abriu um sorriso. — Não, mas dizem que lá você tem a melhor vista de todo país.
O invocador de água elevou o cajado, um cristal de gelo se formou na ponta, apontado para a copa da árvore. Devagarinho o cristal se estendeu para os lados, recriando uma complexa teia de gelo.
— De lá você pode ver as estradas do país iluminadas, e elas se parecem como uma teia de aranha. Eu afirmo, é uma das coisas mais bonitas que já vi.
— E você já esteve lá, Diilan? — perguntou o outro invocador, de braços cruzados.
— Já, mas foi há uns bons anos. Talvez seja um bom ponto para retornarem daqui um tempo.
— Vou lembrar disso…
A friagem começou a invadir as entranhas do grupo. Então, cada um acenou a cabeça e fizeram um acordo mútuo de preparar um rápido acampamento para dormirem.
Roan foi o primeiro a se separar, só que não havia quase nada para se fazer. Os outros já estavam preparando uma pequena fogueira, e Cassandra tinha desaparecido de vista, possivelmente para caçar.
Quanto a ele, possuía apenas seus próprios pensamentos para lidar. Momentos depois, sua amiga retornou com um conjunto de lebres esverdeadas que serviriam de jantar para aquela ocasião.
A carne continuava dura, como era de se esperar, e após a refeição, todos foram para um lado onde podiam descansar.
Com exceção de Cassandra, os outros caíram no sono em questão de instantes. Já Roan penava para ter uma centelha de sono, por isso observava o céu noturno, até que um resquício abduzisse sua consciência.
Depois de contar alguns carneirinhos e encarar as estrelas, o sono realmente lhe atacou. Bocejou, enquanto deitava a nuca num travesseiro duro, até ver de revesgueio Cassandra, que ainda estava acordada e escorada numa árvore.
— Boa noite, Cass. — Acenou para ela, esboçando um sorriso no canto do lábio.
— Boa noite.
Assim, afundou no sono, perseguido pelos olhos claros de sua amiga e pela maldita mensagem que sempre amaldiçoava seus sonhos.
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A deusa Yondra lhe observa.
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Outra vez, o pesadelo repetia. Chamas negras, olhos vazios, dificuldade de respirar, caos mental e a voz demoníaca da criatura.
— …será que você é um sacrifício…?
Por que aquela fala sempre se repetia? Por que o momento rebobinava a cada lua cheia? Por que seu pescoço queimava tanto diante da aparição maligna que infestava sua mente? Não sabia responder, limitado a uma concepção doentia de um estado semi-inconsciente.
O fogo puxava sua essência vital ao extremo, drenava qualquer energia que tivesse para resistir às forças sobrenaturais do pesadelo. Porém houve um alívio, as chamas se apagaram repentinamente e o ambiente pareceu esfriar.
Roan virou a cabeça para trás. Uma grande ave colorida batia as asas em sua direção, exibindo um arco-íris de penas e ostentando grandeza em ventanias que curava a alma.
O lugar do sonho se alterou sozinho, entretanto não pela imaginação do homem, e sim pela existência daquela ave incompreensível.
Era um oceano de nuvens, que comportavam inúmeras ilhas no horizonte, acompanhadas de uma esfera solar cintilante.
Ela pousou na mesma nuvem em que o invocador estava deitado. Olhos carregados de um brilho espectral encararam-no, manchados por vórtices de energia que refletiam uma grandeza pura.
— Peculiar… elementar… — murmurava, encolhendo as asas.
— O que diabos é…
— Eu sou Arillumia, governanta do plano divino, humano… e creio que seja da minha atenção o que você fez.
— O que eu fiz? — Ele inclinou o rosto, ainda tentando compreender como entendia o pássaro gigante.
— Você me invocou. — O tom sério dava calafrios. — Fazia muito tempo que não era trazida ao plano terreno…
Ele ficou parado no lugar, tentando desenvolver o que fora dito. Engrenagens giraram pelo cérebro, até as peças se encaixarem numa imagem de uma certa invocação, da qual tinha por acidente esquecido…
— Você é… aquela invocação!
— Arillumia, não aquela invocação. Dói chamar-me assim! — Bateu as asas, lançando penas na direção do homem.
— Eu entendi, eu entendi! — Protegeu-se com os braços, mesmo que seu cabelo ficasse coberto por plumas. — Mas se você é… não sei, um deus, o que quer comigo?
— Oh, bom ter perguntado, quase desviei do assunto. Encolhitus.
Roan observou a ave encolher devagar, até ficar do tamanho de uma galinha rechonchuda. Ele mordeu a bochecha, sua seriedade e maturidade desapareceu de vez, forçando-o a controlar a vontade de rir.
Aproximou-se, sem ter exata noção se a nuvem que pisava era segura, então se agachou na frente da galinha. Como não se mexia, decidiu pegá-la nas mãos, o pior de tudo foi que não houve queixa.
— Humano, eu quero um acordo.
— Acordo…? — Levantou a sobrancelha.
— Sim. Eu preciso ser evoluída no plano terreno, no seu plano, para resolver algumas questões com certos conflitos lá… e em troca, eu removerei sua maldição.
— Maldição? Que maldição?
— Não percebeu que está amaldiçoado? Os pesadelos e essa marca no seu pescoço não lhe abalam?
Uma dor tomou conta da mente de Roan, uma que demorou demais para notar. Tocou a região, mas um calor intenso e uma queimação o fizeram tirar a mão.
— Aí!
A sensação era familiar, de maneira ruim. Era o gatilho para as memórias no covil, que às vezes reapareciam em flashes de uma breve aflição.
— Como sabe disso? — Sua expressão mudou para uma carranca feia.
— Almas são como quadros brancos para mim, e isso é como um ponto preto num quadro branco… — Parou de falar, voltando-se para cima, de forma que pudesse vê-lo. — A diferença é que esse ponto não diminui e nem seca, apenas cresce.
— Apenas cresce…?
— Sim, e possivelmente irá matá-lo a longo prazo. Caso contraia as outras maldições, só posso ter pena da sua alma.
Morte? Estava fadado a isso?A pressão de Roan caiu, sua pele esfriava conforme imaginava o cenário de dor agonizante, tudo por culpa daquela marca.
— Então tire isso de mim!
— Ora, consigo tirar… — Arillumia fez um silêncio dramático, para testar se tinha total atenção dele. —… se você cumprir um acordo comigo.
— Certo… eu quero escutar o acordo.
O pássaro sorriu, ou foi o que pareceu a ele. Sentou-se, deixando a galinha deitada na nuvem, então cruzou as pernas e esticou a coluna para frente.
Ambos conversaram por um bom tempo, aproveitando que o sol ainda estava longe de se pôr.
O invocador mal sabia responder as palavras de Arillumia, na verdade não possuía nem coragem para imaginar o que faria após aquele importante diálogo.
Sua mente se focava na primeira parte, no efeito da maldição e de uma possível morte que lhe aguardava.
Quanto tempo restava? Quanto a maldição havia afetado seu corpo? Seria possível se livrar antes do pior acontecer? Essas dúvidas permaneceram sem respostas, e Arillumia se recusava a responder, como um gatilho para apressá-lo.
O tempo voou para longe, a bola de fogo começou a desaparecer com o oceano azul acima de sua cabeça, puxando tons roxos para o céu. A ave, ao notar isso, retornou ao tamanho normal e se ergueu.
— Seu espírito está voltando ao corpo — explicou, estufando o peito. — Creio que meus meios estejam firmados, assim como os seus.
— Sim, estão… — Roan ficou de cabeça baixa e com os dedos trêmulos. — Antes que vá, preciso saber de uma coisa.
— Diga, humano.
— Se você é um ser ancestral e divino, como diz ser, como eu lhe invoquei naquela vila? — Inclinou o rosto para contemplar o sol sumir. — Não faz sentido…
— Oh, eu só senti que devia ir…
— Como assim sentiu?
— Não tem intuição, humano? — Irritadiça, ela bateu as asas e espantou os ares. — Ou você acha que todos os espíritos e deuses sabem de tudo?
As ondas de vento fizeram a nuvem deslizar sozinha e voar para longe. Roan ficou lá, meio deitado e ainda cheio de perguntas, sem um meio para encontrá-las num mar de confusão.
Arillumia, num rápido rasante, o pegou com as garras e o levou rumo ao horizonte escuro. Mesmo que esperneasse para ser solto, pouco se importou, até arremessá-lo em pleno ar.
Ele caiu, afundando numa penumbra profunda. Sua visão obscureceu, até restar um ponto dourado no céu, a fênix e governanta do plano divino.
— Não esqueça do meu acordo contigo, humano — disse, com uma voz poderosa e ecoante. — Use bem o conhecimento que lhe dei, pois em breve irá precisar…
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*****
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“Eu quero subir de nível…”
A frustração de Cassandra não tinha como ser mais justa. A raiva adorava perturbar sua cabeça com o simples motivo de “não ser suficiente”.
Mordia o próprio lábio enquanto olhava para Diilan dormindo. Suas mãos coçavam para estrangular aquele pescoço, sorte a dele a habilidade que ela tinha de controlar as próprias vontades. Entretanto, o fato continuava a existir.
“Não sou forte o bastante… Eu preciso de mais, eu preciso de algo novo!”
Foi nesse instante que uma lâmpada se acendeu. Ela tirou uma lâmina do bolso, uma faca pequena, levemente enferrujada e com marcas de sangue coagulado na ponta.
— Um glifo surge quando se faz alguma coisa nova, certo…? — murmurou, de repente observando a outra mão. — O que aconteceria se eu usasse essa faca em algo? Eu ganharia uma habilidade nova…?
A teoria consistia numa base boa, a prática, por sua vez, requisitava um objeto a mais: um corpo. Descartou Diilan na primeira chance, sabia bem que seria útil mais tarde, descartá-lo estava fora de questão.
Girou o rosto na direção da floresta. A curiosidade por uma exploração atiçava seus pelos, enquanto o desejo de ganhar a famigerada experiência vinha como um veneno viciante.
“Ah, foda-se vai.”
Cassandra, como qualquer bárbara, precisava de uma ação. Desviou-se do acampamento, abrindo uma distância segura em que pudesse vê-lo, ao mesmo tempo que podia analisar os arredores.
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· Nome ·
Cassandra
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· Classe ·
Bárbara
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⠀· Nível ·
6
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༝ Força ༝
31
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༝ Destreza ༝
23
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༝ Guarda ༝
26
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༝ Mágica ༝
1
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‹ Glifos Equipados ›
⧫ Glifo de Evolução Corporal
⧫ Glifo de Aura Intimidadora
⧫ Glifo de Fúria
⧫ Glifo de Resistência s/ Armadura
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“Queria mais espaços para glifos, tenho habilidades sobrando…”
As duas primeiras habilidades foram trocadas por Sentidos Aguçados e Resiliência. Cassandra sentiu o efeito imediato, conseguia distinguir mais sons, cheiros e seus olhos ganharam uma luminescência ao invés de pura escuridão.
A faca deslizou entre os dedos, sua língua lambuzou os lábios e um impulso a pediu para caçar uma vítima. Escutava alguns ganidos estranhos ao longe, sons familiares de homenzinhos verdes que adorava estrangular e matar.
Eles eram os melhores, sempre seriam para conseguir no mínimo bons gritos de dor e quem sabe uma habilidade nova.
— É, eu vou atrás deles…
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⌈ ⌉
Glifo de Sede de Sangue desbloqueado
Rank — Passivo
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Toda vez que o usuário for incitado por
uma vontade de lutar, ele ganhará
habilidades sensoriais aumentadas,
porém entrará num transe temporário.
⌊ ⌋
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— Hihihi…
Cassandra entrou num bom humor, a janela amarela no canto do olho incitava um semblante malicioso, com um sorriso assombroso e olhos enlouquecidos.
Seria uma longa noite, uma noite com sangue o suficiente para satisfazer o apetite de uma batalha de verdade, mas que não segurariam a besta por tanto tempo…