O Invocador Sagrado - Capítulo 29.1
Uma forma esotérica não era melhor que a física, mas serviria ao propósito de Vânia, mesmo que a quantia de gratidão não coubesse em seu espírito livre.
A enxurrada de novidades impressionava, principalmente a vista panorâmica do topo da árvore, que a deixava tão próxima das nuvens.
O encanto de observar a floresta se estender até o horizonte, de ver os animais em todos os lugares e as menores nuances das aldeias e vilas distantes — era impossível retribuir tamanho presente recebido por um pedido tão pequenino.
— Há quanto tempo, liberdade…
Abraçou o vento, mesmo sem sentir nenhuma brisa a tocar. Voar pela região também era uma satisfação gigantesca, que forçava um sorriso — mesmo que o espírito não tivesse rosto.
Uma longa viagem até às beiradas do território da floresta traçou o humor eufórico de Vânia, que só melhorou conforme ia de um lado ao outro.
Sua curiosidade, entretanto, mudou o rumo das escolhas e a lançou de volta à árvore, especificamente na copa, onde se localizava uma peculiar construção.
Ali existia um grande castelo feito dos mais diversos materiais e de cores cristalinas. Guardas protegiam a entrada e uma alta muralha a dividia do exterior, o que era um isolamento tristonho para a pessoa de dentro, ou pelo menos era o que Vânia imaginava.
Invadiu o lugar sem perguntar, muito menos ser notada por qualquer elfo que fizesse patrulha naquele instante. Pousou na sacada superior do castelo, mirada para a entrada de um aposento especial.
“Que gigante… construíram um castelo e instituíram uma realeza, como imaginei.”
Atravessou as paredes, nada a impedia de observar e contemplar os cantos escondidos do castelo, até mesmo foi uma travessia divertida.
Olhar as bestas enjauladas no calabouço, observar os mordomos e outros nobres passarem lá como se o lugar fosse a própria casa, admirada um pouco do jardim bem crescido — a cada instante surgia um detalhe novo que gerava mais vontade para o espírito explorar.
Parou num quarto largo, bem mais adornado e detalhado que os demais, com uma pessoa em especial, uma elfa de cabelo azulado e vestido longo.
Ela estava sentada numa cadeira, segurando uma pena e escrevendo num pergaminho longo. Os ares ao redor dela eram diferentes, semelhante ao da realeza.
Vânia identificou isso só de ver o gigante quadro pendurado no lado oposto à cama, em que a mesma mulher se encontrava sentada num trono com uma caveira e uma adaga em mãos.
“Uh… muito brutal. Elfos mudaram tanto assim em 900 anos?”
Mais curiosidade borbulhou em Vânia. Aproximou-se devagar da escrivaninha — se não fosse pela reação brusca daquela elfa, teria visto o conteúdo no pergaminho.
O espírito recuou na hora que uma adaga de punho azul escorregou pelo ar, empunhada pela esquisita e brutal mulher.
Vânia sorriu — mesmo sem rosto — e flutuou próxima ao teto, deixando-se levar como se estivesse na correnteza de um rio.
— Oh, muito interessante… me vê, elfa?
— Como… como entrou aqui? — A lâmina se ergueu na direção do ser. — Feitiçaria? Não, bruxaria?!
— Relaxe, por favor, só sou um espírito um pouco solitário que gosta de ser xereta
A reação da elfa não era boa, ela arremessou a adaga em sua direção, mas apenas atravessou o peito e tocou o teto.
Ao menos, o espírito decidiu brincar, soltando um gemido e rolando para trás até bater no chão com uma batida falsa.
Em seguida se levantou, dando de ombros e só deixando a pobre mulher mais assustada do que já estava. Uma breve olhadela no restante do cômodo a fez perceber uma pequena coisinha, uma coroa colocada em cima de um escravo-mudo.
Pegou a coroa, sem saber como exatamente funcionava o toque de outras coisas, mas ainda assim decidiu colocá-la na cabeça.
— Oh, entendi, você é a rainha. Quando entrou no poder?
— Que calúnia… — Ela se achegou na janela e apanhou um objeto amadeirado ali. — Suma, espírito!
Uma varinha foi apontada na direção de Vânia e um raio disparou dali. A energia atingiu o espírito em cheio, pena que mal causou efeito, só uma dor curta que passou sem o menor problema.
A expressão pasma da rainha só melhorava, o que dava crises de riso ao espírito brincalhão. Flutuou na direção dela, vendo-a recuar mais e mais até se ficar no canto do recinto.
— Ei, eu não sou um espírito ruim, sou só Vânia, tá?
Inclinou o pescoço, cheia de dúvidas quanto a personalidade e modos da rainha. Seus nervos continuavam atiçados para descobrir o que o quadro pintado, a caveira e é claro a falta de força daquela mulher.
Em sua época, reis e rainhas costumavam se livrar de espíritos ou se equiparar a eles, porém não era esse o caso.
— Você é chata, acho que vou…
Porém, uma agulhada faiscou em sua consciência. Era um incômodo passageiro, um tipo de pressentimento acoplado nas entranhas de seu próprio ser.
Demorou bastante para perceber uma mancha na visão, um ponto sombrio que se escondia nas raízes da grande árvore abaixo de si.
— Quem… quem está sugando os nutrientes do meu trabalho?
Uma ira se apossou do espírito, ao ponto dela atravessar cada mísero canto que conseguia ver num piscar de olhos, isso até chegar nas raízes metros abaixo da terra.
Ao chegar lá, a fúria se esvaiu como um balão, dando lugar a um receio, surpresa e uma mescla de reações que um ser sem face não conseguiria descrever.
— Khamila?
Ela via aquela flor negra em meio a penumbra, plantada bem no meio das raízes, absorvendo o néctar divino que o próprio espírito tratou de criar.
Porém enxergar a expressão daquela mulher de cabelo negro era um sentimento pior que tocar uma rosa selvagem.
— Ora, ora… veja só quem acordou — respondeu Khamila, com um sorriso no canto do lábio. — Há quanto tempo, querida irmã. Veio me ver após acordar da sua soneca?
— Não, não vim… o que você está fazendo? Por que está tomando isso de mim?
— Porque é meu por direito, e você sabe bem.
Vânia se arrepiou. O olhar de Khamila não era humano, era soturno, demoníaco, cercado por uma malevolência contaminante e envolvida por um enlouquecido rancor.
A mulher ergueu o dedo na direção do espírito, uma luminescência negra cresceu na unha e se expandiu em espinhos que se espalharam para o braço.
— Não me obrigue, Vânia.
Pela primeira vez em tantos anos, o espírito teve seu primeiro medo, a primeira vez que a alma conflitou com a consciência e a obrigaram a recuar um passo.
Entretanto, o dever, a obrigação de recusar a ver um ser maligno tomar o que era seu, ainda mais sua irmã, sobrepunha ao sentimento mundano.
— Desculpe, irmã, mas não posso ignorar…
As videiras e raízes cresceram à volta, a natureza ficou ao seu lado. Pequenas dobradiças das raízes se abriram em sinal de quem a comandava.
Um chamado ecoou por toda a árvore, todo animal corajoso e leal ao espírito foi convocado para lutar próximo à ela.
Tremores chacoalharam o subsolo, luzes esverdeadas piscaram pelo corpo do espírito.
A expressão de Khamila não poderia ser pior, um tipo de demônio se apossou dela. Um lado do rosto craquelou, deixando pedaços de pele caírem.
Veias roxas saltaram por baixo da fenda no rosto, expelindo uma seiva arroxeada pútrida que consumia as plantas próximas até reduzi-las à poeira.
— Ande, irmã, venha! — O sorriso se alargou de orelha a orelha. — Quero ver se ainda consegue me fazer sentir a mesma dor de antigamente!
Vânia se concentrou na pessoa à sua frente. Não era mais sua irmã, na verdade havia deixado de ser há muito tempo. Agora era uma mera carcaça demoníaca livre para ser absorvida por mera desgraça.
Um último momento fez o espírito ponderar no que devia fazer, entretanto a escolha possuía um único caminho: destruir Khamila de uma vez por todas.