O Invocador Sagrado - Capítulo 30
Os ares amigáveis e intrigantes da sala de reuniões do Círculo faziam Roan imaginar como eram as coisas ali e quem eram os demais invocadores.
Inclusive, achou interessante a zona de arquivos, que ficava guardada em um dos vários corredores do complexo quartel do Círculo.
Uma pena que era um lugar tão vazio. As mesas empoeiradas e o balcão sem ninguém trazia um arrepio, como se um fantasma assombrasse o recinto.
Ele decidiu conferir os livros e papéis a partir da permissão de Joaum. Ficava cada vez mais curioso para conhecer a identidade de Zapion e talvez dos outros invocadores, mas tudo o que encontrou foi pura decepção.
Os documentos não possuíam nenhuma indicação de tempo, ou seja, era uma pilha de informações desorganizada em que não tinha começo ou fim.
Pior ainda era que todos os papéis eram velhos, praticamente impossíveis de se distinguir em idade, enquanto outros tinham se deteriorado ao ponto de serem ilegíveis.
“Só tem coisa inútil aqui…”
Mais uma averiguada nos documentos realmente confirmou seu pensamento. Não havia sequer um dado útil, era tudo sobre coisas que já viu antes, invocações sendo feitas com círculos e algo acontecendo em seguida.
Estranhamente, eram escassos os casos em que “a invocação dava errado”, e nem mesmo o que aconteceu depois era registrado.
Logo, todos os dados seriam uma porção irrelevante de informação. Deixou um último rolo de pergaminho no mesmo canto e pegou uma cadeira.
Imediatamente, uma cobrinha rastejou para cima da mesa e deslizou em direção ao braço dele.
— Jade, você é até bem dengosa…
O animal silvou em resposta e recebeu uma leva de carícias. Era incrível como em quase toda situação a pequena invocação mantinha o ânimo, parecia até gostar de ficar tão perto do próprio mestre.
Porém essa paz durou pouco. Um tremor irrompeu por todo lugar, tanto que Roan chutou a cadeira para trás e ficou de pé, enquanto estendia a mão para Jade se esconder debaixo da roupa.
Correu para o lado de fora, atravessou os corredores com pressa até bater bem na frente da entrada. Empurrou as cortinas, seu olhar foi de um lado para o outro, então o sangue gelou.
Havia uma enorme serpente azulada estacionada bem na frente da porta. Tinha pelo menos o dobro do tamanho de Roan, além de um par de olhos dourados assustadores.
Ele fechou a cortina, deu meia-volta e acelerou o passo de volta ao quartel do Círculo. Antes de chegar no mínimo na sala de reuniões, um puxão na perna o arrastou de volta.
— Me solta! — Tentou chutar de volta em vão, o que só fez a força do puxão aumentar.
A serpente decidiu brincar um pouco ao trazê-lo à força para fora, deixando-o de ponta cabeça e mirando os olhos sedentos contra os dele.
Roan teve que criar nervos de aço para não paralisar de medo. Na verdade, sorte a dele por reparar num pedacinho de cabelo no topo da cabeça daquela criatura e isso ser o suficiente para mudar toda a situação.
— Diilan…?
— Opa, oi? — O maldito nobrezinho colocou o rosto para cima e abaixou a cabeça. — Ah, como vai, Roan?
— Vou bem, vou bem… — A expressão fechou numa carranca ao revê-lo. — Vou tão bem que você quase me mata do coração!
— Foi mal, foi mal! Tean, pode descê-lo devagar.
Tean balançou a cauda e muito lentamente — mais devagar que uma tartaruga. — abaixou Roan. Àquela altura, o sangue havia escapado direto para o cérebro e causou tonturas quando bateu a bunda no chão.
Estapeou um pouco as bochechas e franziu o cenho, ao mesmo tempo que se ergueu e observou Diilan deslizar pelo corpo da gigantesca serpente como um tipo de escorregador improvisado.
Esse dia certamente tiraria bastante a paciência de Roan pelo simples motivo daquele cara aparecer de uma maneira tão desastrosa. Pior ainda era notar a pequena comoção que ocorria bem no centro do assentamento.
— Diilan, desvaneça essa invocação logo!
— Tá, eu vou, só um minuto. — Ele se voltou para a invocação e repentinamente travou. — Como que faz isso? E-eu nunca fiz…
O deboche do homem só piorou. Decidiu ser rápido e usou a ponta do pé para traçar um símbolo de invocação desajeitado. Pegou nas mãos de Diilan e as uniu, então o empurrou para ficar de frente à serpente.
— Diga desvaneça, rápido!
— Des-desvaneça!
O corpo da invocação soltou um flash de luz, pedaço por pedaço se dissipou até não sobrar mais nada do animal, o que deixou Diilan de queixo caído.
Roan soltou um suspiro e relaxou os ombros, porém observar a massa de pessoas que a cada instante se aproximava só gerava batidas de pé e um arrepio na nuca.
Pôs as mãos nos ombros do nobre enxerido ao seu lado e o arrastou para dentro antes que o pior acontecesse. Como era de se esperar, a comoção toda incomodou uma pessoa em especial, um mendigo muito relaxado.
O invocador avistou Joaum do outro lado do corredor, parado e com uma das mãos na cintura, de semblante tão tranquilo que poderia ser confundido como um morto.
— Joaum! — chamou, tirando-o de uma espécie de transe. — Você tem como resolver o problema lá fora?
— Ah, sim, tenho sim… — O arquidruida coçou as pálpebras e estufou o peito. — Me dê um momento, estou indo.
Ele passou ao lado de ambos e tirou a cortina do caminho. Roan só conseguia torcer para que ele desse um jeito de convencer os membros do assentamento.
Enfim, voltou a puxar Diilan pelo braço, até baterem na sala de arquivos. Soltou-o na hora, junto de um ar pesado preso no peito.
Encarou-o por um momento, analisou das cabeças aos pés e uma pulga atrás da orelha o perturbou.
“Por que os dedos dele estão desse jeito?”
Por algum motivo, a ponta dos dedos de Diilan estava arroxeada e com uma porção de feridas expostas.
— Ei, você arranjou uma briga com alguém da cadeia ou coisa assim? — perguntou, apontando para as palmas dele.
— Eu? Não, claro que não!
Ele levantou os braços, as mangas da túnica desceram um pouco e revelaram mais hematomas e cortes pequenos.
Aquilo foi capaz de revirar o estômago de Roan, imaginando o porquê umas estavam com a pele necrosada e o motivo daquele nobre exalar um cheiro tão ruim.
— Diilan, o que diabos você fez?
— Eu fiz uma invocação… — Houve uma pausa dramática, como se tentasse criar uma tensão.
— Com seu próprio sangue? — respondeu de imediato, levantando uma sobrancelha.
— Aham, deu super certo e escapei da prisão rapidinho. Destruí só umas coisas no caminho, nada demais.
— Ou seja… — Ele apertou as pálpebras. — Você se tornou um criminoso e um fugitivo.
— Mais ou menos isso, mas agora que estou aqui, não preciso me preocupar!
Aquilo tirou um suspiro grave de Roan. Diilan se assemelhava a um ímã de problemas — e todos eles vinham para infernizar a vida do invocador com paranóias dos desastres que poderiam acontecer só de relacionar com ele.
Relaxou os ombros e puxou a manga da blusa. A cabeça de Jade escorou para fora, seguido por um Sssss mortífero mirado na direção do nobre.
— Jade — chamou o mestre da invocação —, ataque.
A cobra deu o bote e se enrolou em Diilan, apertando os braços feito uma corda grossa. Ele deu um pulo de susto e caiu no chão, todo trêmulo e com os mesmos olhos de cachorrinho triste, igual a primeira vez que viu Piettra.
— Ei, não faça isso! — Debateu-se de um lado ao outro, saltando feito um peixe fora do mar. — Nós somos amigos, isso não é coisa que amigos fazem!
— Melhor sozinho do que mal acompanhado. — Deu de ombros e torceu o nariz. — Só preciso que você fique quieto por um minuto. Vou ver como as coisas ficaram lá fora.
Roan deu meia-volta e se encaminhou aos corredores. Deixou os apelos de Diilan, como “Eu não fiz nada!” e “Não me deixe!” para trás antes que sua cabeça fosse consumida pela própria idiotice dele.
De volta à entrada, deparou-se com Joaum sozinho na beirada da elevação. O invocador balançou a cortina para o lado e se aproximou, apenas para ver o que prestava atenção.
As pessoas que antes tinham ido investigar o ocorrido haviam se espalhado por todos os lados. Aparentemente as palavras ou o discurso do arquidruida funcionou para conter os ânimos, seja lá o que foi falado.
Entretanto, ao virar a cabeça para o lado e vê-lo novamente, Roan deduziu que algo estava fora do lugar, como se aquele homem se encontrasse em outra dimensão.
— Joaum?
Mexeu a mão na frente do rosto de Joaum e estalou os dedos repetidas vez, nada aconteceu. Precisou empurrá-lo um pouquinho para desfazer o transe.
— Ah, mil desculpas — falou, enquanto apoiava a palma na testa.
— Tem algo de errado? Você parece estar sonolento.
— Não, não… é só um zunido que escuto. — Apontou para as orelhas. — É como se uma voz me chamasse, não sei dizer direito.
— Oh, entendo. Sentia isso quando trabalhava na empre… ca-ham, quando trabalhava para uma pessoa com assuntos monetários — mentiu, com um sorrisinho de canto. — Enfim, podemos entrar um pouco? Quero resolver a questão daquele idiota.
— Claro, vamos indo.
Após retornarem à Diilan — que na hora possuía um rosto radiante. —, houve uma série de esporros, principalmente pela parte do arquidruida.
Na verdade, Roan ficou bem embasbacado ao descobrir o tanto de brutalidade e sinceridade que o arquidruida tinha. Secretamente, no meio da terapia, fez um pacto consigo mesmo de nunca ser alvo das palavras dele.
Diilan abriu a boca em determinado momento e decidiu explicar o que aconteceu para tomar medidas tão extremas para chegar no assentamento.
Porém, antes da história iniciar, Joaum trouxe o clássico acompanhamento de chá e bolachas de farinha.
O invocador se viciou um pouco na bebida, talvez por ter tomado demais. Era até desconfortável pensar que o chá conseguia relaxar sua mente hiperativa, quase como o inverso de café.
Terminados os preparativos, o nobrezinho detalhou primeiramente o caso de sua prisão. Argumentou que foi injustiçado — o que para alguém que já o conhecia há alguns dias era uma clara mentira, a julgar pela maneira dramática que adorava falar.
Teve uma breve parte de julgamento, na qual comentou sobre um breve julgamento errado da parte da Polícia Vaniense, e como detinham a proeza de serem grandes estraga-prazeres.
Semelhantes a juízes, outra vez Joaum e Roan consideraram muito idiota da parte de Diilan fazê-los acreditar que sua prisão era sem motivo.
A conversa continuou — e Diilan continuava a cavar mais fundo sua cova. —, até que uma parte específica captou a atenção do invocador.
— E também, se eu fosse falar dos idiotas que vi no caminho, uns caras encapuzados e um velho lá, nem teria como…
— Caras encapuzados e um velho? — interrompeu, desencostando da parede. — Como era esse velho?
— Por que você quer saber disso? Eu nem terminei de contar!
— Não importa, só tente lembrar como ele era.
— Como era? Hããã… — Jingou a cabeça de um lado para o outro. — Era barbudo, parecia até um defunto… sabe, também parecia um vilão sombrio, daqueles bons das peças de teatro. E ele vivia gritando “Ataquem, homens, pelo bem do ritual”.
Cenas rebobinaram na cabeça de Roan, um flash inundou sua cabeça com a memória de uma pessoa igual ao que Diilan descrevia.
Seus pulsos gelaram só de imaginar o que seria o dito cujo ritual. Onde seria? Por que justamente naquele lugar e agora? Cada momento que pensava nessas circunstâncias, cada momento era recheado de palpites dolorosos que consumiam sua memória.
Eis que um terremoto interrompeu os devaneios. A bandeja caiu no chão, as xícaras se espatifaram e pedaços do teto caíram.
Roan chamou Jade de volta e apressadamente correu para fora, junto dos outros dois invocadores que fizeram o mesmo.
A estrutura desabava pouco a pouco, partes de madeira velha quebraram num instante e o piso se desmanchou conforme escapavam da calamidade.
Ao saírem, depararam com um caos sem fim. Um lado do assentamento tinha se dividido em dois, a fonte estava totalmente destruída e o rio secou.
— O que… — Joaum desceu as escadarias numa corrida. — Vocês dois, me ajudem, rápido!
O invocador agiu primeiro e sacou um círculo de invocação do diário. Apanhou o cristal de terra e o largou em cima do símbolo, uma energia esverdeada circundou pelas linhas e se uniu ao centro.
Um pilar verde subiu, urros soaram de dentro do círculo. Então, quando a luz se dissipou, um grande gorila com vinhas ao redor dos músculos surgiu.
Roan montou em cima da invocação, apontou para as pessoas e levantou a voz: — Rápido, salve aquelas pessoas!
A criatura acumulou força nas pernas e saltou, uma cratera deu lugar à região que estava. Movimentos ágeis e socos poderosos protegeram os cidadãos que se encolhiam ao lado das paredes desabadas.
O invocador também erguia as mãos com uma velocidade absurda, Balas Negras voavam de suas mãos e acertavam mais escombros que ameaçavam esmagar pessoas.
Seu olhar passou pela fenda na parede, um vislumbre de uma silhueta arroxeada e uma dourada. A curiosidade mexeu com seu corpo, um tremelique fez a mente trabalhar no que era aquilo.
— Joaum! — gritou, enquanto mirava o dedo na direção da fenda. — Cuide das pessoas, preciso conferir uma coisa!
Sem pensar duas vezes, ordenou que o gorila fosse para lá. A velocidade anormal da invocação o fez escalar em questão de segundos até o topo.
Ao chegar lá, seu sangue gelou. Havia uma mulher de cabelo negro e o rosto roxo quebrado, enquanto do outro lado estava Vânia, revestida por folhas douradas.
Entretanto, o que atiçou seus nervos não foram elas duas, mas outra pessoa, algo muito pior, algo que queimava em sua mente mais do que o fogo infernal de semanas atrás.
Aqueles olhos negros, aquelas garras, aquela postura demoníaca. Era ele.
— Oh… — As orbes sombrias se voltaram à Roan. — Olá, petisco.