O Invocador Sagrado - Capítulo 22.1
Lezandra poderia ter muita experiência, mas a idade continuava a pesar em suas costas. Acordar cedo, preparar o fiel corcel, guiar-se pelas florestas do país, conversar com outros clérigos das igrejas… as exigências não terminavam.
Para complementar todo o trabalho hercúleo, ainda tinha a pobre donzela Maithe, que viajava na própria imaginação enquanto sua guardiã cuidava do restante.
“Eu devia tê-la deixado em Hirote e depois ter trazido Roan de volta com os portais da basílica…”, pensou a elfa, cheia de arrependimento por ter tido a ideia tarde demais. “Mas não fará mal, não falta muito. Espero que eles tenham chegado logo…”
Após recuperar sua montaria do estábulo, puxou-o pelas rédeas rumo à entrada daquele vilarejo. Lá havia um guardinha de chapéu pontudo, que se levantou na mesma hora que a mulher chegou.
— Bom dia, senhora Lezandra!
— Ah, bom dia… — Acenou de volta, sem o mesmo ânimo do rapaz. — Já vamos partir, se me der licença.
— Claro, claro… posso lhe dizer uma coisa, então?
— O que é?
— Houveram reclamações aqui perto de um necromante que tem feito… coisas diferentes. — O guarda meneou as palmas, como se uma faca cortasse o pescoço. — Ele tem um grupinho de mortos-vivos, só que até agora não fez nada.
Ela suspirou, era aquele clássico caso de suspeita. Como uma sacerdotisa e uma paladina disfarçada, a obrigação impunha averiguar a circunstância.
Decidiu balançar a cabeça em afirmação, gerando uma breve resposta positiva do guarda. Montou no corcel e agarrou as rédeas, então arrumou o manto preto e coçou os olhos.
— Eu voltarei em breve, pode cuidar da minha protegida por enquanto, nobre moço?
— Cla-claro!
Depois de confirmar a suposição de que aquele guarda era um jovem rapaz, ela seguiu caminho pela estrada de terra.
Sua mente pouco se preocupava com a ideia de Maithe estar sozinha — na verdade, temia mais pela vida dos outros, já que reconhecia uma certa fera interna naquela menina.
Cavalgou pela floresta próxima, atravessando os riachos e bosques em trotes velozes. Entretanto encontrou quase nada, apenas animais e o cântico da natureza.
Então, em meio à busca, avistou figuras incomuns para a paisagem natural. Esqueletos, uma dezena deles, todos armadurados e armados.
Lezandra não recuou perante ao número, pelo contrário, desmontou do cavalo e caminhou lentamente na direção dos mortos-vivos com a espada desembainhada.
— Esse cheiro… ah, me lembra do tempo que essa arte era proibida. — Arrumou os fios que se colocavam no meio dos olhos, antes de apontar o fio da lâmina num ponto entre os esqueletos. — Eu sei que está aí, sua magia não engana meus olhos.
— Droga…
Um dos mortos-vivos foi tomado por uma breve luz que o consumiu, alterando sua forma para a de um homem de idade.
Metade do rosto dele era escondido por uma venda, contrastando com uma tira branca que riscava o cabelo preto.
A paladina fincou a espada na terra e pôs as mãos unidas no pomo, para reforçar um tipo de autoridade em sua postura.
— Não perderei meu tempo, necromante, então serei breve. — Seu tom aumentou, ao ponto de parecer uma ordem de um comandante. — Sei que necromancia não é mais uma arte proibida e faz parte das disciplinas básicas de um mago, mas sua presença tem incomodado os residentes próximos. Posso saber o motivo de tanta atividade sua e também tanta cautela?
— Essa maneira de falar… gulp. — O necromante levantou as mãos e fez os esqueletos soltarem as armas. — Eu sei que você é uma cavaleira, elfa… mas não estou fazendo nada de errado!
— Isso não responde minha pergunta. — A lâmina deslizou para cima, a luz do sol refletiu no fio prateado. — Por qual motivo você controla tantos cadáveres e por que essa cautela?
O vento soprou as folhas e palavras do homem, que permanecia na mesma posição, encarando a afiada espada se aproximar.
Grooohhhhwwww!!!
Aquele causou uma movimentação brusca de Lezandra, em que ela rotacionou o pulso junto da espada e retirou seu amuleto de asas por baixo do robe.
— O que diabos foi isso?!
— Um espírito… — O necromante se escondeu atrás dos mortos-vivos. — Era isso que eu estava querendo me livrar! Essa criatura tem me perseguido até aqui!
Uma ventania fria perambulou pela mata, levando consigo um ar mortífero e o cheiro pútrido de carne em decomposição. Os sons perderam a essência, uma mudez infectou cada cantinho do ambiente.
Os arbustos se dividiram, dando espaço para uma criatura horripilante se esticar entre os galhos. Era pálido, possuía olhos gigantes e vazios, garras largas e uma língua que saltava para fora da boca.
Porém a pior parte estava nos dentes pontiagudos e na roupa branca manchada por um vermelho-escuro. Craques soavam da boca daquele ser, até ele cuspir um pedaço de osso, revestido por saliva.
— Santa Dama Alada… — A elfa separou os pés e elevou a postura, com a espada elevada. — Essa Banshee não é obra sua, correto?
— E-eu juro que não! — O necromante recuou dois passos. — Ela está me seguindo há bastante tempo… não sei o porquê, nem lembro de onde.
— Sigh… quanto azar, velho…
A Banshee tremulou da cabeça aos pés e apoiou as mãos no chão, feito um animal selvagem, então tomou impulso e saltou numa velocidade assustadora para cima de Lezandra.
A paladina devolveu com um rápido corte, que colidiu contra as unhas do monstro e permitiu empurrá-lo de volta em um chute. Mesmo depois de rolar pelo chão, a criatura recobrou o equilíbrio em uma cambalhota e lambuzou os lábios.
— Escute, velho! — Ela tirou do manto um frasco com pó prateado. — Eu lhe ajudarei a matar essa alma penada, só preciso de uma oportunidade!
— Haaa… não é como se eu tivesse escolha.
O necromante girou o bastão para o alto e bateu contra a terra. Raios negros pulsaram na ponta do objeto e voaram na direção dos esqueletos, imbuindo suas armas com uma energia sombria.
A elfa arrancou a rolha do frasco e derramou o pó por cima da lâmina da espada, deixando que ganhasse um devido brilho. Traçou linhas invisíveis acima do fio, enquanto seus olhos vagavam na direção do monstro.
Este, por sua vez, disparou na direção dos esqueletos e riscou a superfície da armadura do primeiro, porém de uma maneira tão brutal que estraçalhou um pedaço do ferro enferrujado.
Outro esqueleto cobriu a lateral de seu amigo de osso e estocou uma lança no ombro da Banshee. O ataque foi certeiro, mas o efeito tinha sido medíocre, ao ponto de possibilitá-la quebrar a lança por pura força bruta e regenerar o buraco em questão de instantes.
Lezandra aproveitou o momento para aplicar pressão, dando a volta no campo de batalha e indo contra as costas do inimigo. Um rápido talho de cima a baixo daria um fim, se não fosse por aquela agilidade demasiada.
A Banshee se jogou para o lado e se esquivou por pouco do ataque, porém não saiu impune. Um baque surdo sucedeu a queda de sua mão, que queimava com um fogo branco.
— Já se foi uma parte! Só mais um pouco!
A paladina não deu pausa, acelerou o passo na direção do inimigo enquanto brandia a lâmina de um lado para o outro. Então subiu a espada num movimento diagonal, um corte limpo cuja força foi suficiente para assobiar pelo vento.
Outra vez a Banshee desviou por centímetros, partículas prateadas arderam sobre o pescoço. Recuou vários passos para trás em rápidos saltos, antes de arrastar as garras pelo piso para diminuir a velocidade.
Entretanto não houveram pausas o suficiente para se recuperar. Três esqueletos encurralaram as costas, dois seguraram cada braço e o terceiro desceu uma marreta na cabeça do monstro, distorcendo aquele rosto já defeituoso.
O necromante mexeu os pulsos e dedos, o chão abaixo da Banshee ficou preto e perdeu a sustentabilidade, afundando as pernas dela lentamente.
— Isso! Cavaleira, a hora é…!
Se ele não tivesse baixado a guarda num momento tão precioso, o necromante teria reparado num detalhe especial que o deixaria lidar melhor com a situação.
A criatura rotacionou os calcanhares e rasgou a terra barrosa, uma série de giros a libertaram da armadilha mortal. Pulou para o alto, direcionou o corpo na direção do velho, que empalideceu ao ver aquela expressão excitada do monstro se aproximar.
— Sabia que isso aconteceria… Protetiundo!
No último instante, centímetros de ser pego pelas garras mortíferas da Banshee, uma barreira se elevou da grama, repelindo-a para longe. Lezandra deixou a lâmina deslizar pelos dedos e num impulso voou no ar.
O fio desceu de maneira limpa, tão perfeito que partiu o vento, assim como as duas metades iguais do inimigo. Porém não acabou por isso, um segundo corte lateral e dois diagonais terminaram o serviço, reduzindo-a a cinzas antes mesmo de chegar ao chão.
A elfa pousou com delicadeza, sua espada se mexeu pelo pulso até se cravar dentro da bainha. Enfim, conseguiu voltar a respirar, uma fadiga recaiu sobre seus ombros, um par de pesos que a obrigou a se apoiar na grama.
— Está… feito…
Ofegava, a testa suava e o amuleto de asas ardia entre os dedos. A barreira caiu e logo o necromante se achegou da paladina, em uma expressão de leve preocupação.
— Você está bem…? O que foi aquilo mais cedo?
— Não importa… já está feito.
Respirou fundo, cruzando olhares com o velho. Retomou a compostura, sua cabeça ainda rodopiava por conta dos efeitos da luta, mas a força de vontade era o suficiente para permanecer de pé.
— Porém eu preciso saber o que você fez para essa criatura persegui-lo… Banshees são monstros sérios, sorte nossa que não houve tempo dela gritar.
— Sobre isso… — Ele meneou a cabeça na direção dos esqueletos restantes. — Receio que haja outros monstros poderosos aparecendo pelo país.
— O que? Impossível. Por qual motivo eles apareceriam?
— Eu não sei… mas garanto que ouvi bastante dos rumores em outras vilas próximas, mesmo que eles não gostassem da minha presença lá.
Um suspiro tirou o restante da coragem de Lezandra. Foi um problema que passou despercebido, mas já estava estourando em proporções maiores.
Olhou para o símbolo do amuleto, e numa ação de boa vontade, entregou nas mãos do velho.
— Obrigada por me dizer, leve isso com você.
— Desculpe, cavaleira, mas eu não acredito em deuses… — Ele abriu um sorriso bobo, esperando a pior reação dela.
— Pois comece a acreditar, homem. — A elfa deu as costas, deixando que o cabelo prateado caísse. — Pois logo logo este país será palco para o caos.
Então, montou em seu fiel corcel, galopando a uma velocidade incessante para retornar à vila onde Maithe estava. Suas preocupações redobraram, uma pontada na mente e no coração traziam um mau-agouro.
A única coisa que se passava na cabeça de Lezandra era chegar de uma vez na basílica, porque o destino de sua terra começou a pender em seus braços, e ela não deixaria esse destino cair… nem que tivesse que usar a própria vida.