O Invocador Sagrado - Capítulo 25.1
Como Diilan sairia daquela situação? Talvez implorar para Piettra? Bem, era muito difícil de planejar dentro de uma cela numa delegacia tão fortificada como as do Distrito das Rosas.
Só de olhar pela janela de barras no topo do cômodo dava uma vista que explicava e muito o nome do distrito.
O lugar era rodeado por um muro de roseiras que em certos pontos — principalmente as delegacias — se transformava num labirinto vivo.
“Nem se eu tivesse uma invocação eu poderia sair daqui… Espere, como Roan invocou sem um círculo de invocação? Eu lembro dele só bater as palmas, o que será que aconteceu pra dar certo?”
A dúvida permeou pelo cérebro. A única maneira, ao menos pelo que aprendeu pelo seu mestre, era por meio de um círculo de invocação completo. Seria tão útil se soubesse essa técnica de invocar sem círculo justo naquele momento…
Tap tap tap
Girou a cabeça na direção do som, seus olhos se encontraram com a boa e já conhecida Piettra, que continuava com seu uniforme militar e postura ameaçadora. Diilan sorriu, era sua chance.
— Opa, opa, Piettra! — Meneou as mãos, abrindo os braços. — Finalmente vou ficar livre?
— Não — respondeu, fria e apática como era de se esperar. — Você virá comigo, pestinha.
Ela puxou algemas amadeiradas atrás do fardamento. Aquele riso sádico fez o nobre tremer da cabeça aos pés, parecia um demônio pronto para abocanhá-lo.
Uma pena que resistir não funcionou. Piettra era muito mais forte, em questão de instantes o deixou contra a parede e prendeu os pulsos dele, podendo assim forçá-lo a andar com breves empurrões.
“Droga! Eu tô mesmo encrencado!”
Caminhou pelo corredor da delegacia com resmungos e gemidos de dor. A mulher sempre era bruta demais, como se fizesse questão de fazê-lo sofrer antes do próprio julgamento.
Ela destrancou uma porta, dando em uma sala de paredes escuras, com duas cadeiras separadas por uma mesa quadriculada. Magia fedia ali dentro, era uma energia pesada presente em cada partícula do ar.
Diilan já imaginava onde toda a tensão ia parar, por isso resolveu acabar de uma vez e pegou seu assento numa cadeira.
Analisou o lugar por um momento, reconhecendo traços de uma magia negra feita para omitir sons, a levar em conta o eco que seus estalos de língua produziam.
— Vamos direto ao assunto — disse a elfa, que arrastou a cadeira para trás e bateu o punho na mesa. — O que diabos aconteceu depois de você ter falado com a família Shemov?
— Sigh, sério? Depois de meses sem me ver, essa é a primeira pergunta que vem à sua cabeça? — Deu de ombros, relaxando na cadeira.
— Responda, Diilan… Não quer que eu vá para meios mais extremos, quer?
Gulp.
Remexeu um pouco a gola da roupa, trincando os dentes para achar uma maneira de evitar o assunto. Entretanto, era inútil esconder, ainda mais encurralado em uma situação tão complicada.
— Nada, falo sério dessa vez. Eles tentaram me convencer a comprar as armas que eles fabricam. — Deu uma pausa, batucando os dedos na mesa. — Só que eu não sou admirador de espadas e machados, né…
— E o que houve depois? Por qual motivo desapareceu?
— Hah… espero que tenha tempo, a história é longa.
— Tenho bons séculos pela frente.
Piettra cruzou os braços, um sinal de que realmente existia tempo de sobra. Diilan coçou o cabelo, sua mente processou como descreveria toda a enrascada.
Então, meneou a cabeça para o lado e estreitou os olhos. Era uma memória não muito boa, mas necessária para o momento.
“Tudo começou no Festival da Lua do ano passado, depois que conversei com os Shemov. Eles são gente fina, sabe? Uma família nobre de orcs, claro, mas gente fina.
Porém no meio do festival eu notei uma movimentação estranha. Tinha um certo número de elfos negros, o que é comum… se a maioria fosse mulheres, e não homens.
Não é preconceito, ok? Tanto que mais tarde rolou uma confusão, aposto que você lembra bem. Quase raptaram até uma das Damas da Lua, o que mais tarde causou um puta alvoroço na nobreza.
Então… houve aquela repressão da imperatriz, claro. É aí que surgiu o problema, eu fui pego nesse caos, todo mundo queria apontar uma arma pra mim.
A gota d’água foi quando eu estava voltando da faculdade de magia. Uns caras me esculacharam, e então um velhinho me salvou com umas… magias diferenciadas.
Eu vi essas magias com meus próprios olhos e quis aprendê-las, sabe. Também era bem broxante a academia, então preferi ir com ele.
Nisso descobri umas coisinhas interessantes. A primeira, é claro, será segredo, já que são as técnicas do meu mestre. A segunda é o que vai lhe interessar mesmo…
Há um grupo especializado em magia negra, um bando de fanáticos que profetiza a lenda do Paladino Supremo da Ordem e do Bruxo-Mestre do Ocultismo, dizendo que seu mestre, Jigral, retornará para livrar o mundo de impuros.
Sabe, não é como se todos os países imediatamente repugnassem qualquer religião, porém esses caras são muito loucos, usam uns rituais macabros.
Atualmente eles se chamam Sexto Olho e vivem pilhando lugares mais remotos pra se manterem.
É engraçado que vi isso bem de perto, e tinha de tudo. Sacrifício de crianças e mulheres, orgias e vários outros crimes hediondos dos quais prefiro não comentar.
Aquelas brutalidades eram o suficiente para deixar um homem louco, tanto que depois desses eventos eu não queria mesmo voltar pra cá.
Você consegue imaginar como seria ficar entre as pessoas, sabendo dessa verdade macabra e tendo que fingir que não vi? Tudo porque sou um nobre e não devo causar escândalo à minha família.”
— Bem, estamos entendidos?
Silêncio. Pela feição fria de Piettra, chutou que ela o analisava para encontrar uma mentira ou estava chocada e não transparecia direito.
Por algum motivo Diilan dizia tudo com um sorriso cínico, o que pesava o ar da sala. Era difícil achar ao menos um traço de empatia naquele idiota, levando em conta que ele não deixava escapar uma singela emoção diferente de diversão.
A oficial tateou os dedos e bateu o pé, reações nítidas o suficiente para o condenado deitar a cabeça em cima da mesa.
— Difícil de acreditar? Não menos esperado. — Fechou os olhos, demonstrando o clássico semblante idiota. — Sério, o que eu vi lá fora junto do meu mestre… daria pra passar uma eternidade contando.
— E por que você voltou se era o que estava evitando?
— Por que? Eu te disse, pra passar um aviso a um certo alguém importante, não às autoridades. Não é como se vocês fossem ajudar…
— Não seja ridículo, Diilan, a polícia do Império Vaniense é a melhor do continente. — Ela levantou o dedo indicador, apontando para o lado. — Não é atoa que estão escutando tudo dali. Incluindo seus pais.
Diilan virou o rosto na direção indicada. Um grande painel de vidro escuro estava lá, e com um pouco de atenção era possível discernir silhuetas que cobriam um lado ao outro.
— Que ridículo…
— Sua boca sempre é solta demais, rapaz. — Piettra apoiou o cotovelo na mesa e deixou um punho no queixo. — Que tal agora comentar sobre o tal aviso?
— Tsc… como se eu fosse dá-los esse aviso.
— Por qual motivo?
— Um bando de brutos que só sabem da lei não tem capacidade de discernir magias. — Ele abanou a mão, como se espantasse um mosquito invisível. — Se eu perguntasse a qualquer um dali para dizer o que é druidismo, feitiçaria, piromancia, evocações, invocações e outros vários “ções”, “mancias”, “ismos” e “rias”, nenhum saberia contar a diferença da maneira certa.
Outra vez um impasse. Piettra espiou a parede de vidro, o rapaz fez o mesmo, notando uma movimentação esquisita ali.
Preferiria nem passar pelos próprios pais se pudesse. Caso fossem usados para coagí-lo, ele não pensaria duas vezes em simplesmente imaginar que não existiam.
“Vão se foder, seus dois velhos…”
Por sorte, não era isso o que aconteceria, ao invés ele foi retirado da sala e empurrado de volta para a cela em que estava preso.
Piettra mais uma vez o levou até lá, e ela mesma trancou. A chave ficou com um guardinha no posto, assim a oficial pôde ir embora.
No entanto, lançou um olhar penoso sobre Diilan, que só deu de ombros em resposta. Sozinho dentro daquele espaço confinado, deitou a cabeça na parede.
“Ah… como eu queria sair daqui…”, pensou, enquanto encarava o piso amadeirado. “Como o mestre falava: ‘Uma invocação só ocorrerá se o círculo estiver desenhado, do contrário, será uma falha’. Não tem nem como fazer um…”
Seus olhos pousaram nos dedos. Não havia tinta, nem uma pena para replicar o círculo de maneira precisa. Era um beco sem saída, uma vala onde iria apodrecer.
“Espere… ‘se o círculo estiver desenhado’, se estiver desenhado… É isso!”
A felicidade de Diilan explodiu. Tinta não era necessária, era preciso do desenho, independente do tipo de material usado para a fabricação.
Aproximou um dos dedos da boca, suas presas morderam a pele, furando-a ao ponto de uma gota de sangue cair.
“Eu não vou esperar na cadeia enquanto o mundo explode. Sairei daqui agora!”