O Invocador Sagrado - Capítulo 33
Khamila repelia os ataques de Grantia e do golem com facilidade. Ambos mal conseguiam chegar perto, enquanto suas raízes absorviam mais e mais da energia vital restante da árvore.
“Em pouco tempo estarei totalmente recuperada, só preciso de mais…”
O ar gelou, tudo paralisou por um instante. O lugar pareceu perder as cores, a frieza no ambiente trazia presságios terríveis de uma fúria descontrolada.
Grantia parou de atacar e recuou, pousando no ombro do gigante golem. Aquela pressão era muito maior que a sua, tanto que dobrava o peso da gravidade sobre si e causava um constante formigamento em cada parte da consciência.
Foi então que os três viram aquele incomum ponto amarelo aparecer em meio aos destroços, coberto por uma invisível energia vermelha que consumia a vontade de lutar.
A energia realizava se mexia de um lado para o outro, numa descontrolada dança de um desejo latente de fúria, redobrada por uma incandescente fúria de proporções colossais.
A rosa se voltou à pequena mulher que lentamente chegava perto. De primeira instância hesitou, até uma leve curiosidade a atiçar e uma raiz emergir do piso, prendendo os pés dela no lugar.
Porém de nada adiantou, aquilo não impediu a bárbara, que partiu a raiz só de seguir em frente, sem precisar de esforço algum.
— O que?
Outra vez Khamila tentou segurá-la, meramente para jogar qualquer esforço em vão. De nada adiantou, nada barrou o caminho daquela montanha de ódio.
A barreira da realidade pareceu se distorcer perante a aura de insanidade ao redor dela, rachaduras translúcidas voavam de um lado para o outro, quebrando o conceito do que era real e irreal.
Então, num piscar de olhos, Cassandra desapareceu de vista. O monstro planta recuou, pouco se importando com os outros dois inimigos que observavam o decorrer dos eventos.
Não encontrava em canto nenhum, aquela mulher sumiu feito um vento. Ou foi o que pensou, até ver um punho afundar contra o rosto e sentir uma força capaz de arrancá-la do chão e lançá-la para longe.
— Co-como isso é possível?! — Recolheu o próprio corpo, enquanto retornava à forma humanóide.
Seu rosto voltou a quebrar, pequenos riscos cresciam ao redor dos olhos e por debaixo do queixo. O líquido roxo vazou em lágrimas, escorrendo pelo rosto e caindo no chão.
— Ela… ela quase quebrou meu rosto…
Mesmo tocar na própria cara trazia um anseio temeroso, anseio este que não teve momento para ter seus devidos efeitos, pois novamente a silhueta dourada e vermelha reapareceu.
Um segundo soco alvejou Khamila, mas ela desviou por um triz, e mesmo assim a onda de choque e ventos proporcionados pelo mero movimento do braço daquela mulher foi suficiente para fazê-la recuar.
— Esse poder todo… é quase como se fosse igual ao mestre.
Passos ecoaram em meio a névoa de poeira, duas esferas vermelhas surgiram, cintilantes e flamejantes. O monstro tremeu, pela primeira vez em muito tempo seu corpo vacilou diante de um humano.
— Não… eu não posso aceitar isso!
A energia mágica circundante foi drenada para si, esferas sombrias e plantas se levantaram em sintonia com a magia que rondava por ali.
A gravidade mais uma vez pesou, o brilho nos olhos se fortaleceu, o ar ficou tão denso que se tornou quase irrespirável.
— RAAAAAAAAAA!!!
A névoa de poeira se dividiu, dando espaço para um demônio dourado desenfreado que gritava para expurgar o coração dos medrosos, e sua presa era ela, Khamila.
Cassandra corria como um animal selvagem, as próprias unhas dela rasgavam o piso em pedaços junto das plantas. Antes mesmo do monstro perceber, aquele demônio já havia mais uma vez chegado perto demais, ao ponto de rasgar sua face com um pura força bruta.
Seus passos vacilaram, a mão segurou o constante sangue pútrido que jorrava do semblante assustado.
A velocidade alucinante com que sua inimiga se movia, o poder colossal que carregava em meros socos e arranhões descontrolados e os gritos demoníacos que fugiam da garganta dela eram impossíveis de enfrentar.
Quanto mais a batalha se arrastava, mais Cassandra se fortalecia em meio às trocas francas de golpes. Lentamente, o aspecto animalesco ganhou mais forma, as unhas ficaram mais afiadas, os caninos cresceram e os olhos vermelhos se transformaram em um caos que implorava por carnificina.
Em dado momento, Khamila perdeu a concepção de tempo. A pura presença daquela pessoa retirava os sentidos mais importantes, e isso aos poucos empurrava o monstro contra um beco sem saída.
Mesmo que se defendesse da sequência infinita de ataques, ela sabia que a luta estava perdida.
“Preciso fugir, não há jeito!”
Outra vez sua inimiga atravessou o espaço em um piscar de olhos, dessa vez com as garras apontadas para seu pescoço e com a mão levantada.
Khamila desviou por instinto, mal conseguindo acompanhar a velocidade alucinante daquele golpe. As garras desceram, o vento partiu em dois e uma força voou na direção da parede, abrindo um rombo.
“Lá!”
A mulher correu na direção da abertura, deixando para trás qualquer coisa que pudesse comprar tempo. Saraivadas de espinhos voaram pelo ambiente e vinhas romperam o solo na direção de Cassandra.
Ela, no entanto, parou e segurou o primeiro espinho que ameaçou acertá-la, para em seguida dispará-lo no monstro. O atrito com o ar destruiu o que tinha no caminho e atingiu brutalmente o alvo.
Khamila parou de fugir. Seu peito foi atravessado, com um rombo no lugar do que seria o coração. A luz do lado de fora resplandecia em cima da sua pele, tão perto e ao mesmo tempo tão distante.
E assim, o corpo do monstro caiu, despencando do topo da árvore. O sol raiou sobre Cassandra, os traços animalescos desapareceram e a poderosa aura se dissipou.
Tudo à sua volta se definhava, as plantas murcharam e os galhos da árvore secaram. Pedaços do teto se fragmentavam junto do chão, formando um círculo de destroços ao redor dela.
Porém, a mulher não seria deixada para morrer. O golem de madeira a protegeu e tratou de pegá-la, em seguida saiu pela fenda na parede, livre para retornar ao lado de fora.
Quanto à Grantia, ela segurou o corpo de Roan no colo. Uma última vez, viu a árvore de Vânia, assim como escutou os gritos distantes de milhares de pessoas.
O peito apertava diante daquela desgraça, diante de todo o caos e destruição causado por mera ganância. A árvore não se sustentou mais, o tronco se arrastou para o lado, arrasando uma parte da floresta na queda.
Grantia não podia chorar, mas se pudesse, rios sairiam por seus olhos, pois a obra de toda sua vida foi arruinada num sopro do destino.
Ela não possuía mais nada, exceto por um sentimento constante, um senso de dever que transcendia a tristeza da perda. Olhou para a mulher loira, que permanecia sentada com a expressão distante e chorosa.
— Invocador, honrarei seu desejo, como uma maneira de redimir o tanto que lhe devo, e em respeito ao seu sacrifício.
Sabia que o invocador jamais escutaria seu juramento, mas guardou-o consigo. E assim, eles três seguiram ao horizonte sem destino e numa empreitada por um rumo certo.
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Grantia, o golem e Cassandra viajaram um longo caminho. Não havia ponto específico para se ficarem em algum lugar, e muito menos existia um motivo para deixar de viajar mundo afora.
Em determinado dia, Cassandra avistou uma praia no horizonte e pediu para pararem. Ambas as invocações obedeceram, e assim a mulher teve seus momentos sozinha na beira do mar.
Foi lá que enterrou o corpo de Roan num túmulo humilde de areia, demarcado por uma tábua de madeira mantida por pedras, com um pequeno espaço entre elas para o diário.
Só que, antes de colocá-lo, Cassandra teve que abri-lo — e ela chorou. Ler cada palavra de um amigo que partiu, ler cada sentença escrita por uma pessoa tão querida doía tanto que ela chorou por dois dias inteiros.
Naquele diário não havia somente a descrição da aventura inteira que fizeram, mas se preocupações, sonhos, esperanças e os desejos de um amigo. Era singular, era único, era a última memória viva dele.
Mas ela não era capaz de segurar o diário. Sentir-se suja, culpada, amaldiçoada à inevitável morte e destruição.
— Eu que-queria… — Ela deitou a cabeça no túmulo. — Eu queria que você estivesse aqui… eu-eu queria me des-desculpar por tudo… eu queria que-que eu tivesse feito as escolhas certas… e-eu queria que você estivesse comi-mogo pra me di-dizer o que eu faço, Roan… eu queria que você estivesse aqui para que eu pudesse voltar ao normal… Por favor, Roan, fale comigo, volte pra mim, por favor…
Roan nunca respondeu — e jamais responderia. Cassandra caiu de joelhos na areia, o brilho do sol refletia em suas inúmeras lágrimas que molhavam o pobre túmulo de seu amigo.
Ele não voltaria, ele continuaria para sempre morto, um homem perdido para o fato inevitável da morte.
Quanto a ela, estava condenada a sofrer por isso, condenada a para sempre lembrar do sorriso caloroso e das simples brincadeiras que animavam seu dia — e que nunca mais retornariam.
O tempo consumia sua vontade, largar o diário, a última parte viva de Roan, era como um punhal atravessando o coração.
— Adeus, Roan…
E enfim, ela pôs o diário em cima da tábua e se ergueu da areia. Afastou-se devagar dali, seguindo pela costa e aproveitando o silêncio momentâneo que o acaso ofereceu.
Num vislumbre, observou o gigantesco sol iluminar as águas do mar, como sempre acontecia. Ela cerrou os punhos e observou o céu azulado.
Era tudo calmo e colorido, mas seu mundo não possuía mais essas cores. Era cinza e preto, misturados numa paleta morta que se repetia, e disso surgiu uma ideia, um propósito.
— Se magia pode fazer qualquer coisa nesse mundo… — Cassandra abaixou a cabeça diante do sol. — Eu vou te trazer de volta, custe o que custar.
Ela deu as costas para a praia e caminhou sozinha, decidida a cada passo, com uma mente presa num ideal quase impossível. Um ideal que ela mesma perseguiria por quanto tempo fosse necessário.
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O plano superior era mesmo muito estranho. Ele possuía uma forma de um corredor branco, com janelas escuras nas laterais, barras de ferro no teto e por fim assentos de plástico enfileirados e voltados para o centro.
— Isso é… um vagão?
— Exatamente, caro senhor Roan.
O homem se virou depressa, seu coração pulsava no peito, e a pulsação aumentou ao se deparar com aquele sujeito excêntrico de máscara e uniforme de comissário.
— Você…!
— Sim, sou eu, o comissário Sebastian, senhor Roan.
O comissário jogou as mãos para trás na altura da cintura e inclinou a cabeça para o lado, tentando decifrar o que o passageiro pensava.
Então, estalou os dedos, como se uma ideia tivesse surgido em sua cabeça. Uma folha de papel se materializou à frente de Roan.
— Primeiramente — continuou Sebastian, com uma das mãos no peito —, deixe-me dizer que o senhor cumpriu um dos requisitos do contrato, que era obter um título.
Ele balançou os dedos no ar, janelas azuladas voaram da direita para a esquerda até pararem num nome familiar — Salvador dos Salvadores.
— Correspondente a você, eu diria. De qualquer modo, já foi depositado na sua conta cósmica a quantia de 200.000. Nesse momento o vagão deve estar voltando à sua realidade…
— O que…?
— Sim, ele está voltando à sua realidade. Você não morreu de verdade, nem sua amiga Cassandra morreriam. Seus corpos estão bem preservados na sua realidade.
A pilha de informações fez Roan travar. Com o contrato em mãos, leu-o de cima a baixo, encontrando uma nota miúda escrita numa letra bem pequena no final da folha que dizia “Os contratantes retornarão ao seu mundo original se morrerem em Serpentina”.
Sua garganta secou. Estar ali dentro daquele vagão estranho repentinamente, logo depois de salvar Cassandra, só podia significar o óbvio.
— Espera, e Cassandra?! O que aconteceu com ela?!
— Ela está viva e bem. Só você morreu.
— Não pode ser… Sebastian, eu quero voltar!
— Desculpe, receio que seja impossível.
Roan apertou o papel, quase rasgando a folha em dois. Num súbito instinto, ele correu na direção do comissário e tentou socá-lo.
Sebastian apenas deu um passo para o lado e andou até a extremidade do vagão, onde apoiou as costas na porta.
— Porra! — xingou Roan, chutando um dos bancos. — Eu preciso voltar pra lá! Cassandra precisa de mim!
— Mais uma vez receio que…
Drumm, Drumm.
— Ah, uma ligação dos planos superiores — falou, agarrando um rádio do bolso. — Alô? Ah, senhora Yondra, em que posso ajudar?
O comissário murmurou com a outra pessoa do rádio. Roan respirou fundo, assentou-se num banco e colocou as mãos na cabeça.
“Acabou… merda, o que eu farei agora?”
— Senhor Roan — chamou Sebastian. — Tenho uma boa notícia, o senhor acabou de receber uma oferta para retornar.
— Sério?! — Ele se levantou do banco e andou depressa. — Como? O que eu tenho que fazer?
— Algo bem simples, senhor…
Um novo papel se materializou nas mãos de Sebastian e foi repassado para Roan. Era um contrato novo, com os termos apropriados que a contratante desejava.
O homem leu e se aquietou. Seus dedos tremeram, a garganta seca mal pronunciou qualquer palavra e os olhos releram inúmeras vezes o mesmo conteúdo.
Sebastian, sabendo do que viria, puxou uma caneta esferográfica do bolso. Estendeu o objeto para o contratante, e este apanhou a ponta da caneta. Em um minuto, assinou o contrato.
— Senhor Roan, tem certeza disso?
— É o único jeito.
— Pois bem, tome isso.
O comissário lhe entregou um relógio dourado, de ponteiros estáticos. Após Roan pegá-lo, o vagão começou a balançar e avançar mais depressa.
Enfim, tudo parou, as portas do vagão se abriram num plano escuro. O homem olhou para o lado de fora, um grande trono estelar brilhava em meio à escuridão.
— Só posso lhe desejar boa sorte, senhor Roan.
O trem voltou a se mexer assim que Roan deu um passo para fora. Cada passo seu hesitava, e quanto mais se aproximava do trono, mais um arrependimento consumia sua consciência.
Ao chegar bem perto, aquela que se tomava o lugar se levantou. Era uma mulher de cabelo estelar, cujo corpo era uma coletânea de infinitas constelações.
— Vejo que aceitou o contrato, caro Invocador… — A voz ecoou pela escuridão, como se milhares de pessoas falassem ao mesmo tempo.
— Si-sim… eu aceitei.
— Está mesmo disposto a sacrificar tanto assim?
— Eu es-estou!
— Que interessante…
Ela desceu do trono flutuando e parou à frente de Roan. Os sóis que ocupavam os olhos brilharam, representando o pouco encanto que aquela entidade tinha.
— Sendo assim, eu, Yondra, terei certeza de que você poderá cumprir a missão que lhe dou em um ano… e também, torná-lo a pessoa mais poderosa do meu continente, um Invocador Sagrado.