O Invocador Sagrado - Capítulo 29
“Eras atrás, existiu uma feiticeira capaz de controlar a vida como um todo. Ela, como você já deve esperar, se chamava Vânia.
Nessa época ocorreu uma grande guerra, que obrigou a feiticeira a escolher um dos lados da guerra.
Ela ficou do Círculo e dos invocadores para enfrentar a legião de demônios que avançavam nos territórios deste país em que estamos agora.
Entretanto, após o término da guerra, houveram grandes baixas e danos a tudo que você possa imaginar — vegetação, animais, pessoas…
Vânia estava ciente disso e tentou reparar o que aconteceu. Por um século inteiro ela usou sua feitiçaria e controlou vidas de maneiras que você nem imagina.
Daí surgiu essa árvore, que ela disse ser o centro do seu esforço, o lugar onde todas as esperanças de que o que estava fazendo funcionasse.
Bom, no final das contas, deu certo. A árvore deu frutos e esses frutos deram o sustento a toda a floresta do país, além de eternizar Vânia com seu nome batizada nela.
Passaram-se cerca de 800 anos e esta árvore tornou-se a capital do Império Vaniense. Então, há 5 séculos, eu tomei o cargo de arquidruida e uni os druidas aos invocadores.
Afirmo que eu mesmo nunca soube que Vânia havia tomado uma forma de espírito adormecido, na verdade me impressionou no momento…
Ah, claro, quase esqueci. Espíritos anciões são a forma metafísica de uma pessoa poderosa que já morreu. Sei que existem outros, mas não os conheço de nome, apenas sei que cada um faz parte de um elemento específico…”
— Esclareci algo a você?
— Esclareceu até demais…
A mente de Roan torrava pela enxurrada de informações. Ao menos conseguiu traçar uma linha coerente de raciocínio para entender o que Joaum quis dizer.
Vânia era o espírito de uma pessoa poderosa que lutou numa grande guerra há um milênio atrás. Coincidentemente, a data batia com a história de um livro que lembrava ter lido em Hirote.
— Joaum, se essa mulher existiu há um ano atrás, quer dizer que ela lutou ao lado de Zapion e Jigral?
— Sim, na Grande Guerra Divina. — O arquidruida acenou com a cabeça. — Ela se aliou à Zapion e sua legião de invocadores.
— E quem é esse Zapion?
— O invocador original, por assim dizer. Ele quem criou e repassou a técnica de invocação.
Roan acabou perdendo noção do tempo, suas perguntas eram disparadas a cada instante contra Joaum, que tratou de explicar e respondê-las sem problema.
Se pudesse resumir, Zapion era uma figura idolatrada pelos paladinos, porém estes não sabiam da natureza e habilidade mística dele.
Quando o assunto entrou na parte após a Guerra Divina, as coisas mudaram de tom. Os paladinos realmente o adoravam, ao ponto de levarem ao extremo e destruírem grande parte das artes místicas da época, o que incluía a invocação.
Chegava a ser irônico um bando de idiotas arrasando com o trabalho do próprio homem que respeitavam. Então, um estalo veio a mente do invocador.
Aconchegou-se na cadeira e tateou os dedos, seguido por uma breve fisgada de um biscoito de farinha e um gole de chá.
— Preciso ir à basílica.
— Ah, isso eu já resolvi. — Ele deu de ombros e estirou os braços para cima. — Enviei sua carta por meio de um dos meus mensageiros, a essa hora já deve ter sido entregue.
— Isso… isso não é invasão de privacidade, de certa forma?
— Rapaz, se isso for verdade, então me desculpe, pois sou o maior invasor de privacidade que existe.
Uma risada irrompeu da garganta de Joaum, enquanto dava batidas na poltrona e levantava o pescoço para deixar os risos soarem livremente.
A sobrancelha de Roan subiu. O que significava aquilo? A feição de Roan corou ao imaginar o que o mendigo tarado pudesse ter feito. Estendeu o corpo para frente, a um instante de avançar.
— Você não…!
— Ei, ei, se acalme! — As mãos ficaram na frente do corpo. — Eu só estava brincando! É que consigo saber das coisas que acontecem na árvore!
Abaixou o punho, a um triz de esmurrar a cara de Joaum caso realmente fosse o que passava pela cabeça.
Um suspiro conteve as emoções, então Roan despencou no assento. Seus olhos voaram para o teto, a fadiga se apoderou do corpo e as orbes se arregalaram perante o cansaço.
— O dia está lindo lá fora — comentou Joaum, após pegar a bandeja vazia.
— Mesmo sem sol, é…
— Quer dar uma caminhada? Posso lhe demonstrar onde o Círculo se reúne, se for do seu interesse. Só preciso de uns momentos.
— Claro… vou esperar do lado de fora.
Assim que o arquidruida sumiu de vista, o invocador se encaminhou para o lado de fora e perdeu seu tempo contemplando a vista dali.
O tempo pareceu parar diante do som da água e ecos distantes das vozes dos residentes do assentamento. De alguma forma, o mundo desacelerou ali, como um paraíso esverdeado distante.
Mais uma vez afundou em devaneios, pensamentos difusos e memórias partidas do passado. Comparou o lugar com seu mundo, com a terra, com o trabalho, e por algum motivo era tudo tão… estranho.
“Esse lugar é melhor do que lá.” Olhou para a encosta abaixo, admirado com a água cristalina. “O ar é puro, me sinto vivo, ficar com Cassandra é divertido… Porém, prefiro passar minha vida num lugar ruim e acompanhado do que em um perfeito e solitário.”
Uma filosofia simples para um mentiroso, ou assim considerava Roan. Do que adiantava se aventurar sozinho, sem compartilhar as mesmas emoções com outra pessoa? Seria inútil, um esforço sem sentido.
Roan se sentou na beirada da encosta e apoiou as mãos no queixo, jogando a mente para o alto. Tudo ficou mudo, murmúrios e a paranóia voltaram a agir a todo vapor.
Isso até um toque recair sobre seu ombro, puxando-o de volta para realidade. Virou o rosto e viu Joaum ao seu lado, de pé e com um cajado de madeira em mãos.
— Vejo que está muito… pensativo, isso não é bom.
— É, eu sei, mas é impossível evitar. — Ergueu-se e deu tapinhas nas roupas para espantar a sujeira. — Entããão… pode ir na frente?
O arquidruida concordou e então foi na frente, acompanhado por Roan. Desceram pela encosta de degraus de madeira, rodeadas por uma coleção de gramíneas e flores.
Era a primeira vez que Roan dava tanta atenção ao ambiente, mal tinha percebido que as casas eram na verdade um tipo de barro ou terra firmado por raízes que mantinham a sustentação.
O mesmo valia para o restante do caminho, tudo era feito ao redor de uma arquitetura natural, no qual as plantas eram o pilar de sustentação da maioria das construções.
Isso sem contar a iluminação extremamente incrível do lugar, que conseguia deixar qualquer espacinho iluminado. Em suas lembranças, o assentamento não era tão claro, na verdade estava um pouco escuro.
Passaram por uma série de pontes e escadarias, na maioria delas Roan desviava a atenção para qualquer outro detalhe menor que lhe chamasse atenção.
Estes eram algumas crianças passeando, insetos nas folhas ou até maquinários estranhos feitos de gravetos e capim.
Ficava cada vez mais estranho conforme atravessava o assentamento, ainda mais com o tamanho um pouco descomunal da região.
Em dado momento, ao prestar atenção na paisagem, viu a casinha do Joaum no topo de uma elevação como um pontinho pequeno num plano verde.
Após tanto andarem, o arquidruida parou perto de um túnel numa parede, demarcado pelo símbolo de Sonnemond na cortina que servia de porta.
Ambos adentraram-no e seguiram em direção a uma sala. Roan teve calafrios ao colocar os pés na sala, a ponta dos dedos tremeram.
Avaliou os arredores com bastante atenção, desde a mesa redonda à série de bandeiras estiradas nas paredes.
As cores tornava muito fácil deduzir o que cada uma significava, desde a avermelhada com o símbolo de fogo até a com uma montanha e de cor marrom.
O que ele achou curioso, no entanto, foi a quantia de acentos. Havia cinco, um virado na direção do corredor e de costas para uma grande tela retangular, sem nenhuma bandeira.
— Por que cinco? — questionou, enquanto se arrodeava a mesa.
— Porque a invocação comum, sem o uso de elementos, existe. — Mirou a cabeça na direção do quadro. — Foi uma decisão minha após adquirir o cargo, mesmo que não tenha aparecido ninguém com a capacidade de realizar uma invocação com o círculo original…
Os nervos de Roan atiçaram. Pousou os olhos no quadro, lá tinha uma representação de uma fênix, de um cavaleiro de armadura e de ramos que se dividiam nas invocações elementais.
Entretanto, o que mais o incomodou era o fato de ter alguma coisa escrita na parte de cima do quadro, talhado de uma maneira diferente e misteriosa, cujo significado se escondia por detrás de uma língua antiga.
Invok Redum in Reencarni
— E aquilo? — Ele apontou para a frase. — O que quer dizer?
— Me julgaria se eu disser que não sei? — O mendigo acariciou a barba, de olho nas letras. — Ninguém nunca soube, mas é algo que Vânia disse em seus últimos dias nesta terra.
— Ou seja, Vânia não estaria relacionada com os invocadores de outra forma? — A própria fala trouxe um novo estalo mental, teorias borbulharam no cérebro. — Algo além da aliança…
— Eu não sei.
— Joaum, você não é tão útil quanto aparenta, né…
O velho deu de ombros e tomou uma cadeira para si, permitindo que o convidado aproveitasse o tempo que fosse necessário.
Roan continuou a examinar as nuances na teoria e relacionar com o que conhecia. Uma pena que nada fazia sentido, nada se conectava diretamente, era como se uma peça estivesse faltando no quebra-cabeça.
A fênix no quadro relembrava e muito Arillumia, inclusive tons distintos tingiam o corpo desenhado.
Por outro lado, não reconheceu ou distinguia o cavaleiro de armadura, que chutou ser Zapion. Ainda assim, ele aparentava ser familiar, ou pelo menos a armadura que usava.
O mais bizarro, no entanto, foi a janela amarelada flutuante acima das letras.
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⌈ ⌉
O Invocador retornará em Reencarnação.
⌊ ⌋
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“Retornará em reencarnação…?”
Uma interrogação se plantou na cabeça de Roan. Quanto mais se aprofundava na história de Vânia ou dos invocadores, mais confuso e complexo as coisas se tornavam.
Respirou fundo e alisou o cabelo para trás, meio desconcertado perante a exorbitante enchente de informações que precisava trabalhar.
Eis que, em meio às ideias mirabolantes, uma lâmpada se acendeu. Virou-se para Joaum, que de alguma forma havia pegado um chá do além.
— Ehh… Ca-ham, Joaum. — Depois de chamar atenção, o arquidruida deixou de lado o chá. — Você disse que nenhuma pessoa sabe invocar sem usar o círculo, né?
— Isso mesmo. — Ele deu de ombros, mas a curiosidade atiçou a voz. — Não me diga que você é capaz de fazer isso. Meu coração é fraco, não traga a esperança de trazer mais surpresas pra mim…
— Bom, de qualquer forma, eu consigo. — O olhar espantado e ao mesmo tempo empolgado fez Roan hesitar, tanto que arrumou os ombros para continuar a falar: — Não sei como, só consigo.
— Oh… claro, claro! Que tal irmos a uma ala desse lugar para demonstrar um pouco. Adoraria ver de primeira mão.
O invocador acenou positivamente e mais uma vez aguardou Joaum guiá-lo. Caminharam por mais um corredor, este se abriu num salão quadriculado.
O chão era diferente do lado de fora, um tipo de mármore branco que criava uma pequena nostalgia ao relembrar do vagão esbranquiçado do trem de Pólito há semanas atrás.
Joaum indicou o centro do recinto, onde um símbolo de desenho estava gravado. Imediatamente Roan recuou, já que não ia usá-lo para a demonstração.
Uniu as mãos e permitiu a imaginação fluir, um desenho se concretizou em sua mente, uma cobra marrom e preta, com um chifre na cabeça e uma broca no lugar do chocalho.
Um breve pilar de luz antecedeu a aparição da peculiar invocação, da familiar e amigável cobra Jade, que deslizou na direção do mestre e se enrolou no pescoço sem nem precisar de uma ordem.
— Oh… ela adora fazer isso. — Acariciou o animal. — Parece verídico a você, Joaum.
— Bastante, eu realmente não imaginava que era assim… — O arquidruida se aproximou para analisar a invocação. — Devo dizer que também não há nada de errado com ela, quase igual a uma invocação como as que os outros fazem.
— É… bem, eu comecei realizando essas, então descobri os elementos e as demais coisas.
— Demais coisas?
— Sim, os adornos nos círculos, materiais e…
Pela feição de Joaum, ele não entendia absolutamente nada. Roan suspirou e teve que pegar o diário para mostrar o que queria apresentar e falar.
Mal sabia ele que, por conta da falta de controle da boca, seria uma aula valiosa demais para o mestre do Círculo.