O Invocador Sagrado - Capítulo 26
A curiosidade de Roan às vezes o transformava em uma pessoa ousada. Até então foi pura especulação e atuação baseada numa série de fatores, como o fato de Joaum ser o líder do Círculo.
Sua suposição foi certeira, porém não era o mero elemento que lhe chamava atenção, e sim uma lembrança pouco distante da conversa com Arillumia, a fênix.
“Escute bem, invocações não se limitam a um único tipo de círculo, muito menos precisam ter apenas dois símbolos para funcionar. Isso permite combinação elementar, unir mais de um elemento e criar uma criatura que seja a fusão das duas.”
Aquela fala permaneceu na cabeça por bastante tempo, e enfim era hora de colocá-la em prática.
Como se não bastasse, uma invocação possivelmente mais poderosa seria o essencial para lidar com quaisquer inimigos pela frente durante o resgate de Cassandra.
Existiam outros pontos importantes que Arillumia pontuou na conversa, porém eram impossíveis de atingir no momento atual. Ao menos, era um meio de cumprir o pedido dela, só faltava as outras partes.
Ele abaixou o rosto e se afundou nos pensamentos. Formas vieram à mente, inúmeros tipos de criaturas, todas centradas em resolver a questão.
Joaum suspirou, observando-o cair numa imaginação caótica. Estalou os dedos, imediatamente Roan levantou a cabeça para olhá-lo.
— O que foi?
— Não quer pegar alguma coisa da pilha ali? — Indicou com a cabeça. — Irá precisar.
— Oh, é mesmo…
O invocador puxou a atenção direto para a massa de itens. Levantou-se da cadeira e agachou perto deles, suas mãos tocaram as diversas lâminas e tecidos, em busca de algo interessante.
Não ia levar nenhum cajado, pois o que Lezandra emprestou já estava de bom tamanho, e também porque temia mais mensagens como aquela.
Entretanto, não havia nada de especial que quisesse levar, ou nada que aparentasse ser de valor. Até que seus olhos pararam numa pequena orbe de cor esverdeada em meio aos objetos.
— Joaum — chamou, apanhando o orbe —, isso é um cristal mágico?
— Sim, do elemento terra ainda por cima. — Ele encarou de volta e coçou a barbicha. — Você quer levar isso?
— Agora que você confirmou, sim, quero.
— Oh… bom saber que você vê valor em coisas assim.
“O que ele quer dizer com isso? É um cristal mágico de terra, então funcionaria se fosse usado como material de invocação, não é?”
Era muito difícil tentar compreender os pensamentos de um mendigo tão erudito quanto Joaum.
Ele parecia bem tranquilo, o que só aumentava a certeza de Roan que tinha um detalhe a mais não percebido.
Após escolher o item — e somente o orbe —, o arquidruida afastou os móveis e pediu para Vaneza recolher os pertences mágicos.
O cômodo ficou bastante vazio, para dar espaço ao centro, onde uma luz permeava por um buraco no teto, iluminando um ponto que Roan não tinha notado antes.
Riscos traçavam um círculo perfeito ao redor da luz, destacando a imagem de um círculo de invocação preparado.
Diferente dos demais, aquele possuía uma montanha e uma rocha desenhada nas posições respectivas do sol e da lua.
Joaum sentou-se do lado de fora do círculo e chamou o companheiro com um breve aceno de mão. Ele se aproximou e fez o mesmo, enquanto analisava o círculo.
— Vaneza e Ravi, podem sair por um tempo? — indagou o arquidruida, apontando para a saída. — Precisamos de privacidade.
— Eh… é sério mesmo que tenho que sair? — questionou Ravi, que ganhou uma carranca ao encarar a menina loira.
— Lhe dou um item mágico a mais se fizer esse favor.
As duas palavras surtiram um grande efeito, Ravi desapareceu num piscar de olhos e ficou do lado de fora, seguido por Vaneza alguns segundos depois.
Um momento de silêncio antecedeu a aparição de um cogumelinho, que ficou parado no meio do símbolo.
Joaum cruzou as mãos acima do fungo, um brilho invadiu o círculo e uma luz esverdeada tomou conta da sala.
Uma explosão de luz contaminou o ambiente. Quando o clarão abaixou, Roan viu que o pequeno fungo aumentou um pouquinho de tamanho, mas continuava sem ser tão assustador.
— Então… é só isso?
— Ah, sim, é só isso. — Coçou a nuca. — Meio que invocação não é o meu forte, eu só sei o círculo.
— Como que você é o líder do Círculo se nem suas invocações são fortes? — A sobrancelha se ergueu bem alto.
— Olha, na época precisavam de um líder, qualquer um que fosse… eu fui escolhido a força por conta de ser um arquidruida e ter capacidade de ajudar meus companheiros, mas não é como se minhas invocações fossem fortes.
— Tá, eu acho… posso pelo menos desenhar os símbolos? — Ele sacou do bolso o diário junto de um frasco de tinta.
— Claro, vá em frente.
Roan foi ligeiro, desenhar círculos de invocação lentamente se tornava uma segunda natureza. Era tão natural que o diário estava quase cheio de páginas com círculos.
“Vou precisar de um diário novo logo…”
Se pudesse descrever, o meio de invocar não era tão complicado. A única coisa importante eram os símbolos usados e a visualização mental do alvo, de resto bastava ter mana.
“Eu imagino quem era a pessoa que criou e ensinou isso para ser tão simples assim…”
As cortinas foram empurradas de repente, um grupo de três pessoas invadiu a moradia sem aviso prévio. Roan virou a cabeça depressa, assustado com a rapidez com que chegaram.
Até segurou no cabo do cajado enrolado nas costas, porém a preocupação foi desnecessária. Joaum o segurou pelo ombro, então acenou com a outra mão aos recém-chegados.
Só esse gesto fez o invocador parar e analisá-los. Todos estavam vestidos com um manto verde, revestido por folhas e galhos. Um em especial usava um colar de presas no pescoço.
Roan suspirou, o susto foi desnecessário, até conseguia imaginar quem eram aquelas pessoas.
— Com licença, mestre Joaum — falou o do colar de ossos. — Encontramos o que pediu e nosso espião também reconheceu a pessoa específica… a anã loira.
— Cassandra?! — O Invocador se ergueu num salto, ansioso para saber mais.
— Sim… essa Cassandra. — O druida afirmou com a cabeça.
— Preciso ir logo!
Outra vez Joaum foi o freio para os ânimos de Roan. Ele o puxou pela gola da roupa, quase fazendo-o escorregar no chão.
— Primeiro vamos escutar as informações que eles têm, depois pode correr para procurar sua amiga, ok?
— Ah, ok… foi mal.
O invocador parou de fugir, cruzou os braços e se manteve quieto pelo tempo que fosse necessário.
Atentou-se às palavras dos informantes, realizando anotações mentais da descrição da base dos bandidos, da vigilância e como chegar lá.
Ao terminarem o longo relatório, os três saíram com um rápido pedido de licença, deixando-os processar a informação trazida.
— Eles disseram que há um meio para entrar pelos subúrbios, não? — comentou Roan, que ganhou um sorriso no rosto.
— Sim, comentaram… o que você pretende fazer?
— Se você quiser tirar uma vingança quanto ao que esses bandidos fizeram a sua filha, eu te direi.
Como sempre, aquele homem de olhos de peixe morto sempre possuía uma cartada na manga. A melhor delas era sempre induzir as pessoas, e Joaum não estava fora desse poder.
*****
O cochilo que Cassandra teve era o melhor nos últimos tempos. Piscou duas vezes, aos poucos enxergando sombras numa escuridão profunda.
Distinguiu pequenas tochas, um conjunto de grades à frente, uma parede suja e porções de lama aqui e ali. Quando mexeu o braço, um puxão repentino fisgou o outro.
Seus pulsos estavam presos por algemas de ferro velho no muro atrás de si, com pedaços de ferrugem acumulados na região da chave e nas correntes.
Um ribombar metálico soou do lado de fora, semelhante a vários pedaços de aço sendo batidos ao mesmo tempo.
Cassandra ergueu o queixo, uma pessoa passou reto pela cela. Era um cara de cabelo longo prateado e pele escura, além de orelhas pontudas e escleras pretas.
— Ei, fia da puta.
O elfo parou no meio do corredor e virou a face para dentro da cela. A feição espantada dele dava até graça, puxando um riso da mulher.
— Que foi? Tá vendo um fantasma, arrombado?
— Eu sei lá, só tô. — Ela esticou um braço de cada vez, mesmo que as correntes puxasse de volta. — Mas me diz, me sequestraram ou coisa assim?
O bandido começou a ficar irritado a julgar pelos dentes da rangendo e a mão no cabo de uma manchadinha presa à cintura.
Era de se esperar que o sujeito estava nas últimas e em pouco tempo descontaria alguém, e foi exatamente como previsto.
Ele destrancou a porta da cela, adentrou e apertou o passo na direção dela, enquanto desafrouxava o cinto na calça.
— Sabe, ‘cê serviria como uma boa escrava, mas não deve fazer mal tirar um pedaço seu.
— Ui ui, com esse negocinho mixuruca aí? Você é o que, broxa? — O estômago passou a doer de tanto conter a risada.
— Sua vagabunda, você vai…
Uma pena que a voz do elfo afinou tanto ao nível de não ser possível entendê-lo mais.
Cassandra tinha acabado de acertar um chute no meio das pernas e dá-lo um sofrimento que reverbaria pelas próximas gerações , se é que houvesse.
Para finalizar o serviço, um segundo chute o atingiu no rosto assim que ele se abaixou para pegar no lugar ferido, o que facilitou o trabalho.
A força aplicada foi o bastante para derrubá-lo feito uma pobre Cinderela. Àquela altura, um boa noite era muito melhor que uma sessão de tortura nas bolas.
— Não creio que eles esqueceram de algemas as pernas, bando de otários… — Abaixou-se e abocanhou a chave no bolso da camisa dele. — Hoa di sai daqi.
Duas giradas da chave correta e se libertou das algemas. Cassandra massageou os pulsos e assoprou as marquinhas vermelhas, além de espantar parte da ferrugem das mãos e poeira do corpo.
Apanhou a machadinha, o fio sujo e o cuidado porco com a arma a enojava, porém seria uma ótima ferramenta para sua fuga, a leveza e facilidade em manobrar seriam excelentes amigos.
Saiu da prisão, virou o rosto para ambos os lados. Um dava numa escadaria circular de madeira, enquanto a outra continuava num corredor.
“Não vou pela escadaria. É desvantajoso lutar lá, um cara poderia simplesmente furar minha cara e eu mal alcançaria o peito dele.”
Ficou de costas para a escadaria e caminhou rumo ao corredor. Enquanto andava, olhou para os demais confinamentos, eles estavam bem desorganizados, às vezes encontrava animais engaiolados, outras vezes pilhas de ouro.
Cassandra não possuía o gene da idiotice, logo arrombou a primeira porta de tesouro que achou e afundou os bolsos com peças de ouro.
No meio das riquezas havia um particular machado que chamou sua atenção, um de gume preto e cabo roxo.
“Que coisa mais linda, vem pra mamãe!”
Ela roubou sem remorso nenhum, prendendo nas costas por meio de um encaixe encontrado no meio das coisas.
Era bem pesado, mas não atrapalhava em nada se movimentar. Comparado ao tanto de treino que teve nas últimas semanas, era leve como uma pena.
Após arrumar direitinho, outra vez ia retomar o caminho, porém uma certa inconveniência mudou seus planos.
Num certo confinamento havia uma garotinha encostada na parede. Cassandra imediatamente correu para lá e conferiu o rosto dela.
— Ei, ei… garota?
Estava toda marcado por hematomas e cortes cicatrizados. Os trapos cobriam pequenas partes, feridas desenhavam uma agonia sem fim pelo corpo da menina.
Um clique mexeu com a mente de Cassandra. Não era a primeira vez que via algo daquele calibre, nem era a primeira vez que encontrava uma pessoa num estado deplorável.
Também não era a segunda, era a terceira. O pior disso tudo, entretanto, era observar as íris sem vida da pequenina e sentir a falta de calor no pescoço dela.
Não havia batidas do coração, o sangue não corria. A imagem de Roan por um segundo veio à mente — o que aconteceria se no lugar daquela menina ele estivesse lá?
Largou a mãozinha fria da menina e a deitou de olhos fechados. Mordeu o lábio, lembrando que o lugar em que se encontrava era exatamente como a realidade — um poço peçonhento de pessoas desalmadas.
A exata imagem foi reforçada só pelo fato que o cenário se repetia de novo e de novo a cada nova cela. Crianças, adultos, todos nas mesmas condições, magros e surrados.
O rosto de Cassandra enrijeceu, o cabo da machadinha apertou, uma repentina onda de sentimentos a invadiu.
“Se fosse você… se fosse você… o que eu faria?”
Mesmo um mundo de fantasia não era livre da brutal realidade, da malícia, do mal. As dezenas de rostos que observou, cada um mais assustador que o anterior, deitados no desespero da morte, inúmeros que mexiam nos nervos dela.
— In-invasor, invasor! — gritou um elfo negro no outro corredor. — Al-alguém…?
A temperatura baixou, uma frieira surreal tomou conta do ambiente. O pobre elfo travadamente se voltou para a invasora, com a garganta seca e os dedos trêmulos.
A aura de Cassandra mudou de uma hora para a outra. A gravidade pesou sobre os ombros, o ar ficou rarefeito e a pressão subiu.
Um fio escarlate escapou pelos olhos dela, emanando a fúria de uma besta descontrolada, de um demônio acorrentado.
“Esses… esses malditos…”
— Haaa…
Respirou fundo, aliviando os pulmões de uma contínua vontade e ódio que se amontoava em cada parte de seu ser.
Porém não foi suficiente. Num piscar de olhos, a machadinha se encontrou ao pescoço do elfo, decapitando-o instantaneamente.
A cabeça rolou pelo piso, lançando um carpete vermelho nos pés de Cassandra. As correntes da fera se soltaram, a fúria a contaminou.
Explosões de raiva tomaram os músculos, o ranger dos dentes ecoou pelos corredores como uma guilhotina pronto para cair contra o pescoço dos pecadores.
A lâmina da guilhotina seria ela, e sua sentença era igual a qualquer um que encontrasse aquela besta dourada.
— TODOS AQUI VÃO MORRER!!
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⌈ ⌉
O Glifo de Sede de Sangue se transformou.
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Sede de Carnificina adicionado.
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