O Invocador Sagrado - Capítulo 28
Roan se levantou da cama num salto. Suor escorria pela nuca e testa, seus dedos tremiam de tensão e os olhos arregalados iam de um lado para o outro.
Estava dentro de uma sala pequena, com espaço somente para duas camas e uma porção de mobílias simples.
Respirou fundo, o coração parecia saltar a qualquer instante do peito. Aos poucos, conteve o desespero e deixou as costas caírem contra o colchão de novo.
Viu o teto cinza e marrom, notou pequenas fendas e uma textura de linhas semelhantes a madeira, a maioria das coisas possuíam o mesmo tipo de estética.
O ar voou para fora dos pulmões, trazendo uma pitada de alívio, então percebeu um cabelo dourado na outra cama, junto de um corpo frio deitado ali.
— Cassandra? — Ele se levantou e se aproximou. — Ah, graças aos céus…
Dormia, ou assim julgou Roan pela cor do rosto sereno dela. Recuou alguns passos para trás e mais uma vez perdeu o controle das pernas, caindo de bunda no piso de madeira.
Mexeu os dedos, uma certa dormência nas mãos tirava parte do tato e criava uma estranheza quanto à falta de sensibilidade.
“Deu certo, não é? Invocar aquele espírito… Vânia?”
Dúvidas cresceram na mente de Roan. Quem era Vânia? Era a cidade? Era um espírito? Seus braços se arrepiaram ao ter um vislumbre de memória da cena que viu o espírito e sentir de diretamente aquela dose pesada de poder.
— Não importa, o que importa é que deu certo… — murmurou, tentando recobrar o equilíbrio que escapava de si.
Apoiou os braços na janela entre as camas. A vista provou o que havia imaginado, estava de volta ao assentamento de druidas.
O rio, a ponte de madeira e as casas entregavam muito bem o cenário, tanto que pela primeira vez tirou um tempo para observar a paisagem.
Borboletas balançavam de lá pra cá, cogumelinhos andavam pela grama alta e por fim uma ave colorida sobrevoava a região e parecia um pouco perdida a julgar pelo modo que batia as asas.
“Tudo normal… espera, por que esse pássaro tá vindo pra cá?”
Roan reagiu no último instante, saiu do meio da janela e evitou se esbarrar com a ave, que entrou pela janela e pousou no piso de madeira.
Encarou a galinha colorida, seu ar só foi solto ao reconhecer as penas coloridas e o peito estufado. Era uma personalidade bem típica de uma certa fênix.
— Ora, ora — disse Arillumia, virando-se para o invocador. — Olha só quem acordou, o libertador de espíritos.
— Do que diabos você está falando…?
— É surdo, por acaso? — Ela pulou para cima da cama e esticou o pescoço para cima. — Você libertou um espírito, e para variar, Vânia!
— Fala isso como se eu entendesse o que esteja querendo dizer.
— Oh, céus… — Levantou uma asa para tapar o rosto. — Quanta ignorância. Olhe para o lado de fora!
Ele novamente se concentrou em observar a paisagem. Nada era diferente do que lembrava, exceto por umas árvores crescidas e flores a mais na margem do rio.
— Continua igual — respondeu, encostando as costas na sacada da janela. — Aliás, por que só apareceu agora quando estava comigo desde a floresta?
— Porque você fez algo grande, muito grande, e impacta no nosso contrato!
Colocou uma mão na testa, aquela galinha falante falava abobrinhas feito uma máquina. Chegava a ser idiota acreditar que um animal daqueles pudesse falar, a única coisa que realmente o fazia acreditar era o excesso de penas coloridas.
— Que contrato fizemos mesmo?
— Seu…! — As plumas ganharam tonalidades vermelhas. — Ousou ainda por cima esquecer do nosso contrato?!
— Não, é só que humanos tendem a esquecer sonhos. — Ergueu as palmas em sinal de rendição. — Não é culpa minha, acontece com todos…
— Que raça degenerada… — sussurrou, então ciscou nos lençóis e arrumou um cantinho confortável. — Certo, vou lembrá-lo do acordo, e como a sua invocação o afetou
Roan suspirou e afirmou com a cabeça, aborrecido pelo modo tão assertivo da galinha. Fechou os olhos, o que foi quase um tipo de ofensa à Arillumia.
“Escute bem, humano idiota! Nosso acordo era bem simples: eu lhe daria conhecimento sobre as invocações, em troca você me invocaria em minha totalidade.
Apenas uma parte de mim foi trazida a este plano quando me invocou, ou seja, preciso ser reinvocada para vir em minha totalidade e destruir os demônios que invadiram esse domínio.
Sei disso porque sinto o cheiro, sinto a aura deles a todo momento. Como você foi o primeiro, pensei ser melhor te dar essa missão.
O que eu preciso é de matéria divina, como o pó que usou para me invocar pela primeira vez. No entanto, preciso de uma maior quantidade e uma relíquia antiga guardada nas planícies do oeste, chamada Coração de Brasas.
Era isso, extremamente simples, não? Quanto aos conhecimentos, vou refrescar sua memória, a começar pela Invocação Mista.
Como já sabe, existe mais de um círculo de invocação, e eles são respectivos aos elementos. Resumidamente seriam: Divino, Infernal, Terreno, Aquático, Abrasado e Aéreo.
Os símbolos principais de Sonnemond, o sol e lua, podem ser substituídos ou complementados com sinais de quaisquer elementos, além de que a adição de mais símbolos direciona a invocação de maneira mais específica.
Logo, a invocação que você trouxe há poucas horas, feita com o círculo Terreno, veio meio… fora do normal. Você praticamente reviveu um espírito ancião antes de mim, o que é uma calúnia a minha pessoa!
Será que estamos entendidos, Roan?”
— Mais ou menos — respondeu ele, coçando a nuca. — Eu lembrava da parte dos círculos, só que… que espírito ancião é esse?
— Vânia, a Árvore Mãe, a Protetora da Terra, como você queira chamar.
— A árvore…?
— Isso mesmo, a árvore.
Roan colocou uma das mãos no queixo, uma série de pensamentos carregados por dúvidas vieram a sua cabeça e traçaram quem diabos seria Vânia.
Não fazia o menor sentido, e mais ainda, mal sabia distinguir o verdadeiro impacto da invocação do espírito no acordo original. Ele ergueu um dos dedos, tomando a atenção do pássaro.
— O que isso diferencia no acordo…?
— Nada, só foi uma ofensa imensa! Me senti traída, devo afirmar…
Ele torceu o cenho, realmente não faria diferença se tivesse invocado ou não o espírito, mas Arillumia realmente era ou muito ciumenta ou muito metida.
Jogou as mãos para a nuca, um pouco mais relaxado por saber que não fez uma grande besteira. Então, uma outra dúvida surgiu, fazendo-o estalar os dedos de novo.
— E aliás, você disse que eu preciso de uma relíquia para te invocar corretamente, né? Onde eu a encontro?
— No oeste desse país, próximo à planícies, numa região chamada Pico da Fênix. — Por algum motivo, Arillumia ficou rosinha ao pronunciar o nome. — Huuh, amo esse nome…
— Chuto que esse lugar é cheio de lava e fogo, correto? — Estalou os dedos, tomando atenção da ave.
— Sim, isso mesmo. — Balançou o pescoço de cima para baixo.
— Eu vou é porra.
— O-o que?!
Enquanto o choque da rejeição transitava pela fênix, Roan tirou seu diário do bolso. Folheou as páginas, havia vários tipos diferentes de círculos desenhados, e o último utilizado estava com a tinta seca.
Sinais menores rodeavam o aro exterior, alguns dos quais eram meramente intuitivos, como um de cruz e outro semelhante à uma pessoa;
Bateu o diário na própria testa, foi uma sorte gigante ter dado certo. Pela ponta do olho, viu sua amiga adormecida, o coração apertava só de imaginar a possibilidade da invocação talvez ter dado errado.
— Está me escutando, humano tolo?! — berrou Arillumia, voando para cima de Roan.
— Estou, estou muito bem… — Abanou as mãos, como se espantasse um mosquito irritante. — Mas talvez você seja meio doida da cabeça por imaginar que eu irei num lugar perigoso quando tenho que cuidar de alguém mais importante?
— Mais importante?!? A vida dessa relés humana é mais importante que o mundo inteiro?!
Roan cerrou os punhos e mordeu o canto da bochecha. Escutar as coisas ridículas da invocação era irritante, ainda mais quando o pedido era algo impossível de se fazer.
Agarrou-a pelas laterais, para evitar ter o rosto rasgado pelas garras de Arillumia, então a rebolou de volta na cama.
— Como quer que eu faça algo impossível?! — Uma pancada na sacada da janela emudeceu o ambiente. — Eu sou um humano, Arillumia, um humano! Não sou imortal e nem poderoso como você ou qualquer um dos seus amigos espíritos anciões…
— Urgh, humano inútil e fracote! — O pássaro ficou avermelhado e as penas se arrepiaram. — Então me desvaneça! Já que não consegue, procurarei outro!
— Ah… beleza. — Uniu as palmas e se voltou na direção da ave. — Desvaneça!
— E-ei, espera! — O corpo de Arillumia brilhou em branco, lentamente desaparecendo. — Eu não quis dizer isso, rever…!
E ela sumiu. Roan finalmente livrou o ar preso nos pulmões, agradecido por uma criatura insuportável ter ido embora.
Ao menos, para não esquecer o que devia fazer, escreveu na última folha do diário o nome do lugar e o nome da relíquia, Pico da Fênix e Coração de Brasas.
Parou repentinamente, a imaginação correu para criar o tipo de cenário que era aquele lugar. Não havia sequer uma lembrança comentando sobre o oeste de Vânia, na verdade, muito menos sabia de alguma coisa além do próprio país.
Passou-se bastante tempo desde que foi despejado naquele mundo, e mesmo assim não houve uma preocupação maior em reconhecer onde estava e que lugar era aquele.
“Pareço até mula de carga indo de um lado ao outro sem saber direito o que estou fazendo.”
Piscou os olhos, sentando-se na sacada da janela. Uma certa urgência o tomava, as prioridades tinham mudado — não importava se o mundo explodisse ou não, era essencial que retornassem para casa logo.
“Se continuarmos por mais tempo aqui, é possível que…” Espiou a amiga pelo canto do olho. “É possível que ela morra.”
A negatividade ia e vinha. Os perigos batucavam sua cabeça com a paranóia constante da morte e da frieza da realidade.
Naquele momento em que encontrou Cassandra ferida, uma pontada havia invadido o peito por ver aquele rosto repleto de insanidade.
Suas esperanças estavam se desvanecendo, e o pior era imaginar que andava lado a lado com uma potencial psicopata.
“Que droga…”
— Com licença — exclamou uma pessoa de fora —, posso entrar?
Roan retornou aos seus próprios sentidos e saiu dali. Andou até a cortina que dividia o quarto com o exterior e a puxou.
Deparou-se com Joaum, que levava um cajado de madeira na mão e uma bandeja repleta de pequenos aperitivos e chá.
— Oh, desculpe… eu lhe acordei? — perguntou o arquidruida, de sobrancelha levantada.
— Não, eu já estava acordado. — Saiu do quarto e deixou a cortina tapar a entrada. — Por que veio aqui?
— Ora, por que eu não viria? Vocês dois desmaiaram em uma zona de guerra, eu não deveria me preocupar?
— Tá, seu motivo é justo. — Deu uma rápida olhadela para Cassandra pela fresta da cortina. — Vamos nos afastar, não quero incomodar o sono dela…
Joaum concordou com um aceno e seguiu pelo corredor até de volta à sala de estar, que permanecia com a mesma estética natural de antes.
Roan pegou uma poltrona de vinhas, o arquidruida fez o mesmo e apoiou a bandeja numa mesinha entre as poltronas. Encheu uma xícara e a estendeu na direção da visita, que prontamente aceitou.
Ele tomou um gole, o sabor de camomila absorveu a onda de cansaço que empertinava seu cérebro. Até a paranóia foi controlada, o efeito do chá era quase mágico.
— É bom…
— Todos os visitantes adoram o chá. — Joaum pegou um biscoitinho de farinha da bandeja. — Pois bem, como se sente?
— Eu me sinto… livre. Aquela invocação me fez sentir como se eu carregasse um peso nas costas.
— É mesmo…? Então você não tem noção do que invocou?
— Não, nenhuma, mas sei que é Vânia, certo?
O arquidruida emudeceu, o rosto franziu e o queixo caiu um pouco, seguido por um remexido das sobrancelhas.
— Como você sabe?
— Intuição, talvez — mentiu, já ciente de que falar a verdade não faria sentido. — Mas eu queria saber de uma coisa, Joaum… o que é Vânia?
— Várias coisas. — Subiu um dedo. — Pode ser uma pessoa, a árvore, uma região…
— Como assim “pode ser”?
— Porque ninguém sabe, nem mesmo eu, o arquidruida.
O mistério se arrastava para um lado mais enigmático ainda. Roan coçou a testa, sem saber para qual lado mirar as perguntas.
Olhou o teto, à procura de uma ideia do que conversar ou do que pedir para ser esclarecido. Uma pena que Joaum interveio antes de adquirir uma pergunta.
— Chuto eu que queira saber mais, não?
— Sim, eu quero.
— Oh… então vai ser uma looonga história.
O sorriso na cara do velho não trazia conforto algum. O invocador respirou fundo, apertou os braços da poltrona e esticou o pescoço para frente.
Cerrou os olhos, suas mãos se agarram nos joelhos e por fim o cenho torceu para o máximo de seriedade.
— Tenho todo o tempo necessário.