O Invocador Sagrado - Capítulo 37.5
Desde o desaparecimento da fênix sagrada, o plano superior entrou num tipo de período caótico. Anjos não sabiam quem seguir, criaturas divinas se dividiram por todos os cantos e formaram seus próprios bandos e o “poder” estava em grande desequilíbrio.
Incrivelmente, até os seres mais puros possuíam uma hierarquia, política e desejos. Por mais que suas vontades fossem “boas intenções”, muitas das vezes não se alinhavam com as dos outros, o que gerava esse incomum desbalanço que levou a uma separação.
No entanto, mesmo que a líder do plano superior estivesse longe, existiam aqueles que cuidavam e protegiam com fervor o maior bem existente — os três cavaleiros dos espíritos.
Dentre eles, um se destacava, um celestial de poderio inimaginável e cujas asas eram mais cegantes que relâmpagos, um anjo chamado Nadiel… claro, ele era o maior dentre todos, estava somente abaixo da própria Arillumia, porém isso também gerava, em contrapartida, uma espécie de autoridade do qual era obrigado a lidar.
— Por isso deveríamos agora mesmo ir atrás das bestas divinas! — reclamava uma fadinha nada irritante com sua gutural voz fina.
A irritação de Nadiel só era contida pela sua eterna expressão neutra. Fazia esforço — um esforço colossal, por sinal. — para manter um pingo de paciência, mesmo que odiasse cada segundo que passava dentro daquela sala redonda, sentado na cadeira dura e diante de diferentes celestiais.
A fadinha que terminou de falar a pouco era uma serviçal sua, que sempre tinha garganta de sobra para tagarelar. E claro, não podia ter escolhido um momento melhor para abrir a boca.
— Obrigado por falar, Jitril — respondeu Nadiel, por pura etiqueta. — Já escutei todas as propostas de vocês, então preciso me…
— Com licença, Supremo Nadiel — interrompeu um homem de máscara de ferro. — Ainda temos muito o que conversar.
— Pois conversem entre si, possuo assuntos importantes a serem tratados. — Levantou-se da cadeira, sequer olhando para a pessoa que falou.
Todos na mesa demonstraram reações nada agradáveis. Ninguém foi contra, ou melhor, ninguém ousou impedi-lo, já que levaria a uma morte certa a julgar pelo semblante inalterado do celestial.
— Mil desculpas! — desculpou-se a fadinha Jitril aos demais, antes de seguir o mestre.
Nadiel desapareceu assim que as pesadas portas brancas fecharam. Respirou fundo e cerrou os olhos, extremamente frustrado e raivoso ao ponto de destruir ou matar a primeira coisa que aparecesse na sua frente.
Caminhou pelo corredor de paredes claras, seguido por um pontinho brilhante de vozinha muito insuportável. O pontinho voava de lá pra cá, aproximando-se mais do celestial para enchê-lo de palavras.
— Mestre, é muito precoce da sua parte sair desse jeito sem dá-los uma resposta! Qual será a reação deles mais tarde, hein, hein?!
Ignorou o papo insignificante de Jitril, descendo a escadaria circular que levava ao andar de baixo. Mais e mais conversa era jogada fora, porém Nadiel seguiu para o exterior do prédio e abriu suas asas brancas.
Voou pelas nuvens, ainda perseguido pela maldita fadinha, que o obrigou a pousar em uma, apenas para olhá-la fixamente com o sorriso mais controlado possível.
Jitril revirou os olhos e enfim calou a boca, servindo só de seguidora ao ranzinza Nadiel. Ambos voltaram a sobrevoar o paraíso de nuvens rumo ao sol escaldante no horizonte, viajando por sabe-se-lá quanto tempo num lugar onde o tempo parecia infinito.
O celestial admirou um pouco do cenário à sua volta, seus olhos investigaram o aro colorido do sol e o conjunto de nuvens fofas que planavam pela imensidão daquele céu cuja cor era um eterno degradê de azul para laranja.
— Me pergunto onde está a mestra Arillumia… muito incomum que ela perca um evento desses.
— Possivelmente está escondida, e pior, em perigo! — berrou a fadinha, que queria atenção mais que tudo.
— Não seja ridícula. — Apertou as pálpebras, era absurdo, sem sombra de dúvida. — Nenhuma criatura tem a mínima capacidade de enfrentá-la, nem mesmo os quatro apóstolos de Jigral, em suas formas mais poderosas, seriam capazes.
— Então por que você tem ficado tanto tempo ausente? E se estiver aparecido alguém com o mesmo poder deles?
Nadiel suspirou, a falação da fadinha já fazia questão de moer as últimas centelhas de paciência dele. Farto de ter que aturá-la, decidiu logo resolver as dezenas de dúvidas.
Estalou os dedos, o ambiente piscou de um horizonte alaranjado para um repentino plano escuro, que foi preenchido por diversas cores. Um arco-íris se dobrou acima de ambos, formando uma ponte que carregava pontos luminosos diversos.
Essas esferas voavam na direção de um portão de barras negras, aberto para a entrada de qualquer uma que quisesse passar. Porém, algumas eram expulsas da ponte e caiam em direção a um vácuo escuro, que terminava num poço de chamas violentas.
Essas almas eram sombrias, maculada por espíritos ou levadas ao profano, e por isso recebiam sua devida punição.
— Percebe algo fora do comum, Jitril?
— Tem muitas… muitas almas.
— Sim, por isso eu estou há tanto tempo ausente, tenho que cuidar de Genedra constantemente para que os espíritos impuros não destruam os outros planos…
Uma repentina pressão recaiu sobre tudo. A luz se distorcia perante à uma forte aura que chacoalhou a ponte de arco-íris, e imediatamente Nadiel disparou na direção do tumulto.
Anjos jogavam lanças na alma maligna, porém eram repelidas pela força monstruosa do ser. O celestial pousou no meio do caminho e ordenou os demais para ficarem longe, enquanto seus olhos dourados analisavam a criatura que se esgueirava para fora daquela aura.
Era esguio, suas unhas eram negras e magras, os olhos pareciam buracos negros sem qualquer resquício de vida e um par de presas afiadas saltava para fora dos dentes. A representação de um demônio andava em sua direção, esbanjando um sorriso cínico e maldito.
— Ora, ora, se não é Nadiel… — disse, com a voz mesclada à outras, criando uma dissonância arrepiante. — Como você tem ido? Aparentemente bem, não é? A julgar como está agora… hehe.
— Cale-se, demônio! — O anjo dobrou o espaço e tirou uma espada de uma fenda, então apontou a lâmina dourada na direção da criatura. — Eu serei breve com sua morte, para que não possa…
— Ah, pelo amor, pare de falar asneiras para mim! — O demônio apontou o dedo na direção do anjo, seu rosto virou uma carranca. — Você me dá nojo, seu aproveitador desgraçado! Acha que eu não sei o que fez anos atrás com essa sua ladainha bonita? Pois sei, e sei mais ainda como enganou os meus aliados a seguirem seu plano barato! Mas as coisas agora são diferentes, Nadiel, e se são.
A criatura abriu os braços, as pontas afiadas saltaram para fora e aura vermelha explodiu numa sede de sangue inigualável. Aquela fúria, aquele ódio condensado numa única alma, quem poderia ser? Nadiel o reconheceu, porém se negava a acreditar em quem era, apenas os deuses podiam salvá-lo de tamanho pavor.
— Eu, Gandriel, te matarei de uma vez por todas, seu traidor! — berrou o demônio, correndo sobre a ponte de arco-íris.
Nadiel por pouco se defendeu do ataque das garras, uma onda de choque arremessou todos os outros para longe de seu alcance, inclusive a fadinha Jitril. O anjo canalizou seu poder para a espada, que brilhou numa forte cor dourada e se alastrou para sua armadura.
O sorriso na face do infernal se alargou, e mais uma vez as garras colidiram contra o fio da espada. Ondas de energia ribombavam a realidade, a imagem de duas figuras divinas surgia como representante do intermédio entre a batalha dos dois.
Mesmo que o fio dourado cortasse seu corpo, Gandriel não recuava, seus dedos e raios vermelhos pressionavam seu inimigo em uma catatônica batalha que parecia não ter fim.
Nadiel, por outro lado, sentia que sua força aos poucos parecia sumir, e por mais que tentasse, não parecia ser páreo para aquele demônio. Era frustrante, uma sensação diabólica para fazê-lo enlouquecer.
— GANDRIEL, VOCÊ É O INSETO MAIS REPULSIVO QUE EU JÁ TIVE QUE LIDAR!
Movido por tamanha êxtase, ele concentrou mais uma vez a energia na ponta da lâmina e deixou que fluísse para as alturas, transformando seu braço num farol amarelo que todas as legiões angelicais podiam ver.
No entanto, sua raiva era tamanha que ele lançou o ataque na direção de Gandriel, rompendo um pedaço da realidade num corte limpo. O vampiro desapareceu como poeira ao vento, enquanto o anjo caia de joelhos no chão, exausto por tamanho poder.
— Ah, Nadiel, você ainda tem uma língua bem afiada para falar isso para mim, não é…?
Essa foi a última coisa que o anjo escutou antes de cair nas profundezas da escuridão. Aquele demônio sobreviveu ao ataque? Por que tudo girava à sua volta? Nadiel não sabia dizer, seu corpo parecia ser movido por vontade própria para dentro de um turbilhão, balançava freneticamente de um lado para o outro.
Seu mundo virou um bréu, porém aos poucos sua consciência retornou. O teto era algo vermelho, havia um calor sobrenatural no ambiente que dificultava a respiração, mas o pior de tudo era que as coisas à sua volta eram… grandes demais.
— Ah, a invocação funcionou!
Mal sabia Nadiel como estava prestes a viver o pior pesadelo de sua vida, logo após ter enfrentado uma das pessoas que mais desprezava.