O Invocador Sagrado - Capítulo 24
Roan perdeu qualquer reação, um desespero fez o rosto empalidecer ao notar onde sua amiga havia caído.
Mal dava para enxergar algo de tão escuro, as mãos mal conseguiam encontrar alguma coisa passível de toque ali dentro.
— Cass!! Cassandra!
Seus gritos ecoavam para o nada. Nenhuma resposta, apenas o silêncio como um presente de grego para o medo paranóico dele.
Suas pernas tremeram. Ela não poderia estar morta, poderia? Será que a queda foi grande? Será que ela estava bem? Roan mordiscou as unhas, cabreiro quanto às peças que seu cérebro insistia em pregar sobre o paradeiro da amiga.
— Senhor Roan! — Ravi o puxou de último instante, evitando uma queda para dentro do buraco.
O invocador suava frio, indeciso entre morder os lábios ou as unhas, e ainda assim um martelo consciente batia para descobrir logo o que aconteceu.
Levantou-se do chão e bateu as roupas, cerrando os punhos e fechando o rosto numa certeza absoluta. Respirou fundo, precisava conter os ânimos e o medo, eles não ajudariam para uma situação daquelas.
— Certo, precisamos ir atrás dela. — Coçou o cabelo, encucado em como chegar lá embaixo. — Vamos seguir o caminho por enquanto, desceremos o máximo possível, ok?
— Entendido… quer que eu vá na frente para me certificar do caminho?
— Se você não for visto, sim.
Ravi acenou em concordância e num piscar de olhos literalmente desapareceu da vista do homem. Ele mexeu a cabeça de um lado para o outro, pensando que estivesse alucinando.
— Ravi não é um surto coletivo, é…?
— Claro que não sou, senhor Roan, muito ofensivo… — respondeu o vento, num tom muito igual ao do rapaz.
— Eu estou ficando louco!
Um leve tapinha nas costas pareceu recobrar os sentidos de Roan, ao mesmo tempo que provou que ele ou estava louco ou que Ravi podia ficar invisível. Preferiu optar pela segunda opção.
Apontou na direção do corredor. Não houveram passos, o que fez a mente dele outra vez imaginar que um fantasma ou delírio o assombrava.
Após momentos de espera, o vento mais uma vez disse: — Barra limpa. Podemos continuar por enquanto, mas permanecerei na frente.
— Concordo… ah, Deus, só vamos logo!
Apertou o passo, seguido por uma sombra sem cor que marchava pouco mais a frente de si. Engolia o caminho com os olhos, ávido o bastante para se assustar com o menor detalhe.
Os corredores labirínticos voltaram a causar a sensação de estar perdido, porém pior que isso eram as agulhas constantes no pescoço, o mesmo pressentimento de ser observado.
O caminho estranho levava a mais encruzilhadas que por sua vez não deram em resultado algum.
Depois de tanto caminharem, veio o primeiro sinal de desistência, em que Roan colocou as costas contra a parede e suspirou pesadamente.
— Arff… onde já estamos?
— Aquela placa diz “Subúrbios do Andar Inferior”.
— Que placa você está querendo dizer?
— Aquela ali.
— Ravi, eu não te enxergo!
— Ah, é mesmo…
Os olhos do homem procuraram pela tal placa, e logo a encontrou pendurada no topo de uma entrada menor numa parede.
Possuía a mesma coisa que Ravi falou, porém o que chamou atenção foram os cortes na lateral e o excesso de tintura na madeira, semelhante à desenhos de giz feitos por crianças.
Ele atravessou a passagem, só para se deparar com uma gigantesca fenda que ia se aprofundava numa escuridão bizarra.
Lá de cima, via pequenos focos luminosos distribuídos entre um conjunto de casas quadriculadas, que se amontoavam uma em cima das outras e faziam divisa com uma avenida no meio.
Colado na parede havia uma rampa que circulava por toda a extensão da cidadezinha, providenciando uma conexão entre todos os pontos diferentes daquele lugar.
Engoliu seco, era uma altura grande demais para ser qualquer coisinha pacata. Algo tocou seu ombro, fazendo-o dar um salto para trás. Como diabos as pessoas conseguiam se aproximar tanto sem fazer barulho?
— Opa, foi mal, camarada… — desculpou-se o sujeito estranho, enquanto acenava. — Só percebi que você acabou de chegar e parece meio perdido, né?
Roan analisou a pessoa da cabeça aos pés e torceu o cenho, aparentava ser o tipo de pessoa que Piettra comentou horas atrás, um elfo negro.
Cor de pele cinzenta, cabelo prateado, escleras escuras, orelhas pontudas, as características batiam com a “imagem” da contraparte da raça.
“Ele parece meio… normal”, pensou, receoso pelo que poderia falar. “Será que elfos são racistas também? Eu não achei nenhuma novidade… é um pouco demais julgar o livro pela capa, né?”
— Eu… eu estou procurando por uma pessoa, na verdade. — Levantou os ombros, tentando reassumir uma boa postura. — Uma mulher.
— Ohhh, veio ao lugar certo! — O elfo colocou as mãos por cima dos ombros dele e o empurrou para a rampa. — Eu conheço um bordel aqui perto, um dos bons. Lá deve ter a garota dos seus sonhos.
— Bor-bordel?! Não, não! Eu estou procurando por uma amiga minha!
— Ahhh, devia ter dito logo!
Roan se soltou das mãos do estranho depressa. Ele não esperava ter que encontrar uma situação vergonhosa tão depressa, era preciso foco para resolver logo aquela questão.
— Ela é humana que nem eu, loirinha e baixinha. — Gesticulou as mãos no ar para entregar mais ou menos as medidas dela. — E também, enquanto passávamos aqui por perto, lembro dela ter caído num buraco…
— Cair num buraco? — Estalou os dedos. — Ora, então talvez ela esteja na Alameda Escura.
— Alameda Escura?
— É um ponto turístico aqui perto… se quiser, só me acompanhar que chegaremos lá rapidinho.
“Bem, eu tenho escolha? Pelo menos esse cara tá sendo legal, eu acho…”
O homem balançou a cabeça positivamente, então o guia passou a descer pela rampa devagar para ter certeza de que não o perderia facilmente.
Continuaram a se aprofundar na fenda, e só assim Roan começou a distinguir como o lugar era bem mais cheio do que aparentava.
Era fácil de escutar a barulheira e a quantia de passos nas avenidas de lá, além de ser possível distinguir uma zona comercial cheia de mercadores.
Não demorou para que parassem no fim da rampa e dessem de cara com a entrada principal para a cidadezinha. Um arco de pedra gravava o nome do lugar, chamado “Foço de Raízes”.
Não era nada adequado, porém fazia jus ao nome, pois as casas e estruturas eram cercadas por raízes, que se conectavam ao piso musgoso.
Roan erguia as sobrancelhas de espanto a cada detalhe novo que surgia, desde a presença de aventureiros que há tempos não via ou a coletânea de serviços
Isso incluía as entradas de estabelecimentos apimentados, onde certas elfas gostavam de se agarrar aos clientes próximos.
Só restava saber o caminho para a tal Alameda Escura. O elfo negro se colocou perto de uma passagem logo antes do arco, que era bastante escura.
— Falta muito? — perguntou Roan, estreitando os olhos para dentro da passagem.
— Só mais um pouco, companheiro… eh. — Ele hesitou em dar um passo, então virou a cabeça para trás. — Qual seu nome, só pra saber?
— É Roan, e o seu?
— Zindani, prazer. — Um sorriso se alargou naquela expressão animada. — Bem… eu esqueci de avisar, mas é possível que ela esteja aqui, não uma certeza.
— Hã? — Torceu o cenho, repentinamente intrigado pela mudança de assunto breve. — O que você quer dizer?
— Lhe explico no caminho, só temos que ir depressa.
Roan novamente concordou. Ambos seguiram pelo corredor, enquanto Zindani tratava de trazer uma maneira de elucidar o porquê da possibilidade de sua amiga ter parado lá.
Primeiramente, a árvore era um grande organismo que necessitava de reparo constante, seja por conta do número de caminhos ou para manter a infraestrutura gigantesca de Vânia.
Porém os consertos eram mais comuns nos andares superiores, em que o movimento e a quantidade de pessoas aumentava substancialmente.
Nos andares inferiores, por outro lado, o reparo seria menos frequente por conta da baixa densidade populacional.
Logo, tornou-se muito comum pessoas despencarem de uma passagem presente nos andares inferiores. Para a sorte deles, a maioria dessas quedas levava direto à Alameda Escura.
O evento era tão comum que o lugar ganhou um nome secundário, chamado Alameda dos Derrubados. No entanto, a queda nunca era alta o suficiente para trazer problemas.
— Por que é chamado de Alameda Escura? — questionou Roan, ao perceber que a iluminação permanecia igual.
— Imaginei que perguntaria isso. — Zindane pegou uma vareta na parede, cuja ponta era revestida por uma rocha áspera. — Sabe, foi inteligente a prefeitura ter disponibilizado essas tochas… como são chamadas mesmo? Fósforos?
“Fósforos?”
— De qualquer forma, leve isso. Eu não preciso, mas pra acender é só riscar em qualquer lugar que é num instante, sabe.
— Ok…? — Apanhou a vareta, o cheiro forte lembrava enxofre.
Conforme a travessia demorava, menor era a presença de cogumelos brilhantes. Só assim Roan entendeu o motivo de receber uma tocha, e logo a riscou em qualquer lugar perto para ter o mínimo de luz.
Era um breu sem fim. Mesmo após a alameda se estender numa larga coletânea de diversos fungos, não houve sinal de mais uma alma viva.
As preocupações continuaram a aumentar, o peso na consciência redobrou ao ver que a busca levava ao absoluto nada.
Roer as unhas era uma breve fuga da paranóia, que não parava de persegui-lo em meio a escuridão.
Zindane, por outro lado, parecia tranquilo de uma forma desnecessária. As poucas escaladas e descidas não o cansavam e andar por ali era natural como respirar.
— Ei, só por curiosidade, o que vocês vieram fazer em Vânia? — Ele olhou por cima do ombro. — Não é pra qualquer um vir pra cá, sabe…
— Foi um desvio, por assim dizer — respondeu depressa, ao mesmo tempo que afastava os delírios. — Íamos para outro canto e viemos aqui por culpa de um idiota.
— Ah, sei como é. Eu também parei aqui por conta de um idiota, sabe? O infeliz roubou todo meu dinheiro e não pude ingressar na minha faculdade de magia dos andares superiores…
Pelo semblante irritado de Zindane, Roan preferiu evitar continuar o assunto, já que aqueles punhos cerrados estavam perto de estourarem.
Outro momento de silêncio se pôs entre eles. A conversa podia muito bem continuar com a simples pergunta de descobrir o motivo de nada estar pegando fogo só por Roan levar o graveto flamejante, porém achou melhor não comentar.
Repentinamente, Zindane se encostou na parede e empurrou o companheiro junto. Imediatamente pegou a tocha das mãos dele e a pisou até apagar as chamas.
— O que você tá…
— Shhh!
O invocador fechou a boca. Mirou os olhos para o nada. Era impossível de enxergar, porém teve a certeza de ouvir passos, um clap clap constante em meio às sombras.
Uma coisa disforme se movia por ali. Pareciam pessoas e um tipo de quadrado metálico, ao julgar pelo som de batidas do lado de dentro.
Roan imaginou ser um tipo de caravana, ou quem sabe ladrões. Enquanto ponderava sobre a movimentação das penumbras, um sussurro veio até seu ouvido:
— Senhor Roan, Cassandra está dentro daquela cela!
Uma explosão consumiu sua mente. Os dedos tremeram, uma raiva flamejou dentro do coração, só por ter a mínima ideia de que ela estava logo ali, não muito longe de seus braços.
— Ravi, me traga uma espada, agora.
— Ei, shhh, cara… — disse Zindane, que demonstrava um certo pavor de ser pego.
Roan o ignorou completamente e esperou até que uma espada magicamente fosse entregue em suas mãos.
Não perdeu tempo, tirou o diário do bolso e arrancou a última folha, justamente onde estava um círculo de invocação.
Contudo os símbolos eram diferentes, o sol e a lua foram substituídos por ondas e uma gota d’água. Essa seria sua verdadeira cartada.
Apoiou a espada em cima da folha, ao mesmo tempo que espantando o pobre elfo negro que lhe guiava por ritos tão bizarros.
Roan sentiu a onda de mana ser drenada do corpo, mas pouco importava. O símbolo brilhou num azul-ciano, a luz se transmutou em um grande pilar que emitiu um clarão no ambiente.
Um ribombar de água soou, um objeto afiado deslizou sozinho pelo ar. O invocador segurou o cabo daquela arma invocada com força, as veias se dilataram pelo braço.
⠀
⌈ ⌉
⧫ Glifo de Invocação de Equipamentos ⧫
Rank — Passivo
⠀
Uma variação do Glifo de Invocação.
Permite ao usuário invocar
equipamentos e misturá-los
com outros ingredientes,
criando novos itens.
⠀
Este glifo é permanente.
⌊ ⌋
⠀
— Chefe, tem um humano vindo na nossa direção! — alertou um dos integrantes daquela caravana. — Ele… ele está armado com uma espada de água?!
— Vão para cima deles, idiotas! É só uma espada de água, não fará nada!
Uma pessoa disparou na direção de Roan. Não via direito em meio a escuridão, seu braço se moveu por instinto, guiado por linhas geladas da espada.
A lâmina subiu num corte só e partiu uma cimitarra ao meio, deixando duas bandas de metal caírem para os lados.
O grupo de elfos se assustou, aquele que perdeu a arma hesitou em dar um passo para frente diante do olhar enfurecido do homem.
Sim, a espada por si só não faria nada, mas um invocador furioso conseguiria ser o pior pesadelo que alguém poderia enfrentar.