O Invocador Sagrado - Capítulo 36
Roan perdeu a noção do tempo, não fazia a menor ideia há quanto tempo estava naquele ciclo de se concentrar, sentir a Origem e beber um frasco dourado.
Aquele constante desconforto que a energia escondida em seu corpo causava era insistente, e mesmo depois de muito tempo, a única coisa que mudou era a quantia exposta entre a mana.
A vigilância de Yondra mal ajudava, na verdade parecia um tipo de vigia que impunha pressão. Já bastava ser difícil encará-la, mas falhar repetidamente e ainda ter que aturar as feições de desgosto e decepção da divindade terminavam o serviço como um prego maldito.
Outra vez, a concentração foi quebrada. O homem viu de novo o mesmo ambiente branco e o céu espacial, manchado pelas gotas de suor que despencavam por sua testa.
“Merda, de novo…”
— Quantas vezes devo vê-lo falhar, mortal? Estou começando a achar que jamais alcançará o primeiro grau de Divindade…
— É difícil, Yondra. Não é como se eu fosse um gênio ou coisa do tipo… — Tirou a rolha de uma das garrafas douradas. — Sinto que fiz algum progresso…
Virou o líquido garganta abaixo. Era sempre uma sensação desagradavel ter que ingerir a bebida, pelo simples fato de causar uma queimação forte no peito.
Os comentários constantes e os suspiros da deidade também não colaboravam. Ele não ficava irritado por mais que escutasse as falas maldosas, porém se sentia pior conforme insistia em continuar aquele singular treino.
Ao menos, houve algum progresso. A Origem estava mais fácil de sentir, e as impressões de Roan indicavam que existia mais daquela energia desde o início das meditações. Arremessou o 31° frasco para longe e se sentou de joelhos de novo.
— Vou chegar lá, tenho certeza…
Yondra se calou, o que foi uma benção para ele. Respirou devagar, desenrolou a mente pensativa para o vazio, como foi indicado a fazer.
Deparou-se com o ambiente nebuloso da própria memória, cercado pela energia azul descontrolada e por um suave calor amarelo.
Era semelhante a parar no meio do nada e admirar a luz do sol e a brisa do vento, apenas trocando ambos os elementos por uma combinação de energias contraditórias que tentavam tomar algum lugar no corpo do invocador.
Às vezes, um fio de memória o desconcentrava, como um terremoto psiquíco que destruía o castelo de cartas montado nos confins de seu pensamento. Aquele rosto reapareceu, aquele cabelo loiro o chamou atenção e os olhos verdes o absorveram. A concentração foi partida.
— Droga… — Abriu os olhos, só para se deparar com o rosto decepcionado de Yondra novamente.
— Eu me cansei de esperar…
A deusa se levantou do piso branco e ergueu os braços. Um vórtex sombrio se formou no espaço entre as palmas e se esticou ao ponto de virar uma fenda na realidade, craquelada por finas rachaduras cintilantes.
Ela abaixou as mãos e “colocou” o portal no chão. A reação de Roan, como esperado, era de completo espanto — ele pelo menos sabia que não seria um lugar criado pela própria deusa, na verdade parecia que iam para outro já existente.
Receoso, acenou com a cabeça e adentrou na fenda. Um vapor quente atingiu seu rosto, junto de uma ventania calorenta que pareceu torrar suas bochechas, acompanhado de uma gravidade anormal que quase o colocou de joelhos.
O homem engoliu seco quando a escuridão se transformou num ambiente vermelho, com torres chamejantes no fundo e um terreno desregular marcado por montanhas e abismos.
— Por garantia, lhe darei de volta o sistema para que sobreviva aqui — falou Yondra, logo atrás e com uma parte do corpo para fora do portal.
— Esse lugar é literalmente o inferno?!
— Plano Inferior, chame-o assim. — A deusa lançou um raio na direção de Roan.
Ele ficou eletrizado e bastante tonto, seus olhos reviraram de dor, mas ao final teve a impressão de ter “recobrado” alguma coisa. Levantou uma das mãos, e no movimento que sempre fazia, conjurou uma Bala Sombria. A esfera flutuou na palma de sua mão e girou na própria órbita, chegava a ser estranho rever um feitiço tão familiar.
— Atributos!
⌈ ⌉
· Nome ·
Roan
⠀
· Classe ·
Invocador
⠀
· Nível ·
10
༝ Força ༝
10
⠀
༝ Destreza ༝
15
⠀
༝ Guarda ༝
59
⠀
༝ Mágica ༝
39
༝ Vontade ༝
⠀10
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‹ Glifos Equipados ›
⧫ Glifo de Remoção Animal
⧫ Glifo de Magia Negra
⧫ Glifo de Resistência Mental
⧫ Glifo de Discernimento Mágico.
⧫ Glifo de Invocação
⧫ Glifo de Comando
⧫ Glifo de Invocação de Equipamentos
⧫ Glifo de Fusão Invocativa
⌊ ⌋
— Voltou…
— Sim, agora pode parar de ficar com essa sua cara de bichinho confuso? — indagou a deusa, fazendo a clássica expressão de deboche. — Eu chamei um ajudante para que você não morra, então aproveite a estadia nesse plano!
— Es-espera, Yondra!
O portal fechou, Yondra havia desaparecido antes de Roan ter qualquer chance de contra-argumentar. Foi tão repentino que ele ficou em estado de completo choque por uns momentos, até uma explosão de lava o acordar de volta àquela realidade caótica.
Olhou ao redor, latidos, sussurros e barulhos estranhos vinham de todas as direções. Engoliu seco e correu em disparada para sair daquele lugar, até encontrar um pequeno monte, no qual escalou por inteiro e pôde — por um momento assustador. — contemplar a paisagem demoníaca daquele lugar.
O horizonte ficou traçado por planícies negras, vulcões espirravam magma fervente como gêiseres, seres sobrenaturais rondavam as fontes de fogo e pontes decrépitas de ossos que se estendiam pela completa bagunça da região.
O homem tremeu da cabeça aos pés, seu coração acelerou só por imaginar o que acontecia nessa terra devastada coberta por criaturas sem qualquer pingo de bondade. Temeu, do fundo do coração, passar qualquer instante ali, ainda mais sozinho… felizmente a solidão durou pouco para que pudesse enlouquecer.
— Uma boa vista, não é mesmo, senhor Roan? — disse uma voz familiar.
Roan se virou para trás num salto e respirou fundo ao se deparar com o bom e velho comissário, Sebastian, no entanto aquelas roupas eram meio… diferentes.
— Serei seu guia enquanto permanecer aqui. — Ele fez uma reverência cordial. — Por favor, aproveite nosso longo passeio, temos muito o que ver.
Ao invés do tradicional traje de comissário, era agora uma roupa bem… aventuresca, jaquetinha grossa, botas e calça larga. Parecia até que ia se aventurar por lá, levando em consideração a mochila desproporcionalmente grande nas costas dele.
O invocador suspirou e franziu o cenho, obrigado a segurar as pálpebras para conter uma explosão de xingamentos. Uma veia saltou de sua testa, porém a raiva ficou contida, por enquanto.
— Sebastian… o que você faz aqui?
— Eu fui enviado pela deusa para vigiar e guiá-lo no nosso tour no plano inferior. — Ele abaixou levemente a máscara, tirando suor da testa. — Está mesmo bem quente aqui, não é mesmo? Conheço um lugar bem pertinho que é o mais gelado dos planos, lá seria o canto ideal para…
— Sebastian, a saída.
— Perdão?
— A saída, eu quero ir embora desse inferno!
Roan pôde sentir que recebeu um olhar estranho, como se alguém tivesse levantado a sobrancelha para ele, mesmo que não visse o rosto do desconhecido comissário.
Sebastian pigarreou e tirou um grande mapa da lateral da mochila. Desenrolou o pergaminho e passou os dedos na superfície, às vezes mexia a cabeça para o lado em busca de algum detalhe.
Terminada a busca, fechou o mapa.
— Pois bem, já sei o caminho. — Ele ergueu um joinha. — Siga-me.
Roan acenou com a cabeça e caminhou poucos passos atrás do guia. Estranhou bastante o fato de não encontrar nenhuma criatura no trajeto, como aquele demônio que vira há muitos dias em Hirote. A mera memória ainda causava arrepios.
Porém, esse pequeno problema se resolveu ao subirem uma colina afastada. O chão tremeu de leve, o ar pareceu mais pesado e um calafrio tomou conta do homem. Ele olhou em volta, à procura do que seria o desconforto, então ficou paralisado com o que viu.
Era um enorme dragão de escamas chamuscadas que os sobrevoava. A aura imponente e a existência dessa calamidade abalava com qualquer instinto de uma criatura — no caso de Roan, afetou tanto seu senso de “medo” que seu corpo aceitou a morte de braços abertos.
Os orbes carmesins no lugar dos olhos vigiavam o largo perímetro e as asas feitas de ossos rebatiam ondas de calor para o chão numa ventania semelhante à furações.
Felizmente, o dragão não se importou com os que passavam pelo território, apenas voou na direção de um lago de lava e se deitou numa rocha flutuante ao centro do lago. Pousou num castelo dourado nessa ilha, cujo estandarte era uma cabeça draconiana de cor vermelha — o emblema daquele dragão.
O coração de Roan voltou a bombear sangue no momento em que estava livre da presença do monstro. Apoiou a mão no peito, as batidas ressoavam nas suas orelhas e um suor quente despencou aos montes dos braços.
“Eu preciso sair daqui…”
A consciência rebobinou a velha artimanha mágica que aprendeu há tanto tempo. Ele uniu as mãos e permitiu a mana fluir pelos dedos, por algum motivo sentia algo esquisito, como se a energia azul tentasse saltar de si e se acumular num ponto minúsculo entre as mãos.
Na verdade, essa era a primeira vez que Roan notou algo diferente no próprio método de invocação, e pior ainda era sua intuição dizendo que essa coisa sempre estava lá. Separou as palmas, desfazendo o ato de invocação.
— Sebastian, espere um momento — chamou, enquanto encarava os braços.
O comissário interrompeu o passo e deu meia-volta. Alguns passos vieram na direção de Roan, então após uma breve troca de olhares — que de alguma forma acontecia mesmo com a máscara. —, Sebastian ergueu a mão.
— Vejo que está confuso, posso saber o porquê?
— Eu… eu não sei… — Cerrou os punhos, hesitante em cada palavra. — Tem algo de errado aqui, tenho a impressão que estou sentindo mais coisas do que deveria…
— Ah, isso porque sua alma não é corrompida, senhor Roan. — O comissário estalou os dedos. — Você possui mais sensibilidade espiritual do que a maioria dos seres deste plano, o que te faz perceber flutuações e nuances diferentes com mais facilidade.
Pela total falta de lógica de tudo o que aconteceu desde que conheceu Yondra, Roan considerou aquela informação extremamente palpável. Uma pena que não mudava e nada o fato dele reconhecer mais e mais o que o rodeava, principalmente uma bizarra energia que não parava de enjoá-lo por um cheiro sulfuroso.
Ciente desse detalhe, abriu a janela de status e equipou o glifo de Discernimento mágico. Um miasma roxo se estendia em casa fresta do ambiente, de uma cor e textura familiar demais para o gosto do invocador.
“É o mesmo miasma que vi na vila… isso quer dizer…”
Observou o próprio braço. O miasma penetrava na pele e deixava marcas negras que não eram visíveis aos olhos normais, mas que conseguiam se juntar em certos pontos, como um tumor maldito.
O que o chocou, no entanto, era um pequeno detalhe peculiar no miasma. As marcas puxavam uma cor azulada de seu corpo, e essa cor tentava sempre fugir do miasma, só que era em vão, a energia era engolida pelas marcas e desaparecia.
— Sebastian, precisamos apressar essa viagem e…
Ele se calou. Já estava ficando repetitivo a quantia de surpresas que surgiam uma atrás da outra — dessa vez era o antigo comissário. Roan via uma capa branca o envolvê-lo, repelindo o veneno no ar para longe.
— Por que precisamos, senhor Roan? — perguntou Sebastian, enquanto mais uma vez puxava o mapa da mochila. — Talvez tenha uma rota secundária nesse mapa que nos leve a saída, me dê um momento.
— Como você… — Ele apontou o dedo. — Como você está fazendo isso?
— Isso o que, senhor Roan?
— Essa aura, essa magia que não te protege desse inferno.
Sebastian inclinou a cabeça, em dúvida sobre o que queria dizer. De repente, bateu as palmas, o fulgor branco desapareceu e as marcas começaram a se alastrar por ele.
— Refere-se a isto?
— Sim, isso mesmo!
— Desculpe, senhor Roan, mas não posso dizer. — O comissário coçou a cabeça diante da expressão nada agradável do outro. — Ordens da deusa Yondra, mas em todo caso ela me pediu para dar dicas se necessário… a que eu daria para esse mistério é: expulse de dentro para fora, igual mana.
“Igual mana?”
Esse detalhe pegou Roan de jeito. Entendia a parte do “expulsar de dentro para fora”, com certeza se referia a criar uma magia ou habilidade que criasse um véu de dentro de seu corpo para fora, o que impediria o miasma de se espalhar.
O que mexia com a teoria era essa parte: igual mana. Pelo que sabia, mana era uma energia instável e exigia muito espaço, ia para qualquer lado disponível e tomaria o primeiro ambiente que pudesse.
O mistério permaneceu por um breve momento, pois um repentino click estalou na mente de Roan. Era óbvio, sempre fora, apenas ele que não prestava atenção às minuciosas partículas douradas que se sentavam ao lado da mana.
— Sebastian, espere um momento, por favor. — Sentou-se no piso, cruzando as pernas. — Preciso experimentar uma teoria, caso surja um problemão me acorde…
— Temo que chegará em breve — sussurrou, indo até uma rocha e se apoiando nela.
Roan outra vez teve a clássica série de pequenos choques ao se reencontrar com a energia bruta da mana. Nos momentos de concentração, isso sempre ocorria.
No outro lado do espectro estava a Origem, uma pequenina quantia escondida em meio ao caos mágico que ribombava em seu peito. Agarrou com toda sua vontade essa oculta força, puxou-a o máximo que pôde para fora, lembrando-se brevemente do exemplo “prático” de Yondra de horas atrás.
Tocou a força mística, a superfície rígida e ao mesmo tempo elástica comprimiu suas dúvidas a quase nada. Imaginou ela se estendendo, crescendo ao ponto de revesti-lo em um véu cinza.
Antes mesmo de notar, uma janela se apareceu diante de Roan.
⌈ ⌉
Glifo de Aura Protetora adquirido.
⌊ ⌋
E antes mesmo de abrir os olhos, foi atacado por uma série de balanços e uma gritaria nos ouvidos. Roan piscou e se deparou com o rosto duro de uma máscara pintada em azul-turquesa, a de Sebastian.
— Obrigado por acordar, senhor Roan. — Relaxou os ombros, então meneou a cabeça numa direção específica. — Assim como pedido, um problema surgiu.
O invocador estreitou os olhos num grupo nada amigável de seres avermelhados e chifrudos, misturados com anomalias bizarras, tais como homens-porco e aberrações sem forma que se mexiam feito gelatina.
— Creio que o dragão tenha se incomodado com vossa presença — continuou o comissário, tocando o queixo.
— Sendo ele ou não, acho que agora posso cuidar disso…
Roan uniu os dedos, dessa vez não somente a mana fluía pelos dedos, mas também um morno calor dourado que contaminava sua mente. Quatro pilares de luz explodiram do chão, porém…
— Espera, onde estão as invocações…?
— Ca-ham, eu acho que a deusa esqueceu de dizer que invocações de baixo nível imediatamente morrem neste plano… — Sebastian coçou a nuca. — É uma pena, senhor Roan.
— Você só pode tá de brincadeira, né?
O comissário balançou a cabeça negativamente. Roan só pôde encarar aqueles monstros de volta e repudiar a completa malícia que eles livremente expunham.
Era impossível ficar pior, um Invocador sem invocação… isso até um calafrio o pegar de novo. Reconhecia a pressão, reconhecia bastante o tipo de ser que vinha de tamanho poderio.
Era o dragão, aquele mesmo dragão de antes, que esmagou os monstros com seu pouso e decidiu fitar Roan frente a frente.
— Ora, esse cheiro é de um… invocador…
Roan estava condenado, e no âmago ele tinha começado a se arrepender de ter assinado um maldito contrato.