O Invocador Sagrado - Capítulo 23
Cassandra mal sabia o que falar, só tinha o desejo de atropelar tudo e achar o bendito druida para se livrar daquela tarefa.
Isso porque, logo na noite passada, seu nível não subiu. Mesmo depois de montar uma pilha de goblins mortos, nada mudou, nenhuma mensagenzinha apareceu.
Seu silêncio e raiva interna só podiam ser explicados daquela forma. Porém o que mais a irritava era o olhar que recebia do amigo toda santa hora.
— Se olhar pra trás é corno.
Foi quase instintivo, Roan manteve o pescoço travado no lugar. A mulher segurou a risada, a brincadeira funcionou com perfeição.
Se não fosse por uma marca maldita que adorava incitar a paranoia, Cassandra poderia quem sabe brincar com o humor da viagem.
— Entãão… estamos chegando a Deus sabe onde ou coisa assim?
— Acho que estamos, Cass, olhe ali. — Ele apontou para um brilho no fim do túnel.
A passagem se abriu numa ampla sala de teto alto. Havia alguns sinais de interferência de terceiros, como uma cerca onde dava para se apoiar.
Tinha dois caminhos para se seguir, uma subida na direita e uma descida na esquerda. A segunda opção levava a um lago no fundo da sala, batizado de “Heinfello” por uma plaquinha.
A loirinha saiu em disparada na frente, só para não controlar os “uaus” da boca e a feição maravilhada que seu rosto tomou.
Era uma paisagem panorâmica bonita, o som da água ecoava como ondinhas do mar e certos passarinhos se acomodavam na vegetação diferente ao redor do lago.
Aquilo remontava a uma visão diferente de Vânia se comparada ao padrão de fundos e paredes monótonas, o que mexia seu espírito aventuresco com balanços.
— Quero ir lá!
— Cass, precisamos primeiro chegar ao distrito, nós não…
— Para com isso, bicho chato! — Cassandra se aproximou de Roan com as mãos na cintura. — Você por acaso não notou que tá fedorento, hein? Cruz credo!
Ela deslizou ladeira abaixo tão veloz quanto o efeito perfurante de suas próprias palavras, só para lavar o rosto com uma água geladinha e fresca.
Melhor que isso só as flores que cresciam ao redor dos chapéus cogumelados nas margens do lago, pois possuíam tantas cores que pareciam um arco-íris.
Seu sorriso se alargou diante do cenário magnífico, ao ponto de imergi-la num sonho acordado em que o lugar existia em algum canto remoto da Terra.
Foi aí que seus dois companheiros chegaram, quebrando a imaginação num piscar de olhos.
— Certo, Cass, eu mudei de ideia. — Roan, com sua postura cansada, se sentou em um cogumelo. — Tome um banho e aproveite o quanto quiser. Ravi e eu iremos depois.
— Ata… — Ela meneou a cabeça e deu uma olhadela por cima do ombro. — Sem espiar?
— Sem espiar.
— Eba!
Enquanto os dois usaram a barragem natural de plantas para não verem nada, Cassandra arremessou as roupas para o alto e jogou na água como uma bola de canhão.
Mergulhou até o fundo, então subiu em um giro, lançando os fios loiros para cima e para trás da cabeça.
A sujeira caiu em pedaços, sentir a terra presa entre os dedos sumir foi um paraíso, mas melhor ainda era desfazer os cachos emaranhados.
— Huumm… delicinha…
Flutuou no lago, a leveza e a frieza a levaram para as alturas. Eram tão paradisíacas as sensações que sua mente voou sozinha para outro mundo.
“Como é bom esse lugar. Estou longe daquele bafo de fumaça, dos vizinhos chatos, do trabalho… Trabalho?
Um clique estourou. A memória do escritório se moldou igual a um espelho quebrado sendo reconstruído.
“Verdade… tem trabalho, né? Como será que estão as coisas lá?”
Imagens passaram numa rápida sucessão de flashes, mas uma em específico captou sua atenção — não por ser boa, e sim pelo pequeno trauma que veio consigo.
Aquele dia se desenrolou normalmente, sem nenhum problema para atrapalhar uma noite de sono. Até que, pouco antes da empresa fechar, houve um incidente marcante.
“Briguei no meu primeiro dia, sim…”
Pior de tudo era o fato de uma superior estar envolvida no caso, o que faria o ato não sair impune.
Porém Cassandra não foi o alvo da punição, na verdade ela sequer sofreu uma indenização, só que saber do que tinha acarretado essa ocasião machucava seu âmago.
A cena continuava vívida nas lembranças, Roan na mesma sala que o chefe do setor e ela do lado de fora, ouvindo tudo.
Naquele dia só pretendia deixar uma papelada e por puro acaso passou por ali, apenas para em seguida escutar uma conversa que não devia.
— Roan, a pessoa que você indicou… — iniciou o chefe, falando devagar. — Ela arranjou problemas, por assim dizer.
— Eu soube, chefe. É por isso que vim aqui.
— Oh? É por isso, então…?
— Sim, quero receber a indenização por ela e também receber o rebaixamento para que ela não seja demitida.
Uma explosão — assim seria descrito o sentimento de Cassandra ao escutar aquelas palavras pela primeira vez.
Por algum motivo, doía o coração lembrar de cada sílaba usada, como se estacas perfurassem seu peito ao se tocar da culpa injusta que ele, seu maior amigo, recebeu.
A sensação não se diferenciava de ser afundada por uma carga impossível de levantar.
— Por que você deseja isso, jovem?
— Porque não quero que ela perca essa oportunidade pela qual tanto lutou, e sei que só assim será possível.
A última coisa que vinha à mente era sua fuga covarde, suas lágrimas fracas e uma correria para fora do prédio, que então levou para uma série crise de raiva no apartamento mais tarde.
Aquela não era a primeira vez que acontecia, muitas outras ocorreram também durante a infância e adolescência.
Todas levavam ao mesmo resultado e a mesma repetição, que invocava uma fúria sobrenatural, por meramente saber que era injusto, e mesmo assim aceitasse.
“Por que você sempre assumiu o risco por mim? Qual o motivo de fazer tanto isso quando eu…”
Cassandra travou no espaço e tempo. Não havia uma vez sequer que o contrário aconteceu, todas eram iguais, todas eram frutos de uma ignorância descontrolada que o machucava de um jeito ou de outro.
“Quando eu só trago problema para você…”
Uma brisa repentina a acordou, um puxão trouxe fôlego aos pulmões. Ela tossiu a água que tapava a garganta, enquanto seus olhos vidrados piscavam sem parar.
Algo agarrou seu pulso e costas, um aperto forte e quente que confortava seu corpo assustado.
— Cass, graças a Deus!
Ela levantou os olhos. Roan estava à sua frente, encharcado da cabeça aos pés e com a mão apoiada em suas costas para não cair.
— O que tá fazendo…?
— Como assim o que? Evitando que se afogue, é claro!
— Evitando que eu me afogue? Então você…
O raciocínio se Cassandra acelerou, não levou dois segundos para seu rosto ficar igual ao de um tomate.
Aquele aperto, a pressão nos seios, o calor repentino… Ele estava perto demais, ele se encostava demais! O pior de tudo era o olhar, que parecia mirado nas curvas sinuosas e no par bem em seu peito.
— Kwaaaahhhh!
O punho de Cassandra involuntariamente acertou o rosto de Roan, nocauteando-o na hora e tirando porções de sangue pelo nariz, além de arremessá-lo feito uma pedrinha saltitante.
Cobriu os seios com o braço e afundou até os ombros, enquanto as orelhas fervilhavam de vergonha.
— Aconteceu algo?! — gritou Ravi, de longe.
— Nã-não! Não acontece nada! Fica aí, moleque!
— Fico sim!
Controlou a respiração agitada, seu coração saltava do peito em meio a situação extremamente vergonhosa.
Um pingo de consciência ao menos resgatou seu senso comum, então a prioridade recaiu sobre seu amigo, que flutuava feito uma bóia de lá para cá.
Nadou na direção dele e o agarrou pelo pulso. Suas pernas bateram rumo a margem, enquanto seus olhos viviam encarando o cantinho que Ravi estava, para ter certeza de que não olharia.
Depois de jogar o corpo dele no chão como um saco de batatas, ajoelhou-se e bateu no rosto uma, duas e três vezes.
Nem mesmo no terceiro tapão aquele idiota acordou, ou seja, o único resultado foram as marcas vermelhas de palmas na bochecha.
O desespero tomou conta de seu corpo, tremeliques mexeram sua estrutura e uma centena de imagens caóticas passaram pela cabeça.
“Aí, o que eu faço? Acorda, homem!”
Chacoalha-lo pareceu a opção correta, pois em questão de instantes ele voltou a vida e gemeu de dor.
— Cass? Au… que que houve?
— Ainda bem que você tá vivinho! — Ela o abraçou com força. — Pensei que bati forte demais!
— Bateu forte demais? Como assim?
— Esqueça, só fique quieto um momento, vai.
Apertou-o um pouquinho mais, grata pela sorte dele ter acordado são e salvo. Novamente levou alguns momentos para reparar num pequeno erro que fez, mas já era tarde demais.
— Eekkk! Nã-não olhe!
Ela se jogou para trás e deu as costas, retomando a vermelhidão das bochechas, além de encolher feito uma bola.
— Cass, você sabe que não precisa disso tudo, né?
Roan inclinou o pescoço para frente e recebeu uma retaliação imediata de um empurrãozinho. Cassandra se afastou um pouco, temendo pela própria pureza.
— Seu pervertido, e ainda diz isso sem o mínimo de vergonha…
— Qualé, eu não ligo para nudez tanto assim. — Deu de ombros. — Você é bonita e eu que não vou ser um tarado para ficar te olhando contra sua vontade.
— Isso é exatamente uma mentira que um pervertido diria…
O invocador suspirou, rendido perante os argumentos afiados dela. Só que preferiria não deixar o assunto terminar batido, por isso tirou a camisa e a colocou sobre os ombros de Cassandra como uma coberta.
Ela levantou as sobrancelhas de surpresa e segurou as bordas da roupa, permanecendo de costas para que seu rosto não fosse visto.
— Idiota…
— Ei, eu escutei. — Afagou o cabelo da mulher e abriu um sorriso. — Ah, lembrei de uma coisa que preciso te entregar.
O pescoço da loirinha foi enrolado por uma cordinha fina, e logo abaixo de seu queixo estava uma peninha colorida. Era bela, de aspecto gracioso e único.
— Sabe, quis retribuir por ter me dado isso. — Esticou o braço, mostrando a pulseira azul que ainda usava no pulso. — Creio que estamos quites agora.
A mulher permaneceu em silêncio, um choque retraiu os músculos e o coração, como se um fio a impedisse de responder ao amigo com tanta naturalidade.
Esse fio invisível era a memória que rebobinava, atormentando até as menores ações. O medo de agir, misturado ao choque do momento, fez o silêncio aumentar.
— Bom — continuou o amigo, enquanto dava tapinhas nos ombros dela —, aparentemente agora é minha vez, então já venho. Ravi!
Os lábios hesitaram, as cordas vocais temeram fazer qualquer barulho. Quando Cassandra se virou novamente, ele já estava longe do alcance de suas palavras.
Apertou o colar, deixando o peso no peito roer um pouco da sensível casca mental que protegia seus sentimentos.
O semblante se distorceu num sorriso triste, as cintilantes íris verdes ficaram distantes e escuras.
Ela preferiu se esconder por um tempo, para se secar e esperar os dois companheiros se divertirem na lagoa.
Sua cabeça ia e vinha com os flashes repentinos, dos quais tiveram que ser reprimidos por uma força de vontade anormal.
“Controle-se!” Estapeou as bochechas, segurando o lacrimejo. “Não é hora, não é hora. Controle a crise, ela não deve te dominar!”
Respiradas longas impediam a ansiedade se alastrar, o tique-taque da memória afiava uma adaga no cérebro.
A aflição repetia num ciclo de caos e discórdia, que lentamente drenava a felicidade de Cassandra para dentro de um turbilhão de emoções.
Então, ao tocar no peito e sentir o roçar da pena entre os dedos conseguiu retomar a consciência tranquila.
Era um sinal de proteção, um escudo contra a infelicidade, um escudo para sua mente tão confusa.
“Não diga isso a si… Ele confiou em você, não o decepcione. Ele gosta de você, por isso não se destrua quando ele deseja tanto te proteger, Cassandra.”
A respiração voltou ao normal, os sentimentos dela retornaram ao habitual clima esquentado, mas não descontrolado.
Abriu um sorriso, um largo que ia de orelha a orelha, precisava manter as esperanças longe da desgraça da vida real.
Adorava aquele sonho, adorava aquele mundo em que a liberdade fluía por cada célula do corpo, adorava estar ali com Roan por quanto tempo quisesse, enquanto suas obrigações ficavam de lado numa realidade da qual já não era mais sua.
Outra vez o alívio encobriu os pensamentos ruins, lançando um véu de positividade sobre a mais profunda negatividade.
Tocou na bochecha, abobalhada demais para imaginar em qualquer outra coisa que não fosse a aventura até então, mesmo com os momentos ruins.
Instantes depois, escutou o som da água quebrar. Decidiu manter o pescoço no lugar, odiaria ver os dois patetas nus após tamanho sufoco. Inflou as bochechas, contorcendo-se internamente para sair dali.
— Bem, eu tenho uma surpresa… — disse Ravi, mexendo numa parte da túnica. — Eu sabia que vocês esqueceriam, então empacotei todas as roupas dentro da túnica e guardei pra algum momento.
— Ravi, você é um gênio! — elogiou Roan, bagunçando o cabelo do menino. — Ouviu, Cass? Já pode largar minha blusa!
— Ouvi… calma, blusa?
Havia esquecido da coberta sobre os ombros. Jogou-a para longe por instinto e voltou a roer as unhas, com uma vontade enorme de esconder o rosto debaixo da terra se o chão não fosse madeira.
— Aliás, Cass… vou deixar sua roupa bem aqui, em caso de privacidade.
Ela deu uma breve espiada para onde a muda ficou e a puxou depressa, sem dar tempo para Roan reagir. Vestiu as calças pretas apertadas e botas, terminando com uma blusa roxa e jaquetas de manga curta.
Esperou alguns momentinhos, até a barra estar trajada e ser seguro para sair do esconderijo. Ravi manteve o estilo badboy cheio de tons vermelhos, enquanto Roan ainda tinha aquele padrão pacato.
— Cass? — Olhou para ela saindo da moita. — Já podemos ir?
— Uhum, podemos…
Saiu devagar do esconderijo, batendo os pés antes de sair na frente e relaxar os ombros. Deu uma giradinha, deixou os braços perderem a tensão e o quadril balançar de um lado ao outro.
— Ceeerto! Vamos nessa, cambada!
A Cassandra de antes retornou triunfante, com um humor tão disparado que correu na primeira oportunidade, forçando os dois a persegui-la pelo corredor de cogumelos brilhantes.
Ria sozinha, saltitava sem motivo e demonstrava um sorriso quase divino. Isso até um craque soar debaixo de seus pés, o piso de madeira se torcer e um buraco abrir.
— Kwaaaaaa!!!!
E então, ela caiu rumo à escuridão, apenas para ver o último clarão de luz ser tapado pela altura. Antes de tudo apagar, viu o rosto dele… o rosto de Roan, seu melhor amigo.
Gritos a chamaram na distância, até que tudo ficou mudo. Um baque surdo sucedeu uma dor lacerante em suas costas, os sons viraram zunidos agudos no ouvidos.
Ela foi abraçada pela dormência, para em seguida cair num sono doentio, sem saber da pequena luz que flutuava acima de sua cabeça.