O Invocador Sagrado - Capítulo 27
Cada passo produzia o som mudo de uma batida. Cada mancha de sangue refletia a luz das tochas na parede.
O corpo de Cassandra estava tingido num vermelho profundo, o cabelo ganhou pinceladas ruivas e o gume do machado que se arrastava pelo chão era coberto por um carmesim macabro.
O barulho do metal riscando o piso ecoava pelo corredor, enquanto a fúria descontrolada que percorria as células da mulher pulsavam num desejo de matar.
Levantou o machado para o alto. A vítima ficou estirada em seus pés, uma elfa de cabelo prateado cujo braço havia sido arrancado.
Aqueles olhos desesperadores iam de encontro ao vácuo colérico de Cassandra, que drenava a mínima esperança existente.
A elfa abaixou o rosto, a lâmina despencou num único movimento, partindo a cabeça ao meio sem a menor dificuldade.
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Você subiu de nível!
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O atributo Força aumentou
O atributo Destreza aumentou
O atributo Guarda aumentou
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Dois novos espaços de glifo gerados.
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Um chute contra o peito do cadáver desprendeu a arma do lugar. Ela respirou fundo antes de continuar em frente, deixando um rastro ensanguentado de pegadas por onde passava.
Seus olhos se encontraram com a próxima vítima, outro bandido sujo que abandonou a arma e correu para longe.
Cassandra fincou os joelhos no chão, uma força colossal se apossou de suas pernas e ela se impulsionou para frente num salto, enquanto jogava o machado para trás.
Um golpe desceu de cima a baixo, alavancado pela gravidade e indo de encontro ao inimigo — uma pena que errou por um triz, causando uma explosão de vento ao atingir o chão.
O ribombar da estrutura acima já indicava a precariedade da sustentação. Quando a arma foi puxada de volta, peças de pedra e madeira caíram.
— Alguém! Alguém! — gritou o elfo, que se arrastava para longe e desviava dos escombros.
A fera dourada andava com paciência, nem os destroços que caíam sobre sua cabeça eram o suficiente para pará-la, destruídos por um simplório soco.
A saída foi fechada pelos entulhos. As últimas esperanças do bandido foram esmagadas.
Olhou de um lado ao outro, o desespero tomou conta do semblante conforme escutava as batidas ritmadas dos pés.
Era tarde demais. De repente a visão se dividiu em duas, a garganta parou de respirar e ele travou, até que duas metades diferentes fossem uma para cada lado.
Cassandra balançou o cabo, jogando o sangue para longe, então levantou o punho e esmurrou os entulhos que tapava a passagem, esfarelando-os na hora.
Subiu a escadaria em direção à superfície. Lampiões agraciaram a entrada, seguido pelo ribombar de passos metálicos.
Levantou os olhos e observou uma movimentação incomum entre as nuvens de poeira. Porém nada tirava o sorriso sádico do rosto, o caos da estrutura caindo atrás de si parecia na verdade ampliar mais a satisfação.
Enfim apareceu uma pessoa, então mais duas, três e quatro. Estava cercada de todos os lados, e mesmo assim não cedia a qualquer outro sentimento se não a loucura.
— Homens! — berrou um humano de armadura de couro e tapa-olho. — Preparem as armas e mirem, agora!
Cliques soaram em meio aos demais, dezenas de varas de madeira foram apontadas na direção dela, carregadas por uma energia que se demonstrava em aros coloridos.
Um crepitar contínuo soava ao redor, como se madeira queimasse em pleno céu aberto. Um cheiro de enxofre tornou o rosto da mulher numa careta.
— Atirem!
Estrondos surgiram aos montes, clarões encheram as muralhas de uma luz impossível de ser protegida. O fedor de enxofre piorou, espalhando-se para os arredores.
O líder saiu de trás da barricada improvisada, conferindo rapidamente se o alvo morreu. Havia um ponto preto no mesmo espaço que antes se encontrava aquele demônio, junto do machado jogado ao lado.
— Arf… — Ele deitou no chão, ofegante. — Conseguimos, homens, a ameaça foi…
Entretanto, ao olhar para cima, a voz sumiu e o coração parou de bater. Cassandra estava a centímetros de distância, com o punho voltado para baixo, numa onda de morte inevitável.
O punho afundou contra a face do humano, esmagando-a com tanta força que restos de carne se esparramam pela terra, seguido por um jato rubro que foi disparado pelo restante do pescoço.
Os lábios torcidos num riso sinistro, os olhos sedentos por mais discórdia, por mais sangue derramado, por mais do fogo e êxtase que queimavam em seu peito… a humanidade fugiu de Cassandra.
Os outros bandidos ainda carregavam as armas, mas eram lentos demais se comparados à velocidade da fera, que devorava cada alma viva com o balançar do machado.
O pandemônio instaurado após trucidar um elfo negro foi o melhor. Vê-los enlouquecer e tentar machucá-la de quaisquer maneiras trazia risadas histéricas, que culminavam numa zona de morte sem fim.
“Venham para mim, minha preciosa experiência!”
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Você subiu de nível!
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⌈ ⌉
Você subiu de nível!
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Você subiu de nível!
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O inferno a rodeava, numa sinfonia de destruição e entropia. Vísceras voavam, gritos ecoavam e a desordem tomou seu cargo em meio à enxurrada psicótica de Cassandra.
O nível escalava sozinho, sincronizado com o número de mortes feitas pelo fio mortífero do machado cinzento.
Fugir era em vão, pois o cheiro do medo vinha ao olfato apurado do demônio. Lutar era inútil, pois a força titânica do monstro impossibilitava qualquer um de vencer.
Nem mesmo os cortes das espadas ou explosões mágicas paravam as atrocidades, aquela fera dourada não cessava diante da dor. Ao invés, era impulsionada, gravando tatuagens de sangue nos braços e no rosto.
As flechas nas costas eram como um troféu de imortalidade, as feridas eram o símbolo de sua invencibilidade e os traços avermelhados viraram a suprema figura de uma fera loira que abocanhava os inimigos com seus afiados dentes.
Fogo escalou pela fortificação, espalhou-se para as muralhas e transformou o lugar num incêndio dantesco.
Aquela risada que tremia a estrutura de guerreiros valentes — ou bandidos corajosos —, quando mesclada ao cenário alaranjado das chamas, tornava a imagem de Cassandra num retrato diabólico de um ser devorador de almas.
Assim que a última cabeça caiu, a fúria se retraiu para dentro da mente. Toda aquela energia caiu por terra, porém ela conseguia se manter de pé diante da dor.
Respirou fundo e meneou a cabeça, sentindo um leve deleite com a paisagem de pilhas de cadáveres espalhados à sua volta.
Foi uma grande batalha, e só ela ficou de viva. O sorriso se alargou, não havia satisfação maior que superar um desafio extremo e ser recompensada com toneladas de experiência.
— Realmente, matar esses monstros foi bom demais!
Cambaleou na direção dos portões entreabertos da fortaleza. Requebrou o pescoço, cãibras machucavam as panturrilhas e os braços de tanto se mexer.
Fogo ainda consumia o recinto, logo o motivo de sair dali era redobrado. Empurrou o pesado portão para frente, aliviada por respirar ar fresco sem o excesso de fumaça.
Contudo seus olhos se estufaram ao ver um amigo de longa data a esperando do outro lado. O queixo dele caiu, tremores involuntários tomaram conta das mãos e as pupilas saltavam de lá para cá.
Junto de Roan havia Ravi, um mendigo barbudo e um grupo de pessoas vestidos com mantos esverdeados e de estética semelhante ao mendigo.
Estranhou o tipo de julgamento silencioso recebido, principalmente por parte de Ravi, do qual tinha bastante apreço.
Torceu o cenho e deu uns passos em frente. O amigo fez o mesmo, mas a feição sombria que demonstrava era capaz de revirar o estômago.
— Eiii, eiii. Sentiu saudade? — Pulinhos refletiram o humor. — Já cuidei de tudo lá atrás e…
— O que significa isso, Cass? O que… meu Deus, o que você fez?
— Ora, não é óbvio? Consegui experiência! — Levantou o machado para o alto e estufou o peito. — Muita experiência, por sinal.
— Experiência?! Você chama isso de EXPERIÊNCIA?!
Cassandra recuou para trás quando Roan quase se jogou para cima dela. Aquele jeito ameaçador e a postura alta fizeram-na se encolher.
Um frio na espinha e arrepios tomaram a consciência diante dos modos tão grosseiros do amigo. Ergueu o queixo e tratou de igualmente subir os ombros, para não recuar perante a ameaça.
— Eles são monstros, monstros! Você nem viu as atrocidades que esses malditos fizeram lá embaixo!
— Monstros e atrocidades? A atrocidade foi o que você fez, e eles são pessoas, Cassandra, pessoas!
— Me poupe! — elevou o tom, quase colando a face com a de Roan. — Tá ficando doido, por acaso? E olha a forma como tá falando comigo, viu?! Eles não prestavam, eu devia ter até feito pior e…
Cassandra foi impedida de falar. Uma ardência forte veio à sua bochecha, quase a forçando a cair de tanto que queimava.
A marca de uma mão se gravou ali, enquanto a palma de Roan estava jogada para o lado.
“Ele me deu um tapa…?”
Doía, doía muito mais que flechas e cortes. Era como ferir seu orgulho, bater na sua honra e cuspir em cima de todo seu esforço.
Encarou-o novamente, seu coração apertou diante do olhar de repulsa, diante daquela desproporcional reprovação.
“O que eu fiz de errado…?”
— Cass, eu quero que você olhe para trás.
Roan continuava na mesma postura. Vê-lo assim era semelhante a enfrentar um gigante que poderia derrubá-la a qualquer momento.
Virou devagar e arregalou os olhos. A fortaleza estava incumbida por um fogaréu infernal, que consumia os defuntos estirados nas muralhas.
A vista revirava o estômago, ao ponto da garganta queimar com um gosto ácido. Cassandra se ajoelhou e despejou uma poça de vômito e sangue da boca.
Tentou levantar a cabeça, mas ao ver um defunto partido em duas partes, com pedaços de vísceras deslocadas e ossos quebrados, outra leva de vômito fugiu.
Enfim, toda a agonia decidiu vir. Os efeitos colaterais da adrenalina passaram devagar, lentamente uma aflição a atingiu, demarcada primeiro por pontadas nas costas e ardência dos danos no tronco.
Ergueu-se cambaleando, a consciência aos poucos se desvaneceu, porém a teimosia de despencar desacordada a impediu de apagar.
Roan outra vez se colocou na frente dela e a agarrou pelas madeixas, fitando-a no fundo dos olhos, enquanto o semblante se moldava à seriedade.
— Cassandra, me escute, você matou pessoas, pessoas.
— Mas eu… eu fiz isso para impedir que fizessem o mesmo com outras…
— E tirar a vida de ladrões, ou até mesmo de outros inocentes que estavam lá dentro, fez isso?
Emudeceu. Seus lábios mal se abriam para falar, a resposta não vinha. Lágrimas ameaçaram cair, enchendo a visão dela de pontos molhados.
— Cass, isso não é um jogo — disse o amigo, encostando a testa com a dela. — Isso é real, tudo o que você toca é real… eu não quero que você morra.
“Morrer?”, pensou Cassandra, os ombros cederam aos toques de Roan. “Eu fiz de novo? Eu me arrisquei e quase… e quase larguei todas as oportunidades que você me deu? Larguei tudo o que você fez a mim? Eu… eu sempre vou fazer você sofrer mais?”
Rendeu-se ao choro, a mente escureceu por um instante, afundando Cassandra num sono pesado.
O homem a pegou antes de bater contra o chão e a colocou nos braços. A preocupação dele não podia ser maior, as feridas estavam numa aparência horrenda.
Levou-a até perto dos outros. Os druidas se separaram em dois grupos separados e usaram magias para apagar o incêndio, já Joaum permaneceu no mesmo lugar.
Roan trocou olhares com o arquidruida e esperou qualquer tipo de resposta. Não veio, somente o silêncio acompanhou a melancolia do momento.
— Joaum…
— Não posso fazer nada. — Abaixou a cabeça, em sinal de pena. — Mesmo se a curasse, sequelas a afetariam pelo resto da vida…
— Só pode estar… ah, não.
O invocador respirou fundo. Precisava de uma solução, uma maneira de salvá-la. Eis que um estalo invadiu seu cérebro, ele lembrou do que precisava ser feito.
— Vocês dois, se afastem…
Ambos obedeceram e se afastaram a passos de distância. Pôs o corpo de Cassandra deitado, então buscou o diário no bolso. Folheou as páginas com pressa, então puxou uma folha especial, uma com o círculo de Terra.
Entretanto, não usou-o imediatamente, revestiu o símbolo com sangue, o sangue de sua própria amiga. Por fim, apanhou a esfera esverdeada, deixou o diário no chão e se concentrou na invocação.
O símbolo brilhou num verde-escuro, um pilar saltou dali em direção ao teto, inundando o ambiente com uma luz forte.
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O Glifo de Invocação evoluiu
Rank D → Rank C
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Os Espíritos Ressoam com seu chamado
A Alma de um antigo ser ressoa.
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Vânia, o Espírito da Natureza, foi invocada.
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Um susto tomou conta de Roan ao perceber a segunda mensagem. O fulgor diminuiu, o que só deu temores ao observar a criatura acima do círculo de invocação.
Era um ser humanoide coberto por uma aura esverdeada e coberta por um verde-escuro. Era sem rosto, de anatomia semelhante à de uma mulher e portava uma calmaria sobrenatural.
O espírito se voltou ao invocador, arrancando-lhe um pouco do ar por tanto poder que possuía. Ele resistiu, colocando-se de pé, mesmo que a pressão empurrasse os ombros para baixo.
— Cure-a, cure Cassandra!
A criatura acatou a ordem, ventos envolveram o recinto e cobriram o corpo da mulher caída, inundando-a de uma energia esverdeada.
As flechas saltaram para fora, as feridas cicatrizaram de uma em uma. A cura foi completada, Vânia mais uma vez se voltou ao invocador, à espera do próximo pedido.
— Des-desvaneça…
Uma pena que não aconteceu conforme previsto. A invocação continuou ali, flutuando acima de Cassandra, numa postura inalcançável.
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Desvanecer falhou
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“O que? Não me diga que…”
O espírito repentinamente se mexeu diante do efeito do glifo. Para o alívio de Roan, ele não avançou ou atacou, apenas se misturou ao ar e se dissipou rumo ao nada.
A pressão retornou ao normal. O homem caiu de joelhos, ofegante e suando. Uma onda forte de fadiga invadiu seu peito, semelhante à uma maratona inteira.
Despencou contra o chão. A visão ficou difusa e escureceu, mas antes de adormecer, um sussurro invadiu seu ouvido:
— Obrigado por me libertar, humano.