O Invocador Sagrado - Capítulo 41
Por mais que fosse uma saída muito anticlimática, o invocador não reclamou. Aquilo aconteceu da mesma forma como se conheceram, uma explicação breve, um objetivo dado e assim uma partida. Parecia até planejado por parte de Gondrael deixar que as coisas ficassem assim, para quem sabe usar o núcleo cinza para seus próprios propósitos, até talvez o motivo de ter saído depressa era a ansiedade de usá-lo.
Ele encarou a mulher súcubo, que deu um sorrisinho de volta e lançou um beijinho no ar, enquanto seu rabo ganhou a forma de um coraçãozinho. Roan suspirou, o que não faltava no inferno eram mulheres gostosas querendo arrancar o couro dele, coisa que ele menos desejava por conta de traumas de uma adolescência caótica em relacionamentos.
— Senti saudade, gatinho. ~
— Não senti muita — respondeu, cruzando os braços. — Podemos ir logo com isso? Eu tô com pressa.
— Nossa, tão antipático comigo… Vou te dar um desconto dessa vez porque você é um bonitão, tá bom, docinho? — Ela soltou um “Ufufu”, tapando parte da boca. — É bem simples: só precisa atravessar o portão das almas e a sua alma vai retornar ao plano terreno.
— Só isso? Parece um pouco fácil demais pro meu gosto…
— Bom, todos os que tentaram falaram isso. Pena que também falharam junto.
Roan engoliu seco e observou o portal, era um grande paredão de rocha que possuía uma fenda branca no meio. Milhares de almas saiam de lá, como um gêiser que lançava torrentes de vapor para cima. O invocador seguiu na direção do rio de almas fantasmagórico, tornando-se um tipo de rocha larga no meio de um rio, criando uma divisa na água que percorria o caminho na sua naturalidade.
Ele cerrou os punhos, andando em linha reta, mas cada passo ficou mais pesado que o anterior, como se estivesse enfrentando uma forte correnteza que queria devolvê-lo aos confins do submundo. Suas mãos empurraram as almas mais ousadas que interrompiam seu caminho, e quanto mais se aproximava, mais seu corpo vacilava e perdia o equilíbrio.
De repente, sua mente foi entupida por uma tonelada de sussurros, de todas as línguas e tons. A cor verde fantasmagórica do canal de espíritos trocou para um roxo profundo, destacando uma escadaria transparente no caminho que levava a luz.
Num passo de cada vez, Roan subiu os degraus, e cada vez que erguia sua perna um pouco mais alto, o peso da gravidade aumentava sobre seus ombros. Parecia que o mundo queria esmagar sua cabeça, jogá-lo para o mesmo lugar de onde veio, mas aquele desejo sobrenatural ardia tão fortemente que os pés de Roan criavam rachaduras nos tijolos invisíveis conforme chegava mais perto da luz.
Ele parou no topo, de frente para uma porta branca luminosa. Suas mãos a empurraram-na, o calor do inferno desapareceu, agora estava tão frio quanto o vácuo. Roan travou na frente do cosmos que se desenrolaram do outro lado da passagem, com supernovas e buracos negros expandindo o universo numa velocidade assustadora… e, mesmo assim, ele deixou seu corpo flutuar pelo espaço sideral.
A prova suprema da deusa acabou, talvez até levando sua vida junto, mas aquilo era o limite. Era impossível derrotar algo fora de seu controle, da qual desconhecia as fraquezas e formas de combater. As forças naturais do universo permaneciam imbatíveis, tentando destruir o coração de Roan, que em nenhum momento parou de pulsar.
Mas então, entre as estrelas surgiu um pássaro construído de fenômenos cósmicos. Era Yondra, a verdadeira deusa, a única que poderia controlar espaço, tempo e reiniciar qualquer coisa ao seu estado inicial. Ela viu seu invocador enfim atingir o pináculo da escala cosmológica, entender de primeira mão a existência de tudo.
Aquilo a agradou, aquilo era a comprovação que, independente do que esse humano fez em sua vida passada, estava apto para qualquer tarefa titânica que entregasse. Numa partícula de luz voando pelo espaço, tanto Yondra quanto Roan se teletransportaram para a dimensão em que a deusa o ensinou desde o princípio sobre o uso de energia divina, a sala branca infinita.
O homem bateu no chão duro de mármore, o gelo formado por cima de sua pele derreteu e rapidamente seu corpo se redefiniu ao estado natural, ao invés da massa desconfigurada que anteriormente vagava no nada. Ele levantou a cabeça e respirou o ar da vida novamente, tossindo e suando horrores pela testa e costas, num misto de alívio, tensão e confusão. Por que loucuras como aquela ainda aconteciam a sua vida? Pelo visto, era difícil obter um momento normal nessa montanha-russa de loucuras divinas.
Levantou a cabeça, o fundo seco da garganta e o zunido esquisito no ouvido colaboravam para mantê-lo no chão. Seus pés fracos tiveram que tomar energia para lentamente erguer todo o resto, seguido de vacilos por parte dos joelhos e a vontade monstruosa de se largar para trás de peito para cima.
— Ora, ora, quem diria que voltaria… — disse a voz quebrada da deusa, logo a pior coisa que Roan gostaria de ouvir. — Eu sempre tive fé do seu retorno, só chegou muito mais cedo que o previsto…
Yondra ergueu a mão, o relógio preso no pescoço de Roan se partiu e voou na direção dela. O objeto de transmutou na sua verdadeira forma, Sebastian, que não falou e nem se mexeu. A deusa somente o olhou e disse vários “Hum”, “Entendo”, então logo o dispensou para seu próprio plano e atividades, como se não valesse o tempo de sua conversa.
— Agora, vamos a parte principal, invocador. — Sentada no topo de seu trono e demonstrado um sorriso de explosões estelares, Yondra estendeu a mão na direção dele. — Seja meu arauto. Farei você viver para sempre e te darei poderes além da sua compreensão. Você viajará por planetas, espalhará a minha presença e será o meu…
— Foi… curf, cof… foi mal, não vou fazer isso… nem com essa ideia maluca de vida eterna.
Essa resposta paralisou o tempo. Um mortal estava recusando o pedido de um deus, alguém que poderia erradicá-lo com um mero pensamento? Será que o submundo foi tão tortuoso e doloroso que o espírito daquele humano caiu na insanidade? Não, era impossível, até Sebastian que o acompanhou desde o começo confirmara sobre os acontecimentos da aventura. Nenhum evento catastrófico ocorreu, logo, era impossível que fosse pura insanidade… a menos que este homem já era louco em essência.
Yondra sentiu vontade de destruí-lo, mas isso só comprovaria seu ponto. As coisas tomaram um rumo diferente quando começou a analisar o motivo de tal vontade esquisita, em que até uma entidade superior teria seus pedidos ignorados em prol do desejo mundano de alguém. Ela estava curiosa, sua atenção dominada por esse serzinho egoísta e egocêntrico.
— E por que não? Eu posso fazer qualquer coisa que desejar.
— Porque vai levar uma eternidade eu ter um pedido atendido se aceitar. — Roan esticou sua cabeça para cima o mais alto que podia. — E também, eu não preciso de nada dessas coisas. Eu só quero voltar para casa com minha amiga, quem sabe ajudar algumas pessoas no meio do caminho e ter minha vida normal de volta.
— Ora, que idiotice! Poder infinito e domínio sobre todos é mais importante! Imagine, ter o poder de fazer qualquer coisa, derrotar qualquer coisa e ser qualquer coisa!
Yondra pensou que era xeque-mate. Os mortais sempre caiam para o lado mais ganancioso quando citava as inúmeras façanhas possíveis ao se tornar arauto. A expressão de Roan ficou impassível, quase sem reação.
— Justamente por isso que eu não quero. — Ele suspirou, tapas no ombro e nas costas jogaram poeira fora. — Viver para sempre é pior que morrer, conseguir fazer tudo tira a graça de viver e ser qualquer um e deixar as coisas perfeitas é o mesmo que tirar o motivo do qual eu ainda estou aqui.
— Que ousadia… e você ainda esquece do seu estilo de vivência antigo? Diz coisas bonitas, invocador, mas é hipócrita falar assim quando não reflete nada do que falou.
— E eu preciso fazer exatamente o que digo quando uma deusa precisa de mim para resolver quaisquer problemas que tem ao invés de sujar as próprias mãos?
A forma de falar, a atitude… ela o julgou mal. O invocador era igual ao anterior, idêntico em todos os aspectos, ousado contra aqueles acima e ignorante o bastante para se importar mais com seus objetivos que a empatia pelo cosmos. Talvez isso fosse da natureza dos mortais, sobressair aos outros e sobreviver contra o perigo do mundo.
Seja lá o que fosse, isso foi mais que o bastante para Yondra sentir que deveria ao menos recompensar esse homem… Não, deveria fazer a mesma coisa que fez com o anterior, observá-lo e analisar o motivo detrás de suas ações. Ele foi mais educado que Zapion, o primeiro invocador divino, mas não mudavam no jeito e forma de agir. Num estalo de dedos, os dois se moveram para as nuvens do mundo de Serpetina.
Lá de cima, Roan enxergou os oceanos e terras infinitas, faixas verdes inteiras eram consumidas por uma mancha escura. Ele ficou chocado com a vista, quase sem palavras por enfim ter a vista do local em que se acostumou a usar seus poderes.
— Se é assim, eu lhe darei sua recompensa — disse a deusa, tomando a forma de uma criança de vestido preto —, mas haverá um porém: você só terá um ano. Assim que esse ano terminar, sua alma retornará para mim e parará nos planos espirituais.
— Entendi. — Mordeu a língua, segurando para não xingar a deusa por ter limitado tanto seu tempo. — Se eu morrer de novo acho que também acontecerá o mesmo.
— Sim. É uma única chance. Use-a bem.
Outro estalo, o corpo de Roan despencou em direção ao planeta numa velocidade absurda. Um poderoso relâmpago cruzando os céus em pleno dia era o sinal de seu retorno, a alma buscou o corpo enterrado na areia e uma mão saiu do túmulo, limpando a areia da boca e nos olhos.
O invocador estava lá, com as roupas esfarrapadas e com cheiro de sal na pele. O sol tocava na nuca, quente como sempre foi, enquanto seus dedos tremeram pelo seu retorno doloroso. Ele sorriu e arrumou o cabelo, enfim uma recompensa satisfatória para estar ali.
Na verdade, também estava desesperado por dentro. Ele enfrentou um deus com a pachorra de um adolescente revoltado e passou pelo inferno. Tinha algo mais “sombrio” que isso? Edgy, como os garotos falavam, se bem lembrava.
De algum jeito, esse tipo de atitude funcionou. Não iria ocorrer uma segunda vez, mas aquele era o jeito que encontrou para sair das obrigações que a deusa quis enfiar na sua goela. Felizmente, já passou, a liberdade aparecia no horizonte e seu tempo era de um ano.
365d, 23:59:19
23:59:16
23:59:13
O cronômetro na frente de Roan ligou seu cérebro de novo. Precisava se mexer e resolver logo suas questões, ou seja, encontrar Cassandra e voltar logo para casa. Ele faria o que pudesse no meio-tempo que a procurasse, só queria se apressar para não morrer de novo.
Ele lembrou da habilidade dada pelo dragão e tentou utilizá-la. Não sabia direito o que fazer, então releu a descrição do glifo e olhou para o nada, imaginando um portal se abrir. Nada aconteceu, para a decepção do invocador, precisou fazer uma força enviando energia mágica para um espaço vazio.
A realidade se despedaçou diante de seus olhos, craquelando um portal vermelho. De lá, Nat saiu, como se tivesse sido puxado para fora da zona. Ele tinha algumas cartas de baralho na mão, por algum diabo de motivo.
— Espera, você pode fazer isso? — A bolota branca inclinou a cabeça para o lado.
— Também, mas eu ia te trazer comigo de um jeito ou de outro. — Roan colocou as mãos na cintura e contemplou o horizonte antes de seguir caminho pela praia. — Vamos andando, vou te ajudar a ficar mais forte para conseguir voltar pro seu lugar, em troca você me protege e luta comigo até atingir o seu antigo nível. Pode ser?
— Hah… que escolha eu tenho? Se eu te mato, volto do mesmo jeito, não tem saída mesmo que eu quisesse.
Com um sorriso, o invocador guardou as mãos no bolso e os dois desapareceram ao longe no caminho. O objetivo? Inúmeros. A lista de afazeres de Roan era grande, ele estava visualizando um longo e doloroso ano à sua frente.