O Invocador Sagrado - Capítulo 35
Sonhos reviviam o passado sombrio e infeliz de certas pessoas, serviam para nunca se esquecerem de momentos fatídicos que definiram sua vida para sempre. Mesmo assim, o sonho vinha como uma lembrança oculta e nebulosa, de um início distante da realidade atual e cujo reflexo definia a essência ruim das pessoas.
No entanto, estes sonhos se tornaram pesadelos para uma certa mulher, uma que havia perdido muito mais do que conseguia imaginar, e por isso revivia seu passado mais distante e sombrio. Naquela época, uma palavra resumia o que perseguia: sucesso.
Essas letras combinadas formavam um significado que destruía a razão e invocava uma raiva demoníaca, pois representava uma grande mentira que perseguia seu encalço entre os becos da cidade como um fantasma em busca de alguém para assombrar.
Qual era a verdadeira representação do sucesso? Talvez ficar na sacada do apartamento com uma cerveja na mão enquanto curtia a paisagem urbana lotada de pontos brilhantes? Certamente não, com toda certeza jamais seria.
A mulher apertou a garrafa entre os dedos e a bateu contra as barras de ferro da sacada. Estilhaços de vidro voaram pelo chão, alguns cortaram seus dedos e outros despencaram da varanda.
Nada, nem mesmo a dor, conseguia mudar a feição vazia daquele rosto bonito, nem mesmo o sangue das mãos mudavam a cor dos cachos dourados que refletiam a luz da lua.
— Sucesso… engraçado, Cassandra — murmurou, com um sorriso no rosto. — Sucesso só se ganha com uma boa rolagem de dados, como se eu fosse conseguir um bom resultado.
Voltou para dentro do apartamento e pôs os curativos nas feridas. Não doía, só incomodavam com uma ardência maldita, igual à de sentir a luz do sol queimando a pele, o que ela mais odiava.
Soltou um longo suspiro, pegou uma jaqueta estendida em cima de uma cadeira e caminhou para a porta, fechando-a com uma pancada. Olhou para o lado de fora, escuro como gostava, era o melhor horário para sair.
Não demorou para descer todo o prédio e se deparar com a calçada vazia, do jeito que gostava. O relógio batia as horas da madrugada, a lua cheia saltava por entre as nuvens roxas e os poucos caros nas ruas passavam como vultos negros.
Cassandra cerrou os olhos e começou a caminhar sem destino pela cidade, levemente atordoada pelo sono e pela queimação constante entre os dedos. Cambaleou de lá pra cá com um passo bêbado, levada só pela pura vontade de chegar em um determinado lugar para receber um incentivo.
Momentos depois e parou num quiosque em um posto de gasolina. Estava vazio, somente o caixista realizava seu devido trabalho enquanto uma música irritante tocava no fundo. A mulher se aproximou do balcão com uma carteira de cigarro e pagou, antes de sair com passos apressados para o lado de fora.
Respirou fundo, abriu a carteira, puxou uma bituca, ligou um isqueiro e acendeu o cigarro. Uma tragada, era o necessário para aliviar a tensão na mente confusa e caótica de Cassandra, era o que trazia a mínima vontade de sobreviver naquele mundo.
— Como se eu pudesse ter alcançado isso algum dia… — Segurou a risada no fundo da garganta, substituindo-a por uma tosse cheia de fumaça.
Adquirido o incentivo, retornou à passear pela cidade, vez ou outra parando para observar a paisagem urbana com seus prédios descomunais e postes de luz. Coçava as pálpebras vez ou outra, indignada pelo excesso de luminosidade que atacava suas olheiras.
Então, eis que, no meio do caminho, teve que ir por um lado nada agradável de cidade. Logo no primeiro beco, foi encurralada por três sujeitos mal-encarados, dois na frente e um pela sua rota de fuga. Retirou o cigarro da boca e lançou uma baforada para cima, como sempre aqueles problemas adoravam perturbá-la.
— Seguinte, dona — falou um dos meliantes, com uma faca na mão. — Tu passa tudo o que tem, celular e dinheiro, aí a gente deixa em paz.
— Vá pá puta que pariu — respondeu a mulher, jogando a bituca para o chão e pisando, ao mesmo tempo que fazia uma carranca feia. — Tá achando que tá se metendo com quem, hein, arrombado? Tá afim de perder uns dente?
— Xiii, ela pensa que tem moral, Marcelo — disse outro meliante, no caso o que estava em suas costas.
Cassandra suspirou e estalou o pescoço, pronta para a óbvia reação do bandido. Como previsto, o tal Marcelo avançou em sua direção com a lâmina apontada para seu peito, porém sequer viu o soco que afundou seu rosto contra a parede.
Já aproveitando que o primeiro havia sido eliminado, apanhou a faca em pleno ar e disparou no segundo cara à sua frente. Acertou em cheio na coxa, ele se agachou por não conseguir manter a força numa das pernas e gemeu de dor, só para servir de apoio para uma joelhada bem no meio do rosto.
Dois caíram, Cassandra virou para trás com a mesma carranca feia, porém seu coração parou. Era o cano de uma pistola, apontada em sua direção, exatamente na testa. O gatilho estava prestes a ser puxado, porém no último instante, quase que instintivo, a mulher bateu na mão do meliante e redirecionou o disparo.
O estrondo ressoou pelas paredes, Cassandra rangia os dentes e combatia as mãos daquele sujeito, forçando a arma para cima. Uma ardência manchava seu quadril, unida de uma dor lacerante da carne abrindo conforme mexia de um lado para o outro.
Pisou no pé do inimigo, sentiu um crack na sola da bota, porém valeu a pena pelo grito que saiu da boca dele. Ela não perdeu a chance, seguiu com um chute no meio do peito do meliante e apertou o gatilho, um segundo bang ecoou pela escuridão.
— Ah, merda… — Os dedos dela tremeram, a pistola escorregou para o chão ao ver seu erro fatal.
O disparo atingiu o pescoço, matando-o instantaneamente. Cassandra colocou as mãos na ferida, cada instante queimava sua consciência e a adrenalina aos poucos se esvaia para longe. Encarou o corpo estirado contra a parede, os olhos revirados para cima causavam uma pressão sobrenatural sobre seu peito.
No entanto, não existia qualquer remorso no que fez, como se a desculpa de “autodefesa” fosse mais que o suficiente para justificar seu ato. Pouco se importava com a morte daquela pessoa, tudo o que passava pela sua cabeça era aquele maldito ferimento que a obrigava a se apoiar na parede para não cair em choro.
De tantas cicatrizes ganhas, aquela fora a pior, sem sombra de dúvida. Encostou as costas nos tijolos e deslizou até o chão, seus dentes pareciam explodir a cada instante que aquela dor se intensificava. Se não fosse por um barulho, o som de um passo leve entrando no beco, com certeza tudo seria muito pior.
— Meu Deus… o que aconteceu aqui? — falou um sujeito engravatado, ao mesmo tempo que analisava a situação e andava para dentro do beco. — Espera… — Ele virou o rosto na direção de Cassandra, que se debatia no mesmo lugar. — Droga, droga! Ei, você tá acordada?! Eu vou chamar uma ambulância, só aguente um pouco mais!
Depois disso, o mundo virou um plano escuro. A mulher apagou, de longe escutou o som de sirenes somado a ocasionais flashes de luz vermelhas e azuis. A dor ao menos sumiu, ficou longe demais para que pudesse ter qualquer impacto em sua própria sanidade.
Muitas horas depois, Cassandra abriu os olhos. Deparou-se com um teto branco, o sol do lado de fora brilhava demais para seu gosto, as cobertas azuladas de ambos os lados criavam uma sensação claustrofóbica no ambiente hospitalar.
Ergueu o torso, analisou o lugar como todo e imediatamente ficou de cara fechada. Era um hospital, o pior lugar que escolheria estar naquele momento, por mais fosse a melhor localidade para seu caso. Levantou uma parte do roupão, havia pontos no lugar do buraco, misturado com uma pele lilás nos arredores da antiga ferida. Suspirou, deitando-se novamente naquela cama confortável.
“Puta que pariu, aquele fi da puta me trouxe mesmo pra cá… vai ser um saco pagar as contas hospitalares dessa merda.”
— Ah, você acordou? — perguntou uma enfermeira que tirou uma das cortinas do caminho.
— Não, tô dormindo ainda.
— De qualquer forma, há uma pessoa aqui fora te esperando… ele pode entrar?
“Deve ser o mesmo cara. Vou só dar um jeito de me livrar dele logo, quem sabe até desenrolo um jeito dele pagar minhas conta.”
— Manda entrar, vai.
A enfermeira acenou positivamente e chamou um nome, “Roan”, ou assim ela escutou. O sujeito em questão adentrou o espacinho devagar, e Cassandra não pôde deixar de rir perante à aparência degradante e engraçadinha daquele cara.
Era um assalariado de carteirinha, vestido de terno, com uma maleta marrom numa das mãos, meio magro e cabelo lambidinho para trás. Ela ao menos simpatizou com uma única parte de sua aparência, as olheiras, geradas por muito sono privado — uma característica que eles possivelmente tinham em comum.
— Qualé, zé ruela — cumprimentou a mulher, abanando uma das mãos. — Tá fazendo o que aqui? Querendo escutar um agradecimento meu, é?
— Na verdade, não… — Ele sentou numa das cadeiras e pôs a maleta no colo. — Só fiquei meio preocupado quando vi aquela cena.
— Sério? — Sorriu e cerrou os olhos, apenas para reforçar o próprio deboche. — Obrigada, caro cavalheiro.
— De nada… aliás, uns policiais apareceram mais cedo para saber do que aconteceu.
Naquele momento Cassandra emudeceu. Tolerava pagar as próprias contas do hospital e ficar uns dias internada, agora ter que lidar com a própria justiça pelo assassinato de um homem e a chance de cair na prisão era um pesadelo.
Engoliu seco e, abaixando um pouco a face, perguntou: — E-e você falou al-algo pra eles?
— Falei. — Essa sentença martelou o coração como uma estaca.
— Vo-você falou?! O que diabos tu disse!?!
— Ei, relaxa, eu só limpei a barra pra ti… — Dessa vez foi a chance de Roan para lançar um sorriso. — Menti pra eles, de certa forma. Eu contei que você tava se defendendo daqueles dois, e que por acidente, enquanto reagia, um dos assaltantes puxou o gatilho e atirou na própria cabeça. Quanto aos outros dois, nós lidamos com eles juntos. Os policiais acreditaram e foram embora quando terminei.
— Esperai, “nós”? Como assim “nós?”
— Bem… eu contei que você é uma amiga minha e estávamos de passagem, só para dar mais “veracidade” a história, entende? Ainda bem que funcionou, se não estaríamos encrencados…
Aquele foi o último prego no caixão. Como alguém assim existia? Uma pessoa capaz de se meter numa furada só para salvar a pele de um completo desconhecido, que tinha coragem de mentir para uma autoridade só para tirar uma pessoa qualquer de um grande problema e ainda se arriscar em se meter em mais conflitos?
As pupilas dela estufaram, os olhos marejaram por um instante. Toda sua vida até então era resumida à um desperdício, um ciclo vicioso de beber, fumar e cair em situações perigosas muitas vezes. Então, por que uma sujeito daquele tipo, um assalariado qualquer que com certeza poderia ignorá-la e seguir em frente, decidiu fazer uma coisa assim? Era um mistério, um mistério que gerou uma gratidão instantânea.
— Ei, você tá bem? — indagou Roan, estendendo a mão. — Quer que eu chame a enfermeira?
— Eu tô… eu tô sim. — Ela riu de novo, seu coração deu um pequeno pulo. — Teu nome é Roan, né?
— Sim, é. O seu é Cassandra, pelo que a enfermeira me disse.
— Poisé, poisé… ei, tu pode ficar mais um tempo aqui comigo ou… sei lá, vir me visitar enquanto eu tô internada?
— Claro, passarei aqui sempre que puder. — Levantou da cadeira, mas antes de sair, deu uma última olhadela na mulher. — Por sinal, gostei da sua tatuagem nas costas.
E ele foi embora. A mente de Cassandra clicou, o sonho terminou num piscar de olhos, ela estava de volta ao tempo presente e saltou da cama assim que recobrou a consciência. Estava dentro de um quarto empoeirado, deitada numa cama de colchão velho onde o cheiro de mofo infestava o ambiente.
“O mesmo sonho, de novo…”
Levantou-se da cama, dando um tempo para observar a paisagem do lado de fora do estabelecimento. Planícies verdes se estendiam rumo ao horizonte, mescladas às nuvens cinzentas que ameaçavam chuviscar durante a manhã fria.
Nada mudou, continuava presa naquele mundo fantasioso do qual começara a odiar desde o instante que ele partiu. Por mais crível que a realidade atual fosse, não era tão diferente do seu mundo de anos atrás, um mundo cinza com preto.
Uma bota metálica pisou no piso de madeira, Cassandra girou o pescoço na mesma direção, uma armadura prateada a encarava com seus olhos cerúleos brilhantes. A mulher respirou fundo e apoiou as mãos na janela, enquanto jogava a cabeça para o alto.
— Grantia, não me assusta assim.
— Me desculpe, só notei que estava um pouco estranha…
— Faz parte, é normal. — Apertou o nariz e piscou diversas vezes, até esvair um pouco do sono. — Enfim, descobriu algo sobre aquele tal rei morto vivo que tu me falou?
— Encontrei a localização atual dele — respondeu, olhando para ela de cima a baixo — entretanto, não tenho certeza de que seja a escolha mais sábia usá-lo para reviver seu amado. Ele pode retornar como uma outra criatura e, na pior das hipóteses, reviver como um demônio.
— Não me importo, ainda será ele. — Fez uma careta, indignada por ser afrontada justamente pela armadura falante. — E além do mais, realizei mais de um favor pra ti, Roan certamente se sentiria traído caso não seguisse o último pedido dele, correto?
— Correto…
Grantia emudeceu, o que deu espaço para a loirinha relaxar os ombros e agarrar o machado estirado na parede. Colocou-o nas costas, o peso pendia de um lado para o outro, mas não importava o quão pesado fosse, a vontade dela sobressaia qualquer peso, até aquele que afundava seus pensamentos mais profundos.
Saíram da estalagem às pressas, o dono sequer foi notificado da saída. De qualquer modo, nada impediria o desejo de Cassandra, que a fazia se erguer todo dia e seguir em frente, apenas para trazê-lo de volta.
Começaram a caminhar pela estrada de barro rumo ao alvo, o covil de um lich que supostamente era um conhecido de Grantia e um sujeito capaz de reviver os mortos. Uma pena que demorariam bastante tempo para atingirem o destino, se o gigantesco golem de madeiro estivesse com elas, tudo seria mais fácil.
Porém, ele não estava, era um mistério como um gigante desapareceu em pleno céu aberto. Mais tarde Grantia explicou que quando um invocador morre, as invocações também desaparecem após dias, ou seja, ela própria também estaria fadada ao mesmo destino, assim como o gigante golem de madeira que sumiu há dias.
Cassandra vez ou outra duvidava dos modos misteriosos da armadura falante, mesmo sabendo da antiga identidade dela — Vânia, um espírito ancião da natureza. As dúvidas se amontoavam por cima de um véu de desconfiança e obsessão, recaindo sobre as costas da mulher como uma tonelada de aço.
Só que não era hora de questionar, sua mente se concentrava plenamente em uma único objetivo: trazer Roan de volta à vida.