O Invocador Sagrado - Capítulo 34
Não era fácil viver; não era o suficiente ser o mínimo. Era outra noite comum, um caminho tranquilo de volta para casa no alto da noite, onde as baladas troavam e as ruas se enchiam de pessoas buscando curtição.
Essa barulheira toda, no entanto, era silenciosa para o zumbi assalariado que cambaleava pela calçada. Seus olhos de peixe morto piscavam pelo excesso de luz nos postes, mas a insistência o trouxe de volta à porta de casa são e salvo.
Girou a maçaneta devagar e abriu porta lentamente. Estava escuro, exceto por uma televisão ligada no canto com um homem sentado numa poltrona e com uma garrafa de cerveja na mão.
Roan suspirou de alívio, trazia uma leveza saber que aquele pançudo dormia naquela hora. Atravessou a sala bem rápido e deixou a maleta no canto, só para entrar num quartinho rosado com a porta entreaberta.
Aproximou-se de uma cama no canto do quarto e se sentou na ponta. Virou-se um pouco, vendo o rosto meio sonolento de uma garotinha de longo cabelo preto.
— Não consegue dormir, Samira? — perguntou o homem, afagando a cabeça dela.
— Não consigo, irmão.
— É, eu devia imaginar…
Suspirou, coçando os olhos também cansados. Já havia perdido noção das horas, os tique-taques da sala ao lado eram um zumbido irritante para sua mente distante do tempo.
— Quer ir naquele parque de novo?
— Uhum, quero.
A menina tirou as cobertas de cima e se segurou nas costas do irmão. Roan se levantou e segurou as pernas dela para que não caísse, então saiu devagar da casa para não acordar o beberrão na poltrona.
Fechada a porta, andou pela calçada com paciência, porém melancólico como sempre, já que não havia nada no céu para agradar sua irmã. Parou num parquinho ali perto, que estava por conta do horário, e se agachou para a pequena descer.
Samira correu na direção do primeiro balanço que viu e pegou o lugar, jogando as chinelas para o alto. O homem chegou perto e empurrou o balanço para frente.
— Ei, irmão. — A menina levantou a cabeça para o céu. — A mãe ainda é uma estrela no céu?
— Claro que ela é, Samira. — Abriu um sorriso, por mais falso que fosse. — Ela sempre será.
— Então por que ela não aparece mais pra gente?
Roan emudeceu. Como responderia algo tão simples a uma criança como ela? Como poderia repetir a verdade de uma maneira que não fizesse rios de lágrimas escorrerem pelos olhos de sua irmã? Era impossível, um tipo de ilusão imaginar que qualquer mentira funcionaria.
A realidade pendia para o desastre, sempre caia para a desgraça e para o pior resultado possível. O homem respirou fundo, suas palavras fugiram da boca e seu semblante se contorceu diante da tristeza.
Parou os empurrões no balanço e mirou os olhos na menina, uma coisa roeu seu âmago ao encarar aquelas pupilas cheias de esperança. As coisas estavam ruins, mas contanto que ela continuasse com o mesmo brilho, tudo estaria bem, independente do quanto tivesse que se esforçar para isso.
— Porque todas as estrelas um dia precisam ir para outro lugar, Samira, e a mamãe está nesse lugar, entende?
— Entendi… eu também vou pra um lugar assim um dia?
Outra vez um nó na garganta o impediu, seguido por uma força invisível que impedia suas palavras de saírem. Com o máximo de coragem possível, ele ergueu o queixo para o céu.
— Talvez, Samira, talvez. Até lá, vamos dar o nosso melhor para honrar o que a mãe deixou pra gente, tá?
— Tá bom, irmãozão!
Aquele sorriso, isso era o que fazia a realidade dele se mover. Uma pena que tal sorriso estava fadado à escuridão, pois nunca mais o veria de novo.
*****
As costas de Roan pesaram a partir do momento que a deusa terminou de falar, trazendo de volta a sua consciência fria. Ele estava num misto de sensações, tremia de medo, seu coração pulsava de excitação e sua garganta seca o fazia engolir as palavras, a antiga memória o pegou desprevenido e num momento terrível.
Felizmente, não precisou falar nada, a própria Yondra tratou de resolver os problemas. A escuridão se distorceu diante de uma luz que consumiu as sombras e num flash os teleportou para outro lugar.
Era semelhante à realidade ou sonho que havia encontrado Arillumia, um grande mundo cheio de nuvens azuis e com um horizonte sem fim.
Porém o da fênix possuía uma cor alaranjada, enquanto aquele era azulado com um degradê lilás acima, como se estivessem na divisa entre o planeta e o espaço sideral.
Roan engoliu seco ao abaixar a cabeça e ver um planeta idêntico à Terra, com sutis diferenças, tinha apenas dois continentes, um era num formato de serpente e o outro era uma grande faixa branca que tomava conta do hemisfério norte.
Várias cores cobriam o primeiro continente, de um verde vivo até um amarelo opaco. Mais impressionante que isso eram os tornados e redemoinhos gigantescos que giravam no oceano aberto, que naquele instante pareciam minúsculos.
— Uma boa vista, concorda? — indagou a deusa, enquanto flutuava no meio de uma nuvem.
— Si-sim… é bem bonito…
— Pois bem, esta será sua moradia pelo próximo mês.
Um estalo soou ao lado, no instante em que ele virou a cabeça uma grande cúpula de vidro surgiu. Yondra estava bem na porta, usando os sóis para encará-lo.
O invocador andou até lá, ou teve a impressão disso, já que seus pés caminharam por cima do ar e tocaram numa plataforma invisível. Olhar para baixo reforçava o medo, a distância em relação ao planeta causava tonturas fortes.
O problema era o lado de dentro, que destruiu o conceito de “lógica”. Um grande tapete branco se estendia da direita para a esquerda, o teto da cúpula era recheado por várias estrelas, com um buraco negro no centro.
“O chão é oco, consigo escutar até meus passos.”
Roan próximo ao centro da cúpula, mesmo que o senso de “centro” fosse bagunçado pelo fato do horizonte ser uma névoa cinzenta que não aparentava ter fim.
Olhou da direita para a esquerda, a vastidão branca causou dores de cabeça, quase como se estivesse num espaço cujo sentido de espaço não existia. Enquanto isso, o buraco negro acima parecia um prelúdio de que tudo ia desabar.
— Aquilo não devia sugar tudo…? — Apontou para cima.
— Na sua concepção, sim; na minha, jamais.
— Eu não entendi…
— Você consegue ir para a direita e para a esquerda ao mesmo tempo?
Aquilo fez o homem parar por um momento e criou uma ideia anormal em sua ,emte. Ele esticou os braços para os lados e usou força para deixá-lo o mais distante possível, entretanto nada aconteceu.
— Eh… eu acho que não.
Yondra deu uma risada — que mais pareceu o diabo rindo. —, levemente risonha pela presença de um humano tão singular. Ela girou as mãos, o cosmos acima deslizou diante do movimento dos dedos, substituindo a estrela azul por um buraco negro.
— Essa estrela deve servir… uma galáxia aqui, um planeta ali.
Bastava Roan piscar os olhos que pequenos detalhes no teto da cúpula mudavam, um ponto brilhante mudava de cor, um planeta aparecia, uma cometa rasgava o plano preto.
“Pra que serve tudo isso…?”
Depois de alguns momentos de calmaria e troca de posição dos corpos celestes, Yondra se aproximou dele, emanando aquela aura divina. O homem tremeu da cabeça aos pés, quase que de cabelo em pé diante do rosto vazio da deusa e dos bizarros traços, por exemplo a silhueta disforme e da falta de boca.
Ela parou de se mexer e olhou ao redor, como se procurasse o que o incomodava. Então, de repente, tocou na própria face.
— Mil desculpas, esqueci de mudar de forma. Um momento.
Roan tapou o rosto, um forte clarão explodiu do ambiente, uma eletricidade passou pelo seu corpo, semelhante à estar perto de um relâmpago que havia acabado de cair. O lampejo abaixou, por um momento ele só observou um conjunto de penas cinzas caírem do céu. Ao levantar a cabeça, seu queixo caiu.
Havia um tipo de criança voando pouco acima dele, com um longo cabelo escuro e um vestido preto que ia até os joelhos. Ela planou na direção de Roan, batendo as asas até pousar no chão.
— Deve ser muito mais fácil trabalhar com uma face que seja familiar à você.
— Por que… por que você escolheu essa forma?
— Investiguei sua memória e esta foi a forma mais marcante que achei. — Ela olhou para baixo e mexeu os dedos de um lado para o outro. — É sua irmã, não é?
Roan suspirou e acenou. Seu coração pesou, um espinho cutucava a consciência conforme observava o semblante familiar e indistinto da deusa.
Sabia que deveria falar algo, sabia que deveria fazer alguma coisa, porém aquela imagem não era real. Era um sonho distante que escapou de suas mãos, um tipo de ilusão que retornava de tempos em tempos para afligi-lo.
— Yondra, tudo à nossa volta é algum tipo de truque? Eu ainda estou sonhando?
— Para você, talvez seja; para mim, não.
— Não use comparações sem sentido como essa! — vociferou, franzindo as sobrancelha e cerrando os punhos ao ponto de ficarem brancos. — Nada é tão simples e nem parte de um ponto de vista do jeito que você fala!
— Mas é, porque assim desejo que seja. — Inclinou a cabeça para o lado. — Eu sou uma deusa, invocador. Trivialidades como saber se algo é real ou não pouco me interessam, pois sei o que é verdadeiro e o que não é.
Ele levantou a cabeça na direção da garota, uma estrela rodava ao redor da cabeça dela, radiante e avermelhada. Num estalar dedos, a estrela se transformou em poeira cósmica e foi levada para o além, unindo-se a faixa de estrelas no teto.
— Tudo à minha volta é real porque quero que assim seja, e já que é da minha vontade, você ser o meu escolhido será realidade.
O chão branco se deformou numa espiral. Roan saltou para trás e por sorte não caiu no buraco que surgiu no centro, esse buraco se entrelaçou ao cosmos e criou uma lona cósmica semelhante a um cilindro que entregava uma visão panorâmica do espaço.
A deusa rodeou o cilindro e se assentou, puxando o homem pelo ombro para que se sentasse também. Em seguida, apontou para a lona.
— Eu lhe ensinarei tudo o que precisa, eu guiarei a sua mente para descobrir os segredos ocultos entre o divino e o sagrado.
— E por que eu…?
— Porque você me lembra dele.
— Dele? Quem?
— Meu antigo Invocador, Zappion. — Pela primeira vez, um sorriso surgiu no rosto infantil de Yondra. — Ele era ousado, berrava e gritava com qualquer deus, era cabeça dura e tinha dúvidas a respeito de tudo. Você é como ele, porém mais restringido, não tem o ideal de liberdade dele.
A deusa meneou a cabeça de cima a baixo e tocou a lona espacial. Um pedaço foi sugado para a mão e se concentrou no meio da palma, a energia no mesmo instante se alterou de um preto profundo para dourado.
Essa energia cobriu o braço dela e se mexia conforme certos movimentos ordenavam, como girar o pulso ou mexer os dedos. A coisa só parou quando aquele brilho dourado se uniu numa esfera entre os dois.
— Toque, não precisa ter medo.
Roan encostou na superfície da esfera, um choque alastrou tremores pelo seus dedos e viajou para a cabeça, um tipo de corrente estática que apagou sua consciência por um breve momento. Quando retornou ao corpo, sentiu uma dormência no ombro e por todo braço, como se tivesse o membro não existisse mais.
Recuou, temeroso que tivesse o membro arrancado do lugar. A sensação ainda assim era familiar, uma sensação que aconteceu duas vezes desde a chegada naquele mundo.
— O que é isso?
— É o que compõe tudo, a fonte da vida e da realidade… Você pode chamar de Origem. — Agarrou as bordas da esfera, que agiu feito uma massa dura. — É uma grande quantia de mana que se condensa, assim compondo tudo o que existe. Por que não tenta sentir? Ela também está contigo.
— Sentir…? Mas eu não sei como fazer isso…
— Não importa, basta libertar sua mente e permitir que a mana flua livremente. Alguma hora, você sentirá.
O homem considerou questionar mais, entretanto optou por seguir a “intuição” e confiar nas palavras da deusa. Cruzou as pernas, libertando momentaneamente a cabeça e deixando que seus instintos agissem por conta própria.
Escutou os próprios batimentos cardíacos, ouviu o assobio do vento descer pela garganta e sentiu o sangue correr pelas veias. Era quase como se houvesse uma coisa dentro de seu corpo que o fazia agir sozinho, numa sintonia sobrenatural.
Outra sensação estranha era um calor que consumia seu peito, um tipo de eletricidade que pulsava de maneira caótica e que constantemente se expandia para todos os lados.
Esse último detalhe foi o que o atraiu, pois uma pequena área dessa energia se comportava diferentemente dos arredores, era estática e calorosa, oposta à mana que insistia em escapar da ponta de seus dedos.
Roan teve uma impressão estranha, como a de que algo se expandia dentro de si, um tipo de ar que tomava o lugar da mana.
“Cassandra…”
Imediatamente sua concentração foi quebrada. Ele voltou a enxergar, atônito e ofegante — o sentimento que aquela luz dourada trazia desapareceu, soprada para longe.
— Você se desconcentrou — falou a deusa, o cenho franzido já indicava bastante da decepção.
— Isso é normal, não é? É minha primeira vez fazendo isso.
— Exatamente por isso é uma decepção, algo muito impertinente está consumindo sua atenção…
— O que? Não, óbvio que não. — Ele deu de ombros e cruzou as pernas de novo para iniciar outra sessão de concentração. — Só preciso de tempo, em pouco tempo me acostumarei.
A expressão de Yondra ficou amarga, o mero olhado fez Roan ter um leve receio de continuar a conversa. Ela mexeu os dedos no ar, um papel se materializou diante dos dois e pousou bem no colo do homem.
— Isso é…?
— O contrato, quero que releia.
Ele apanhou a folha. Mesmo que soubesse o conteúdo dali, não gostava e nada que sua assinatura estava bem no final da folha, mas arrumou alguma força para reler tudo.
“Por meio deste contrato, a 12° Entidade Primordial Yondra deseja que o sujeito Roan Ferreira seja destinado ao cargo de Invocador Sagrado na terra de Serpentina. As rédeas do destino e do tempo foram reconstruídas para que fosse possível este contrato, assim como um acordo mútuo entre as demais Entidades para futuro arranjo de demais causalidades que venham a ocorrer por meio deste acordo.
Os seguintes objetivos serão impostos para manutenção do contrato:
– O sistema NEO POWER ficará indisponível pelo período desejado da contratante.
– O contratado deverá, no prazo de um mês cósmico, atingir o primeiro grau de Divindade.
– O contratado ficará impossibilitado de retornar à sua realidade enquanto não cumprir as necessidades da Entidade Primordial.
As seguintes recompensas serão aplicadas para cumprimento do mandato:
– Uma nova classe será gerada para o sistema NEO POWER.
– Serão adicionados 800.000 na conta cósmica do contratado.
– O contratado reviverá na realidade e terá seu tempo delimitado por um ano.”
— Eu ainda acho tudo isso rídiculo… — disse Roan, sem saber ao certo se devia temer ou não aquelas condições. — O que é um grau de divindade? O que é essa conta cósmica? O que é uma Entidade Primordial?
— Tudo a seu tempo, mortal, entretanto…
Um breve gesticular alterou a percepção do ambiente, as estrelas no teto se mexeram e a névoa cinzenta no horizonte se espalhou. Os ares ao redor de Yondra pareceram diferentes, assim como a janela flutuante à frente dela.
⌈ ⌉
Bem-vindo ao Banco Cósmico de Artefatos.
⌊ ⌋
— A conta cósmica facilitará um pouco nosso progresso.
Alguns momentos se seguiram numa breve explicação da divindade a respeito daquela tela. Funcionava de maneira semelhante à uma loja virtual, ou pelo menos isso que Roan entendeu, e também ele possuía cerca 200.000 unidades por ter, tecnicamente, concluído o contrato anterior.
Um valor de 200.000 apareceu no canto da interface brilhosa, Yondra apertou repetidas vezes a última opção, ao ponto do valor despencar para 150.000. Vários frascos dourados caíram no piso branco, e ela tratou de enfileirar cada um dos 50.
— Beba. — Ergueu um dos frascos na direção do homem.
Ele apanhou o frasco e tirou a rolha. O líquido dourado ondulava dentro do recipiente, como se fosse um pequeno oceano engarrafado. Respirou fundo e virou a garrafa de uma vez para dentro da garganta.
Suas pupilas arderam, o peito inflou e uma pulsação tomou conta de seu corpo. Os efeitos pararam após alguns segundos, substituídos por uma leve enxaqueca que o obrigava a piscar.
— O que… droga, o que diabos é isso?
— Um pequeno impulso para você dominar a Origem mais rápido. Só me é estranho como ela consegue tão facilmente te rejeitar… — O olho direito de Yondra ganhou uma cor vermelha. — Oh, entendo, então é por isso…
— Isso o que?
— Não importa agora, continue fazendo o que está fazendo. Colocarei um pequeno incentivo, em todo caso…
O contrato foi tomado das mãos de Roan. A deusa abriu um sorriso soturno, quase demoníaco, e deixou o papel a poucos centímetros de uma chama azulada que crepitava nas pontas dos dedos dela.
— Caso não consiga fazer o mínimo, seu contrato será destruído e você retorna à realidade original. Parece um bom incentivo, não?
Roan engoliu seco, seus punhos se cerraram ao ponto de ficarem brancos. Era injusto, chegava a ser estúpido, porém não podia reclamar depois de ter caído na arapuca daquela entidade desgraçada.
Suspirou, e mais uma vez, retornou ao processo de meditação. Ele só podia ter fé de que conseguisse logo o que a deusa esperava…