O Invocador Sagrado - Capítulo 31
A visão de Cassandra estava turva. Seus olhos não conseguiam se concentrar na luz, tudo chacoalhava com força e arremessava seu cérebro de cima pra baixo.
O peso sobre os braços e pernas causava uma dor excruciante, como se rasgasse a pele e os ossos. Mesmo assim, acumulou força e se levantou, apoiada na parede.
Tudo tremulava, era difícil manter o equilíbrio em meio ao caos das mobílias caindo. Ela respirou fundo e tomou o machado no canto do quarto.
Seus dentes rangeram perante o esforço de andar um pouco mais depressa. Correu o mais rápido que podia, brandindo o machado contra os destroços que tapavam o caminho.
Do lado de fora, tomou um pouco mais de fôlego e balançou a cabeça. Seus olhos voaram em direção à carnalidade que se desdobrava à sua volta, perdida entre os sons constantes de madeira quebrando e vozes de várias pessoas.
— Mamãe! Mamãe!
— Amor! Onde você está?!
— Gisele! Gisele!
O rosto de Cassandra empalideceu. Ela também jogava a cabeça para todos os lados, à procura de alguém, à procura daquela pessoa.
“Roan, onde você está? Cadê você?!”
Por um vislumbre, ela viu um vulto passar pelas casas, além de subir e descer as inclinações com rapidez. Era um capuz negro, com uma longa capa que deixava um rastro por onde ia.
A mulher soube bem quem era aquela pessoa, e já iniciou uma perseguição para alcançá-lo.
Se não fosse pelas vozes, pelos clamores sem fim que a rondavam e pela insistente memória que a atormentava, teria o atingido.
No entanto, ao olhar um pobre casal encolhido num lugar, bem abaixo de uma grande viga que estava prestes a esmagá-los, sua mente travou.
“Cass, isso não é um jogo. Isso é real, tudo o que você toca é real… eu não quero que você morra.”
Trincou os dentes. Seu corpo agiu por instinto, ela saltou na direção dos dois e se colocou bem no meio. O machado se levantou, um balançar feroz dividiu a viga em duas metades idênticas.
Ela apertou o cabo, enquanto seus braços estavam prestes a cair por tanta dor. Ajoelhou, baforadas ofegantes escaparam dos pulmões, enquanto olhava para ambos atrás de si.
— Procurem um lugar pra se… esconder…
Outro fôlego revigorou parte de suas forças. Pegou impulso e se levantou, outra vez em disparada para salvar mais inocentes ameaçados pelo eminente perigo.
“Me desculpa, Roan, por ser tão teimosa, mas isso é para ao menos recompensar o que você me fez perceber…”
Cassandra era incapaz de descrever a sensação de ser recebida com tantos olhares ao mesmo tempo. Só sabia que era muito melhor que a êxtase momentânea de um combate frenético, como se sua energia renovasse toda vez que salvava uma pessoa do perigo.
As batidas do coração se ritmaram com o assobio do gume, seus músculos que antes pareciam estar prestes a explodir se transformaram numa mera inconveniência.
O sentimento de poder retornava em cutucadas mentais, porém não era uma mera loucura desenfreada por níveis, era uma adrenalina que arriscava a própria vida em prol dos outros.
Era uma dança frenética e sem fim, que trazia o limite de Cassandra ao topo e reforçava mais e mais o sentimento de êxtase constante.
Num dado momento, parou de correr. Seus pés hesitaram em dar mais um passo; ela foi forçada a se ajoelhar para não despencar contra o chão.
Foi assim que mais uma vez percebeu o vulto negro, então gritou: — Ravi, moleque!
O vulto parou de se mover e girou na direção de Cassandra. Era exatamente quem ela pensava, Ravi, que estava com suor escorrendo por toda a testa.
O menino se aproximou com pressa e pôs o braço por baixo do ombro dela, ajudando como um suporte para que levantasse.
— Precisamos nos apressar, o lugar todo está caindo.
— E tu acha que eu não tô vendo? Acelera o passo, menino!
O rapaz seguiu rápido na direção de Joaum, que estava do outro lado do assentamento reunindo as vítimas. Uma barragem de madeira e vinhas os protegia de cima, conjurada pelos outros druidas.
Ravi se escondeu debaixo dessa cobertura e fez Cassandra se sentar encostada na parede, onde podia descansar por um tempo, mas antes fosse embora, ela o agarrou pelo pulso.
— O Roan, cadê ele?
— E-eu não sei, ele só subiu por ali dizendo que viu algo. — Apontou para a fenda atrás das pessoas. — Faz pouco tempo que sumiu.
— Tsc. Vou te contar… — Usou do braço dele para sair do chão. — Seguinte, vamos nós dois procurá-lo. Precisamos achá-lo, sabe-se-lá o que acontece quando ele está sozinho.
— Certo… Joaum!
O chamado fez um homem barbudo se aproximar. A mulher franziu a sobrancelha ao vê-lo, era estranho demais um mendigo chegar tão perto, principalmente por não se lembrar quem diabos “Joaum” era.
— Pois não? — perguntou o mendigo, à frente deles.
— Precisamos subir e achar Roan, agora.
— Eu já ia fazer isso, então permitam-me ajudá-los.
Ele manipulou as plantas ao redor com um cajado, formando uma escadaria espiral na direção da fenda que se estendia à um andar superior.
Cassandra foi na frente e escalou os degraus quase como se fosse arrancá-los, mas ao terminar a subida, deparou-se com algo que fez seu coração pular uma batida, uma pontada que tirou o ar da garganta.
Lá estava Roan, de frente para um ser assombroso, de olhos vazios e de corpo tão esquelético que parecia um defunto.
O semblante do amigo era o que pesava seu peito. O suor que escorria da testa, a palidez fantasmagórica, os tremores e as pupilas distantes por um medo catâtonico que corrompia a coragem de uma pessoa.
Cassandra sentia aquele medo, quase como se estivesse na pele dele. No entanto, o medo não podia abalar sua mente naquele momento tão crucial.
Viu o monstro se esgueirar para frente e de repente correr na direção de Roan. Foi nesse instante que interviu, erguendo o machado contra as garras afiadas do demônio e o rebatendo para longe.
— Que infortúnio… — disse a criatura, após pousar no chão.
— Roan!
O chamado não funcionou. Ele permanecia paralisado, distante demais para conseguir responder e num plano mental muito diferente para se compreender.
Cassandra o estapeou, o que imediatamente o puxou de volta à realidade. Seu amigo se recompôs e cerrou os punhos, olhando de uma vez para ela.
— Obrigado, Cass…
— Estamos quites agora — brincou, lançando um sorriso num momento inoportuno. — É aquele desgraçado ali que tá te atormentando faz tempo?
— É, é ele. — Puxou o cajado das costas e apontou na direção do inimigo. — Esse… bicho.
— Vou descer a porrada nele com gosto.
— Não sem mim! — gritou uma voz pouco distante.
Uma breve olhadela para trás fez Cassandra notar Ravi se aproximar, carregando uma adaga em uma mão e com luvas diferentes nos dedos.
Deu de ombros quanto à presença dele, mas era um bom sinal que os três enfrentariam aquele cara bizarro.
Em resposta, o demônio deixou escapar uma risada histérica e alargou o riso de dentes afiados. Um tremor tomou conta da mulher, era quase como encarar um tubarão.
— Tá-tá rindo do que, arrombado?
— Só é fofo da parte de vocês pensarem que podem me parar… — Uma aura escarlate o envolveu, sugando a cor das coisas ao redor. — Muito bem, podem vir.
O medo de antes se dispersou só de notar o sarcasmo e o desprezo dele. Cassandra cerrou os dentes, um fogo se acendeu em seu peito, uma fúria e vontade de enterrar a cabeça do maldito debaixo da terra.
— Você… — Os olhos emitiam uma mística fúria que fazia a terra tremer. — Você…!
⠀
⌈ ⌉
O modo Fúria foi ativado.
⠀
Todos os atributos duplicaram.
⌊ ⌋
⠀
Os passos da bárbara chacoalharam o chão, a gravidade no ambiente pesou sobre as costas do demônio, que recuou um pouco para trás.
— Oh, interessante… — Ele levou a mão para o lado e as garras saltaram para fora. — Veremos como você defenderá o petisco…
— EU VOU TE ESFOLAR VIVO, SEU DEFUNTO DO DEMÔNIO!
Não houve nem janela para reagir, Cassandra disparou na direção do vampiro e ergueu o machado. O gume desceu como uma alavanca, partindo o vento ao meio
O monstro se esgueirou para trás e esquivou, para em seguida proteger o rosto da ventania forte que o choque do gume e o piso causou.
Aquela força o arremessou para longe, porém conseguiu recobrar o equilíbrio de última hora e caiu em pé. Entretanto, um instinto sobrenatural o alertou de uma presença próxima.
Uma adaga raspou pela lateral da cabeça, cortando os fios secos. O vampiro girou o calcanhar e retrucou com um chute, nisso viu um rapaz de túnica preta desviar do ataque se agachando.
“Como não o vi antes?”
Pena que não havia tempo para pensar no meio da batalha. Um punho escuro o pegou desprevenido, acertando suas costas e o arremessando para longe.
O vampiro arrastou o corpo pelo piso, até rolar de barriga para cima e levantar. Um lado do rosto tinha sido amassado pela queda, porém em questão de segundos voltou ao normal.
“Ah, foi o macaco, agora sim entendo…”
— Essa luta está muito injusta, não concordam? — falou, de queixo erguido. — Sinto que devo nivelar um pouco as coisas.
A aura avermelhada se transferiu para o braço de Gandriel, densificando uma energia caótica que balançava de um lado para o outro e disparava pequenos raios vermelhos.
Em seguida, um pedaço da aura se dividiu do braço e tomou vida sozinha, tornando-se um amontoado disforme que aos poucos ganhava poder.
Ele riu da expressão assustada do trio, e quando uma criatura emergiu de dentro de seu casulo, o riso aumentou. Sua invocação apareceu, um cavaleiro de espada e armadura negra, com uma carcaça morta por baixo.
— Dois contra quatro, que a verdadeira luta comece!
⠀
*****
⠀
A situação de Vânia piorava a cada instante. Suas pétalas douradas estavam com a superfície corroída, uma falta de ar tomava o pouco fôlego restante daquela forma espiritual.
Pior que isso era ver que aquele demônio não recuava. Observar o rosto craquelado e cheio de rachaduras arroxeadas causava um verdadeiro temor, já que os pedaços de carne podre que caiam consumiam a madeira abaixo.
— Khamila, você sabe que as coisas não precisam ser assim…
— E o que fará se eu quiser que sejam, Vânia?
Um momento de silêncio precedeu ao inevitável ataque de Khamila, uma saraivada de espinhos negros que saltaram da mão. Vânia foi pega desprevenida, estava a um triz de ser atingida pelos espinhos, até que uma barreira de folhas a protegeu.
— Soube bem que havia algo de errado — disse uma voz atrás, a de um homem. — Mil desculpas pela minha demora, espírito. Este humilde druida se oferece a ajudar.
Por cima do ombro, viu um homem barbudo e de manto verde abaixar o cajado. A proteção se expandiu para frente, ricocheteando os espinhos na outra direção.
Joaum apoiou o cajado no ombro e girou os dedos no ar, a madeira se distorceu num parafuso abaixo da aberração e a prendeu numa cela natural.
— Qualquer auxílio é bem-vindo — respondeu Vânia, unindo as mãos.
Uma energia verde se acumulou ao redor do espírito, para em seguida envolver o arquidruida ao lado. Era quase um efeito revigorante, e só de tocar a aura, o velho rejuvenesceu alguns anos.
Porém, a atenção de Vânia se redobrou na direção da inimiga, que lentamente abria uma passagem entre as grades, apodrecendo as barras com uma força tirana.
Mesmo que houvesse medo de ser um alvo de uma pessoa com um poder tão destrutivo, certos sacrifícios eram necessários. O espírito abriu os braços e os fechou, as paredes do andar foram puxadas em direção ao monstro e o comprimiram.
Uma pena que nem isso foi suficiente, cracks ressoaram dali, seguido por uma coletânea de rachaduras que emergiram das grandes vigas e pouco a pouco absorveram a madeira em uma cor roxa.
Khamila emergiu da abertura, uma secreção escorria pelo canto do rosto, uma carne pútrida que infectava qualquer coisa viva próxima e se espalhava como uma praga.
Joaum girou o cajado e elevou uma plataforma abaixo dos pés, esquivando-se do mar de veneno que se estendia abaixo.
Vânia flutuou para cima, mas a sensação interna era de uma queimação intensa. Ver cada pedaço de sua grandiosa árvore virar comida de um asqueroso parasita, no qual insistia em se alimentar de seus frutos.
A fúria do espírito se transmitiu em uma cintilação intensa, atraindo a atenção do parasita que a observava de baixo.
— Isso… isso! Vire meu precioso banquete, Vânia!
Pétalas floresceram por todo lugar, inclusive em meio ao ar. O espírito manifestou sua vontade ao abrir os braços e tocar as pétalas, revestindo-as em um fulgor dourado.
Um tufão amarelo se formou, levando a brisa intensa das pétalas que rodopiavam numa dança floral sem fim. Lentamente Khamila foi consumida por esse vento, porém o resultado se tornou pior do que o esperado.
O tufão mudou para um preto profundo, diminuindo até virar um conjunto de cinzas na mão da parasita. Ela riu, satisfeita em tocar tanto poder de uma vez.
Vânia perdia altitude, o corpo espectral vacilava e oscilava em brilho. Toda sua energia desapareceu, desperdiçada em um ataque fútil que nada mudou.
— Kwahahahaha! — riu Khamila, enquanto olhava para a desgraça da irmã. — Quanta genialidade! Obrigadíssima por me dar com espontânea vontade o seu devido trabalho, irmã!
O espírito mais uma vez tentou achar alguma força que pudesse virar o jogo, porém apenas uma penumbra crescente a aguardava. Olhou para o monstro do outro lado, seu pior erro logo diante dos olhos.
Uma última esperança caiu dos céus. O chão tremulou, luzes piscaram por todos os lados. Vânia viu, num último vislumbre, um pilar branco subir ao teto, emendado por um poder que chacoalhava o ar.
Logo atrás do pilar estava aquele homem, aquele pacato invocador que de alguma forma realizou um grande sacrifício para a salvação, à um custo muito alto.
“Ele está se deteriorando, a energia é forte demais para ele…” Num último ato de benevolência, Vânia estendeu as mãos na direção do homem, deixando que o último fragmento de sua alma o alcançasse. “Só posso contar com você, Invocador.”