O Invocador Sagrado - Capítulo 37
O bafo quente do dragão certamente podia derreter Roan num piscar de olhos, se assim ele quisesse. Para sua sorte, essa não parecia ser a vontade dele, ou pelo menos a expressão demonstrada naquela face reptiliana não representava uma certa agressividade.
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A deusa Yondra lhe observa.
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“Sério? Agora?!”, pensou o homem, sem saber como quebrar o silêncio.
Era desconcertante encará-lo por tanto tempo, como se esperasse que alguma coisa fosse falada. Roan ao menos sabia que ele havia sido “salvo” por ser um invocador, porém isso deu uma pulga atrás da orelha, uma certa dúvida sobre esse assunto.
— Como… como você sabe que eu sou um invocador?
— Não é óbvio? — A voz do dragão ressoou como um rugido, chacoalhando a terra. — Você é o segundo humano a vir aqui com esse tipo de energia… se me lembro bem, o último era um invocador. Queria tê-lo devorado por não saber me respeitar, até faria o mesmo contigo, contudo você me parece um pouco mais… digno.
“Digno? O que esse bicho tá falando? A energia que ele se referiu deve ser a origem, então não adianta mentir agora. Melhor só tentar jogar de acordo com o que acontece…”
O invocador abriu seu melhor sorriso e abanou as mãos, ao mesmo tempo que dava alguns passinhos para trás. Estava preparado para correr por ter enfim entendido o porquê da postura tão selvagem do dragão.
— É-é isso mesmo, eu só estou procurando um caminho para casa. — Uma gota de suor escorreu pela testa. — Não quero problemas e nem faço ideia do que esteja dizendo, senhor dragão.
— Senhor dragão? — Ele bufou, ar quente escapou pelas narinas. — Não me reconhece, frágil invocador? Eu sou Gondrael, o Rubro. O mestre das chamas, o conquistador dos planos infernais, o supremo espírito dracônico.
“Eu continuo sem fazer ideia de quem você é! Droga, cadê o Sebastian nessa hora pra me ajudar, já que ele era um guia?!”
Roan olhou ao redor, o guia tinha desaparecido de vez. De repente, um peso recaiu sobre o pescoço junto de uma batida no peito, como se algo estivesse preso na sua garganta e balançasse de um lado para o outro.
Estreitou os olhos para baixo, lá estava um relógio dourado que se movia da direita para a esquerda. Sabia exatamente o que era aquilo, e imaginou que estava guardado no seu bolso desde a saída do metrô, porém aparentemente havia se esquecido do objeto e de alguma maneira ele ficou preso no pescoço…
Senhor Roan?
Roan se arrepiou da cabeça aos pés, uma voz tinha falado dentro de sua própria cabeça! Era uma voz familiar, tão familiar que imaginou exatamente quem era.
“Sebastian?”
Sim, sou eu mesmo, assumi essa forma para que criaturas conscientes deste plano não detectassem minha presença.
“Como assim não detectarem sua presença?”
Quero dizer que não eu mesmo não devia estar aqui, apenas fui mandado por conta da ordem da deusa. Meio que se tornou um trabalho menor, se assim pode entender… De qualquer forma, eu só não preciso ser detectado, compreende? Mais tarde lhe explicarei sobre, por enquanto apenas siga as coisas do jeito que estão. O senhor dragão está lhe observando neste momento, a expressão dele não parece boa.
De fato, a expressão do grande lagarto vermelho-escuro não era nada agradável. Roan engoliu seco e o encarou de volta, deixando um silêncio pairar no ar conforme os longos segundos de uma calorosa troca de olhares.
O dragão bufou e cerrou os olhos, junto de uma mexida nos lábios — como diabos será que lagartos mexem os lábios? —, então com suas garras agarrou o pequeno corpo do homem como se fosse um palitinho.
— Você é interessante — disse, pondo-o um pouco acima de sua cabeça.
— Nã-não va-vai me comer, né?
— Não irei, por que diabos eu faria isso? — Um risinho escapou dos dentes da criatura, seu humor tinha acabado de melhorar. — Me interesso por sua habilidade de invocação, e creio que consiga fazer exatamente o que quero.
— E isso seria…? — Levantou as sobrancelhas, agora mais interessado no assunto.
— Uma invocação, oras! — Jogou o homem um pouco para cima, e de alguma forma ele caiu justamente nas escamas de sua cabeça. — Vamos ao meu castelo, será o melhor lugar para conversarmos… talvez sua estadia seja boa, já que a maioria dos seres do plano inferior não teria a mesma cortesia e empatia que eu possuo.
A cabeça de Roan só podia estar louca, ou pior, estava realmente perdida no meio de uma confusão que escalava de uma maneira tão rápida que qualquer sentido lógico desapareceu. Antes de perceber, as asas do dragão bateram, uma forte onda de choque se alastrou por todos os lados e agora os dois estavam em pleno ar.
Agarrou-se nas escamas, o forte atrito quase tirou sua cara do lugar, seguido por gêiseres de lava cujas gotas pegavam de raspão nas roupas e na pele. Quando pousaram no castelo, que por sinal possuia belíssimas muralhas de tijolos negros, a alma de Roan já tinha escapado do corpo e voava para outro plano distante.
Uma pena que o dragão precisava demais dele, então foi inevitável o espírito retornar com um poderoso rugido. O invocador balançou as mãos e a cabeça freneticamente, como se um demônio se apoderasse de seu corpo.
— Maldita súcubo! — Aquele rugido era estridente ao ponto de forçar Roan a tapar as orelhas. — Sugou a energia de todos os meus servos, de novo!
Aquilo atiçou até demais a mente criativa de Roan. Ele sabia muito bem o que a parte !sugou a energia de todos os meus servos” queria dizer, e pior ainda, se houvesse realmente uma súcubo ali, com certeza ele mesmo seria a própria vítima.
— Onde você está, Lithica, sua desgraçada?! — Cada passo do dragão fazia o chão chacoalhar. — Apareça de uma vez, antes que eu rasgue seu corpo em mil pedaços!
— Owwn ~ ♡, não seja tão bruto assim, meu graande amigo… — falou uma vez bem sinuosa e leve dentre as sombras da muralha.
O invocador se segurou para não olhar na mesma direção que Gondrael olhava. Hesitou, trêmulo e ao mesmo tempo com uma curiosidade constante que insistia em batucar sua cabeça inocente. Infelizmente, não resistiu a tentação.
Seu coração pulou, ou melhor, travou no lugar num ritmo acelerado de batidas. Aquele maldito perfume de essências, aquela maldita expressão singular e maliciosa, aquele olhar relampejante cercado por uma lúxuria demoníaca… Ah, era diábolico, o mais pecaminoso corpo visto pela mente humana de Roan.
— E olhe só quem você trouxe… — falou a mulher, gingando de um lado para o outro enquanto caminhava na direção do convidado. — Oh, que fofo, parece um cachorrinho amedrontado, mas eu gosto desses dedos firmes que você tem, garotão.
A súcubo tocou as mãos de Roan, que permanecia desnorteado pelo charme descomunal da demônia. Para sua sorte — e muita sorte mesmo. —, Gondrael os separou com as garras antes que o pior acontecesse.
— Lithica, não o toque. — Soltou uma baforada de fumaça das narinas. — É uma ordem, fique o mais longe possível da minha visita pessoal.
— Por que você é assim, meu grande amiiigo? — Um sorriso largo e repleto de dentes surgiu na face da mulher. — Eu apenas estou cumprimentando, não é, que-ri-do? ~ ♡
Roan esquivou do beijo que a súcubo lançou de sua direção. Voltou aos próprios sentidos mais rápido do que esperava, pois na realidade lembrou de uma certa pessoa que certamente arrancaria seu pescoço fora por uma gracinha daquelas.
O medo de reencontrá-la numa situação semelhante à que havia se metido era um forte combustível para tirar qualquer ideia louca que rodava em sua mente. Esse efeito era tão poderoso que Lithica inclusive estranhou a expressão amedrontada de Roan — ela esperava e muito que seus charmes funcionassem contra um homem frágil.
— Mas por que ele é tão importante, Gondrael? — perguntou, esticando a cabeça para o lado e tentando vê-lo novamente.
— Simples, ele é um invocador, justo o que eu precisava!
— Um invocador, hum? Isso só me deixa mais curiosa sobre que tipos de coisas ele poderia fazer… ~ ♡
O dragão se cansou das brincadeiras infames da súcubo. Deu um peteleco com as garras, a mulher voou para o além e desapareceu de vista mais rápido que a raiva de Gondrael, que desapareceu assim que espantou a inconveniência.
Virou o rosto na direção de Roan e expressou o melhor sorriso possível, uma pena que só o espantou mais do que devia.
— Me acompanhe, meu hóspede. Será melhor conversarmos na sala do trono.
— Cla-claro, sem problema nenhum… — Por garantia, segurou o relógio com força.
Ambos caminharam lado a lado, o que deu ao invocador um breve momento para respirar novamente e colocar os pensamentos no lugar. Os corredores não eram tão chamativos, apenas possuíam uma mistura de preto e vermelho, o que criava uma certa estética interessante ao ambiente, mas que não era suficiente para distraí-lo.
Ao menos, outra coisa chamou a atenção, um assunto bem mais importante que admirar a casa de uma pessoa — monstro, na verdade. — que o sequestrou.
Desculpe a demora, creio que agora possamos conversar normalmente.
“Pelo jeito sim, Sebastian. Então… pode começar a explicar agora?”
Claro, é algo bem simples. Como o senhor percebeu, minha existência é algo bem… incomum. Em primeiro lugar, eu não vivo em nenhum plano, sou uma criação muito livre e bastante volátil.
“Não entendi nada, mas chuto que você quer dizer que não pode se envolver com outras pessoas por ser diferente demais delas…?”
Próximo disso, ainda mais agora. Só estou cumprindo a função de vigia e guia, ou seja, não posso interagir e muito menos sair de perto de ti, senhor Roan. Foram ordens da própria deusa, se eu descumprí-las, morreria instantaneamente.
Roan se encolheu internamente só de pensar um pouco no perigo que Sebastian se encontrava. Morrer num piscar de olhos era algo que faria qualquer um se render a vontade de outro, e pelo visto o guia não tinha outra opção a não ser aquela.
Por sinal, não estou lendo seus pensamentos, caso tenha medo disso futuramente. Caso se concentre, poderá falar comigo telepaticamente enquanto estou nessa forma de relógio. Estarei a disposição a qualquer momento… agora, por favor, se concentre na realidade, você aparenta estar diante de um ponto importante neste instante.
O invocador levou os olhos para frente, deparando-se com uma enorme arco avermelhado e cheio de símbolos. Um estalo mental o fez relembrar de uma coisa extremamente parecida: o portal antes do túmulo do vampiro em Hirote.
Odiava a memória com todas as forças, e cada vez que ela vinha atormentá-lo, uma ardência no pescoço aparecia. Uma pena que era inegável a semelhança — sendo a maior diferença, é óbvio, o tamanho colossal da que estava à sua frente.
Certamente era por conta da largura do companheiro ao lado, cujo pescoço podia facilmente bater no topo se houvesse um mínimo de vontade. Gondrael empurrou as portas, o queixo de Roan caiu em seguida — ele já estava se impressionando demais por um único dia, mas era inevitável.
Aquela sala de trono não era nem de perto o que imaginava como um “salão real para um rei”, mais parecia um cofre de tesouros recheada de todos os tipos de pedras preciosas, moedas douradas e objetos mágicos de outro mundo.
— Fique à vontade, só trate de não tocar em nada. — O dragão seguiu em frente e deitou em cima das pilhas de moedas, usando-a como uma cama. — Agora, falemos sobre negócios. Eu sei como tirá-lo daqui, mas antes preciso que faça algo para mim.
— Eu já estou meio acostumado a escutar esse tipo de coisa, então pode ir direto para o que quer, se quiser — respondeu, sentando-se num tipo de trono real cheio de cristais.
— Oh, muito direto. Gosto disso em você, invocador… — Gondrael apanhou uma coisinha entre a pilha de moedas e arremessou de leve no colo do convidado. — Primeiro, conhece esse objeto?
Roan o pegou, era um cristal esférico que transmitia uma chama forte no centro. Tinha uma cor vermelha forte, que terminava num laranja e por fim branco conforme passava os olhos em direção ao meio. Já havia visto algo daquele tipo, um núcleo.
— Sim, sei o que, já peguei outros com elementos diferentes.
— Então estamos na mesma página… o que quero que faça é encontrar um tipo especial deste núcleo em suas mãos. — Repentinamente, a esfera escapou das mãos do invocador, voando na direção do dono original. — Tem uma região ao norte do meu castelo em que você achará um tipo raro desse cristal, que é acinzentado e cheio de faíscas, esse é o núcleo que procuro.
O dragão estalou as garras, um espelho foi teleportado para frente de Roan. A imagem refletida era de um vulcão que expelia fumaça ao invés de lava, tanta que formava um céu tapado por nuvens pretas.
— É este lugar que você vê, chamado Vulcão das Cicatrizes Esfumaçadas. Lá há uma tribo ao menos amigável, quanto aos demais… só posso torcer para que não chegue perto de nenhum.
— Um momento, isso é bastante informação. — Roan coçou os olhos, as coisas estavam avançando rápido demais e de uma maneira que não estava afim de participar. — Por que eu tenho que ir pra lá? Eu sei que é para achar esse núcleo e se eu achá-lo você vai me levar embora daqui, mas por que você mesmo não vai lá?
— Já ouviu sobre um rei poderoso desaparecer de seu próprio domínio por interesse pessoal, invocador? — perguntou o dragão, enquanto retirava uma porção de moedas com a pata. — Pense no que ocorreria, ou pior, no vexame de ser visto em público resolver um assunto delicado e todos vendo livremente. Vergonhoso, não?
“Eu não sei como ir de A até B e pegar algo seria vergonhoso…”
— Enfim, realize sua missão e eu te darei recompensas a mais caso consiga, darei ainda mais caso faça o que desejo mais tarde… — As pupilas de Gondrael brilharam num vermelho forte, e igual a aparição do espelho, um portal negro apareceu em frente ao invocador. — Vá em segurança.
Roan estava encabulado de continuar lá, então, num jogo de boa-fé, jogou-se para dentro do portal. Sua pele sofreu de uma leve ardência e uma série de luzes invadiram sua visão, felizmente nada de mais acontecer — antes de ter uma chance de reagir direito, notou que estava fora da grandiosa sala de tesouros do dragão.
Bateu os pés contra a terra vermelha e respirou o mais profundamente possível. Ficar longe daquele ser monstruoso com certeza era bom, já que só a presença dele conseguia tirar o ar dos pulmões e substituir arrogância por um respeito absoluto.
— Sebastian, pode falar…?
— Posso sim — disse o relógio —, dessa vez sem ser em sua mente, senhor Roan.
O objeto saltou do pescoço de Roan e se transformou num corpo humanoide, o que logo deu origem ao bom e velho Sebastian com sua roupa de alpinista e máscara amigável de sorriso triste. Ao aparecer, acenou com uma das mãos.
— O senhor se meteu numa grande missão, não é mesmo? Creio que devo registrar isso… — Então tirou uma caderneta e uma caneta dos bolsos apertados.
— Não é hora de piada, o que diabos tá acontecendo comigo nesse lugar?! Não passou nem uma hora e aquele dragão apareceu querendo me comer!
— É a sua natureza, senhor Roan. O senhor é uma alma completamente mortal e limpa no plano inferior, o prato que os demônios adoram. — Ele fechou a caderneta. — Felizmente, o senhor dragão deve ter gostado muito do senhor.
“Gostado, né…? Vou fingir que acredito. O que diabos eu faço ago…”
Roan congelou. Ao seu lado voava uma peculiar janela, do tipo que conhecia há bastante tempo, mas a nunca viu daquela forma.
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Uma missão foi gerada.
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