O Invocador Sagrado - Capítulo 22
O dia chegou numa paz arrebatadora, mas o sol nasceu muito mais quente que o normal.
Os quatro voltaram a andar logo cedo, o problema era que iam a pé, sem a carona de um grande felino azul para aliviar a fadiga.
— Diilan… — chamou Roan, limpando a testa de suor. — Era mesmo necessário deixar Lark para trás?
— Não tem nenhuma muralha por perto… — pontuou Ravi, com o capuz levantado para se proteger do sol.
A resposta foi o silêncio, o que transformava o clima antes agradável — por conta da mudez de uma certa baixinha. — em uma completa melancolia que trazia um mau-agouro.
Talvez a falta de palavras de Diilan só foi justificada mais tarde, ao se aproximarem mais de Vânia.
Levantar a cabeça não era o bastante para ver o topo, além de que um amontoado de folhas gigantes tapavam a vista.
Dava para discernir alguns buracos e pontes de madeira que se conectavam a outros galhos.
— Uau… — Os olhos de Cassandra brilharam ao contemplar a árvore. — Não tem como encontrar uma pessoa nesse troço, né…? Ou não é oco por dentro?
— Aparenta ser, Cass. — Roan se colocou ao lado dela, admirado da mesma forma. — Queria saber como eles chegaram lá no topo, será que…
— Alto!
A ordem veio como um estrondo, fazendo-os cessar o passo instantaneamente. O invocador teve que morder a língua, a um fio de gritar de susto.
Girou a cabeça, não havia ninguém à vista, até notar um reflexo incomum na copa das árvores.
Observando com mais atenção, encontrou alguém ali, uma pessoa vestida de manto verde e com um arco preparado para disparar.
— A entrada pelos subúrbios reais é estritamente proibida — disse uma mulher por trás deles. — Eu poderia até fazer vista grossa, se, é claro, essa entrada não fosse segredo…
— Merda. Vocês três, não se desesperem e só joguem de acordo comigo, ok? — sussurrou Diilan, enquanto erguia as mãos para o alto.
Os outros repetiram, então ao verem-no se virar, seguiram o mesmo movimento. Só assim Roan conseguiu ter uma noção de quem era a “comandante” que os impediu.
Era uma elfa, assim como esperado, que usava uma farda esverdeada com espaços para braçadeiras e peças pequenas de um revestimento verde — só que tinha um detalhe muito… peculiar.
“Eu não conheço a moda dos elfos, mas é comum as mulheres terem um black power?”
Ao dar uma bisbilhotada pelo canto do olho, viu Cassandra contorcendo o rosto em uma expressão inimaginável. Ela estava se segurando de uma maneira impressionante, ao ponto de dar orgulho.
Do outro lado, Ravi parecia bem tranquilo. Era fácil desvendar pelo rosto que ele julgava o corte, mas apenas deu de ombros e deixou passar.
Roan ignorou a situação estranha e voltou a encará-la. A imagem de elfos de longos cabelos lisos e sedosos foi destruída muito rápido.
Pelo menos, tinha acabado de descobrir que existiam muitas diferenças entre os de fantasia com os daquele mundo.
Um breve aceno de mão veio da oficial. Três silhuetas desceram das árvores e eles comprovaram rapidamente a suspeita original de Roan, outros se escondiam.
— Preferem não falar? — indagou a mulher, voltando à compostura militar. — Temos muito tempo na prisão, se quiserem ir para lá…
— Na verdade — cortou Diilan, dando um passo à frente —, eu tenho uma mensagem para entregar a um certa pessoa.
— Realmente? Então por que veio aqui? Uma carta ou mensageiro nobre seria mais eficiente.
— Não, não, posso apenas entregar pessoalmente. — Deu de ombros, pondo-se entre os outros para ser o “líder” do grupo. — Meu amigo também precisa…
— Me poupe, garoto — interrompeu a oficial, ao mesmo tempo que estalava os dedos. — Todo dia aparece alguém igual a você e seu grupo. Eu deveria mesmo acreditar?
Sincronizado ao estalar, as três silhuetas caminharam na direção deles, preparando algemas de madeira retocadas por símbolos de metal.
Roan engoliu seco, não estava tão afim de ser preso logo ali, quando outras pendências ainda precisavam ser resolvidas mais tarde.
Baixou as mãos e elevou a voz: — Ele fala a verdade! É uma mensagem para…
— Não estou tão afim de vê-los tentar me convencer. — Ela bateu palmas, mais uma vez arrancando o poder de fala. — Se nem um chá natural me fez me acalmar, imagino que vocês não consigam.
— Ah, quase não te reconheci… — comentou Diilan, de repente com um sorriso no rosto e jogando uma das mãos para a nuca. — Não é atoa que você é viciada no chá do Joaum, Piettra.
Por algum motivo, a oficial parou de se mexer. Roan teve que pensar no que aquelas palavras significavam, e torceu do fundo do coração para ser um código que os livraria da enrascada.
Para sua sorte, era algo próximo do que imaginava, pois instantes depois deu última ordem no comando e se aproximou.
— Rapazes, continuem a patrulha. — Gesticulou uma das mãos, como se abanasse para espantar um cachorrinho. — Vou levar esses prisioneiros comigo. É algo sério.
— Sim, senhora!
As folhas das copas farfalharam e vultos saltaram de galho em galho até desaparecerem de vista.
“Haviam mais deles escondidos…”, pensou Roan, ao ver uma quantia preocupante de sombras sumirem. “O que diabos Diilan quis dizer?”
Piettra ergueu e abaixou os ombros, trocou olhares com cada um dali, então puxou pequeno cubo marrom do bolso.
Arremessou-o, caindo justamente nos pés de Roan, logo o que possuía o menor tempo de reação dos quatro.
O cubo se expandiu numa caixa de grades amadeiradas, cercada por uma aura de energia verde semelhante à mana do glifo Discernimento Mágico.
O homem só pode suspirar e descontar a raiva num pescotapa em Diilan, que quase o fez cair de tanta força.
— Aí! Não precisava disso!
— Você piorou a situação, foi merecido.
— Não era meu objetivo! — Virou o rosto na direção da elfa com a expressão de cachorrinho. — Piettra, isso é pra ajudar, né? Diz que sim!
— Ah… que grupo curioso você se meteu, Diilan. — Ela arrumou as braçadeiras na altura do pulso. — Não importa, só importa que você virá comigo querendo ou não. Os três… acho que se meteram nessa situação por conta dele, correto?
Acenaram em resposta, causando um suspiro da oficial como resposta. Piettra girou as mãos, a caixa flutuou sozinha no ar, e em pouco tempo já era deslocada para frente.
Roan se sentou no piso duro feito um patinho, ao mesmo tempo que encarou o outro invocador com um olhar capaz de matar.
Pelo menos, uma pessoa estava disposta a salvar a situação. Ravi se sentou perto dele e retirou de dentro do traje preto um baralho familiar.
— Uma partida de Glossário?
— Definitivamente, Ravi.
Pegou e embaralhou as cartas, porém uma certa memória o interrompeu. Virou na direção de Cassandra, que tinha se ajoelhado na roda.
— Cass, não compramos roupas novas faz um tempo?
— É, a gente comprou. — Inclinou o pescoço. — Que que tem?
— Cadê a aljava de dinheiro delas?
— Aí não, puta que pariu… — Estapeou a testa, antes de esconder a face entre as mãos.
Roan dentou a bochecha. Não podia ficar pior; pobre, preso e sem outras mudas de roupa. Depois de questionar suas escolhas de vida por um minuto, focou-se no jogo.
Compras, descartes, jogadas, tributo, sóis e luas… as regras do jogo permaneciam muito simples e igualmente fáceis de acompanhar.
Até Diilan, que primeiramente sofreu um tapa de cada um, participou da atividade e se divertiu — mesmo que as marcas no rosto e na nuca ardessem.
Mal perceberam a paisagem mudar de uma floresta larga para um corredor escuro. De uma hora para a outra, começou uma escalada esquisita, que Roan só notou quando viu o ângulo estranho em que subiam.
“Como isso…?”
Sua mente travou ao encontrar Piettra montada numa aranha gigante.
Engoliu seco e se encolheu, preferindo não alertar aos outros sobre o ocorrido — principalmente porque um certo alguém tinha medo desses insetos em especial.
Pararam após mais um tempo de caminhada, lá a aranha gigante foi deixada para trás e duas partidas terminaram àquela altura.
A oficial seguiu sozinha por mais um tempo, até descer gentilmente a cela móvel no chão e puxar as braçadeiras para baixo.
Click click.
— Ninguém por perto… — Voltou-se aos prisioneiros. — Seji rápido, Diilan. Quero muito bem saber o que um nobre como você faz aqui depois de ter desaparecido…
“Nobre desaparecido?”, pensou Roan, sem reação. “Você tá de sacanagem comigo que esse cara é um nobre? Esse cara?!”
— Cã-hãm, primeiramente… — Ele ficou de postura ereta e abriu um sorriso. — É “seja” e não “seji”, Piettra. Você sempre erra.
— Vai se foder, Diilan.
Ela mostrou o dedo do meio, sem a mínima vontade de ter tanto papo. Havia tanta coragem assim para xingar um nobre tão na cara dura? Pelo jeito sim, e de sobra.
— Eu queria pregar você dentro de um caixão para nunca mais te ver de novo. — Franziu o cenho, o ódio transpassava pelas narinas. — Tem noção do quanto sua “saída de negócios” abalou a hierarquia nobre?!
— Não, não tenho a mínima! — Roan agora admirava toda aquela ignorância. — Mas eu voltei com um aviso, um aviso grande!
— Isso não vai ser desculpa, rapazinho…
— Ah…
Diilan encarou o parceiro de invocação, que retrucava o olhar com um tipo de deboche pior que o de Cassandra.
“Fugiu de casa por meses e volta assim… é mesmo merecido.”
Roan relaxou os ombros e então batucou nas grades, fazendo a Piettra olhar de volta para saber se era o maldito de novo. Ela ergueu as sobrancelhas ao ver aquele homem agarrado nas barras.
— E quanto a nós três? — Cruzou os braços pelo lado de fora da cela. — O que vai fazer com a gente?
— Não sei dizer… mas digo que parecem ser decentes ou que não sabiam dessa situação do seu amigo.
— Ele não é nosso amigo.
— Ei! Isso é traição! — reclamou o não-amigo.
— Cale a boca, Diilan — replicaram os dois em uníssono.
O invocador de água abraçou as pernas e se encostou no cantinho, assustado demais pelo jeito intimidador daqueles dois.
Depois do projeto de gente ter sido colocado de lado, a conversa pôde retornar aos trilhos. Mais uma vez, Roan puxou o assunto:
— Nós só estamos aqui para entregar um aviso a um tal de Joaum…
— Huhuhu… — Cassandra segurou a risada de fundo.
— Depois disso vamos continuar viagem em direção à basílica de Cililiana.
— Entendi — Piettra acenou com a cabeça. — Se esse é o caso, melhor pararmos por aqui.
Trouxe uma das braçadeiras na altura do pulso e tocou a prisão de madeira. As barras se torceram sozinhas, dando uma passagem para saírem.
Após Diilan ser chutado para dentro de novo e os três saírem, ela rotacionou o pulso e a trancou novamente, colocando a braçadeira de volta no lugar.
— Me escutem, Joaum é um druida bem… chamativo. — Fez um sinal com o dedo, apontando para cima. — Há duas formas de vocês o encontrarem: achem um cogumelinho que anda ou encontrem um trevo gigante.
— Por que um cogumelinho? — perguntou Roan.
— É o pet dele, por assim dizer. Esse bicho vaga por aí sem dono, uma hora ou outra você vê algo semelhante.
Antes de continuar, ela tirou um brasão do bolso, com a figura de um trevo de três folhas gravado.
Arremessou como uma moeda na direção dos dois, Roan foi o único disposto a pegá-la em pleno ar.
A mulher estalou os dedos, como se quisesse chamar um animal. Na verdade, só queria que os outros três prestassem atenção nela, e assim eles fizeram sem se tocarem.
— Preciso também avisá-los duas coisas, já que vocês parecem caipiras… primeiro, não confiem em elfos negros; segundo, prestem atenção no andar em que se localizam. — Começou a caminhar, seguindo pelo corredor de madeira. — Ah, agora que lembrei. Caso não encontrem Joaum, venham ao quartel general do andar médio, no Distrito das Roseiras, eu estarei lá. Basta mostrar esse brasão que você será permitido entrar.
Demorou um tempo para que sumisse de vista. Porém o mais assombroso de toda aquela conversa eram as palavras lamuriantes de Diilan, que demoraram para cessar.
Depois de uma breve troca de olhares com o trio, decidiram continuar viagem e tentar acompanhar as informações que receberam.
Não deram um pio, nem sequer ousavam em talvez ter a ideia de acompanhar Piettra. A hipótese de cair na cadeia por culpa de um idiota estava totalmente fora dos planos.
“Mesmo assim…” Roan engoliu seco, enquanto se guiava pelas passagens. “Não é estranho eles agirem com tanta naturalidade? Como vamos saber para onde vamos?”
Alguém pareceu ler seus pensamentos, porque pouco tempo depois eles se esbarraram com dois pontos incomuns para aquele lugar.
Havia várias placas espalhadas em bifurcações dos túneis, que davam direções exatas de lugares que ninguém reconhecia.
O outro ponto era a presença constante de cogumelos brilhantes, os quais conseguiam iluminar bastante a travessia.
Pena que não encontraram nenhum cogumelo pequeninho andando — se é que seria possível achá-lo.
— Vamos para o Distrito das Roseiras — declarou Roan, após 15 minutos de silêncio. — Não tenho certeza se encontraremos qualquer um dos pontos que Piettra disse, não quero arriscar.
— Devo concordar, senhor Roan. — Ravi andava mais a frente, levemente mais animado que os outros dois.
— É, bora… — disse Cassandra, levantando o punho para cima.
“O que há com ela?”
Roan a observava por cima do ombro, por algum motivo um espinho cutucava seu peito. Era um sinal de que um sinal estava fora do lugar.
Entretanto, não foi capaz de pensar nisso por tanto tempo, a viagem e atenção redobrada para aquele suposto “lugar novo” consumia seu cérebro junto da paranóia.
Ele respirou fundo e, com um símbolo de invocação guardado por debaixo das mangas, fincou seu passo rumo ao dito distrito, sem saber das minúsculas pegadas que o seguiam.
Cogu Cogu
Realmente, o cogumelo seria difícil de encontrar… ainda mais quando estava atrás deles.