O Invocador Sagrado - Capítulo 42
Os mortais acreditaram que o apocalipse estava chegando. A grandiosa árvore de Vânia, o pilar do país, despencou em chamas e fumaça, os mortos se ergueram do túmulo, faixas inteiras de terra foram dominadas por musgo roxo e cada vez mais humanos e elfos eram afastados do centro de sua nação, isolados para vilas distantes.
Os nobres de alta classe possuíam suas devidas proteções em mansões, com paladinos e os cavaleiros da mais alta elite para protegê-los… mas e os plebeus? Os pobres, aqueles que compunham grande parte da sociedade, não tinham tanta sorte e muito menos chance de sobreviver, limitados a achar formas progressivamente mais práticas e brutais de se manterem vivos.
A vila de Zênite representava bem isso. Posicionada em cima de um colina, onde quando o sol alcançava seu pico, aros de arco-íris surgiam na fonte central da vila. Aquele ponto turístico, no entanto, já era inútil por causa da situação em que se encontravam.
Ao longo dos dias que sucederam as notícias de necromantes aterrorizando a floresta de Vânia, os residentes montaram armadilhas e construíram uma grande muralha de madeira ao redor, além de negarem a entrada de todo forasteiro que passasse por perto, nem que fosse por meios mais violentos.
Um cavaleiro protegia a vila, o último que sobrou após inúmeras investidas de zumbis, esqueletos e bandidos contra a vila. Ele todo dia rondava os muros de madeira, conferia as muretas e planejava quanto tempo tinha para fazer uma patrulha fora das muralhas.
A maioria dos homens morreram, o cavaleiro deu sorte de ainda poder se mexer e ter todos os membros funcionando normalmente. Os outros, no entanto, não tinham a mesma sorte, sendo assim era o único encarregado de realizar essas tarefas diárias.
Naquele dia as coisas estavam fora do lugar. A faixa de musgo roxo havia passado por parte da floresta, seguindo em linha reta entre as árvores e estava muito próxima do riacho que separava o terreno da vila. A preocupação em seu semblante era justificável, mas ele julgou não estarem em perigo ainda — uma de suas piores escolhas da qual se arrependeria mais tarde.
Por não saber do futuro, o cavaleiro seguiu sua rotina como de costume, retornando assim às fortificações de madeira, em que descansaria sentado numa cadeira debaixo da sombra com os pés sobre um caixote de madeira cheio de lanças e espadas inutilizáveis.
Seu nome não era importante, jamais teve algum feito que desse motivo para alguém lembrá-lo, nunca salvou uma garota de bandoleiros e nem ganhou de uma pessoa num duelo de espadas. Sinceramente, sua presença era completamente irrelevante para a vila se não fosse pelo fato dele ser o último homem saudável.
Coçou a barba rala e pegou um cigarro de palha, usando uma pequena faísca mágica para acendê-lo. Baforou aros de fumaça no ar, afundando-se em parte na sua própria miséria e pensamentos, pensamentos estes que não precisavam de destaque por serem triviais demais para serem destacados por qualquer coisa.
Na realidade, nem mesmo sua vida precisava ser ressaltada, pois nela sequer havia algo de interessante; ele só nasceu numa família camponesa, cresceu, casou, levou um chute na bunda por trair e entrou num grupo de cavaleiros para proteger a mesma vila em que nasceu. Era quase o clichê de figurante nascido no interior, se não tivesse a última parte, com certeza seria mais um deles.
De qualquer forma, ele ser padrão, ou pior, medíocre, era a razão pela qual a desgraça atacaria Zênite. Após o meio-dia, o musgo roxo além do rio avançou mais um pouco, encostando na água e contaminando-a. Ninguém sabia disso, só descobriram depois de dois dias, quando as crianças começaram a apresentar sintomas estranhos. Uns tinham febre alta, outros vomitavam substâncias roxas da boca e os piores demonstravam linhas escuras no lugar das veias.
Para todos era tarde demais. Possivelmente a maioria consumiu aquela água mais cedo, e independente do que fizessem, contrairiam os mesmos sintomas em breve. O cavaleiro tomou seu mesmo assento na muralha de madeira naquele dia, crente de que morreria dolorosa e amargamente, o pior tipo de morte que esperava ter. Àquela altura, suicídio era uma opção melhor do que esperar e se tornar um morto-vivo como os outros.
Mensageiros de outras vilas avisaram sobre a tal doença que o musgo roxo transmitia ao ser consumido, nomearam-na de Praga da Noite, pois sempre na calada da noite que a pessoa se transformava num monstro horrível como consequência da enfermidade. O homem soltou um sorriso, pensando com certa felicidade que não seria tão ruim morrer sozinho.
Do topo do muro, ele avistou uma pessoa se aproximar da vila, um homem de roupas esfarrapadas, magro, rosto seco, de cabelo lambido para trás e com um cajado ornamentado nas mãos. Parecia um mendigo, na pior das hipóteses era só um doente que usava um pedaço de pau enfeitado para andar por aí e atrair a atenção das demais pessoas como forma de conseguir esmola.
Ele também morreria como todos os outros, não havia nada de especial em se esperar dessa pessoa… no entanto, seus olhos mudavam um pouco essa perspectiva. As íris eram claras e cerúleas, extremamente bonitas para qualquer galã meia-boca de bar. No entanto, para o guarda, eram nada mais que um detalhe inútil, uma beleza que desapareceria logo logo.
— Alto! — levantou o tom, batendo a lança no chão, como o protocolo dizia. Queria ignorá-lo, aquela altura de nada adiantava a existência de normas. — Quem é você, de onde veio e o que procura fazer aqui?
— Eu me chamo Roan. — O mendigo apoiou o cajado no ombro, sua constituição magra o tornava pequeno daquela distância. — Estou só de passagem, tentando achar minha amiga que desapareceu há uns dias.
“De passagem? Quem diabos estaria de passagem nesses tempos?” Ele ergueu a sobrancelha, processando para entender o que se passava na cabeça do homem. — Espere aí, eu sairei para falar com você.
Roan apenas acenou com a cabeça. O cavaleiro desceu as escadarias laterais e saiu por uma porta lateral, que levava para o lado de fora. Era mais fácil usar isso que abrir o portão, menos trabalho e menos risco de alguém invadir as instalações da vila.
Os olhos do guerreiro mal-humorado caíram no seu colega mendigo, percebendo enfim uma coisa nova, no caso uma bola de pelos branco que ficava em seu ombro. Ele tinha duas asinhas e olhinhos pequenos, junto e garrinhas em cada patinha. O homem mal-humorado apontou para a coisinha com sua lança.
— Que coisa é essa? Seu animal de estimação?
— Algo assim, eu acho… O que você acha, Nat?
— Sou seu mestre e você é meu lacaio, isso sim! — respondeu a criatura, para o choque do cavaleiro.
“Uma criatura falante?!? Merda, é pior que um mendigo, é um invocador de demônios!” O guerreiro ficou numa posição de combate, seus olhos cravados no homem estranho. — Nã-não saia do lugar, se não eu revido! Fique longe, seu maldito!
Roan inclinou a cabeça em sincronia com Nataniel. Os dois não entendiam o porquê dessa reação inesperada, como os bons desinformados que eram. O motivo era simples: a culpa do musgo roxo e dos mortos-vivos rondarem a floresta era supostamente por causa de pessoas como Roan, sujeitos mal intencionados que invocaram com suas próprias mãos seres de outro mundo, usufruindo de artes malignas para atingir isso.
O cavaleiro não sabia que estava errado em pensar assim, mas quem julgaria seu medo imediato de encontrar uma pessoa assim no apocalipse? “E se por acaso esse tal Roan tivesse poderes que jogassem minha alma no inferno?”, esse pensamento cruzou sua mente conforme dava passos para trás lentamente. O invocador não se mexeu, no entanto uma coisa incomodou sua cabeça, era algo que ele via sempre no inferno, um miasma que corria pelo ambiente e focava especialmente no cavaleiro.
— Nat, vê o que vejo? — perguntou o homem, apontando seu cajado na direção do guerreiro.
— Quer dizer a energia ao redor dele? Vejo. Ele está sob efeito de uma maldição… não, pior que isso, todo esse lugar caiu na influência dessa coisa.
— Entendi. Não sinto tanto efeito, então deve ser porque aqui é melhor que o inferno, eu acho. Ainda bem que saímos de lá…
“Eles saíram do inferno?!? Quer dizer que eles são… são demônios!”
Um gatilho passou pela mente do cavaleiro, sua voz ia gritar para chamar a atenção de qualquer um que estivesse dentro, mas era tarde demais. Ele foi pego por uma investida de Roan, preso por correntes douradas que o mantiveram no chão.
A bola branca saiu do ombro dele, voando numa direção contrária à que estavam, enquanto o invocador seguiu na direção do guarda. Aqueles olhos cerúleos agora pareciam um abismo assustador, um par sem vida procurando a alma no fundo de seu peito. A realidade era diferente, mas nada impediria a mente de um homem em desespero.
— E-ei, nós po-po-podemos negociar, não é-é? — Ele soltou um sorriso trêmulo. — Po-podemos trocar alguma coisa de va-valor que você po-possa se interessar, certo?
— Sem ofender, mas você acabou de virar uma galinha? — Roan suspirou, aquele desespero não podia ser mais óbvio. — Não importa, só fique quieto por um tempo. Eu descobri como usar esse meu poder para algumas coisas durante a minha viagem com meu amigo ali, por favor tenha paciência enquanto faço tudo certinho.
E assim, o cavaleiro morreu de medo. “Usar meu poder”, isso significava ser amaldiçoado e jogado agora no inferno. Mesmo sem entender metade do que aqueles dois disseram, o mero fato de que Roan citou essa possibilidade de que possuía uma capacidade sobrenatural para fazer algo era assustador. Pela primeira vez em décadas, o cavaleiro rezou para qualquer deus ouvir suas preces e não permitir que tamanha atrocidade acontecesse.
Roan apontou seu cajado na direção dele, uma energia dourada se acumulou na ponta e tocou no peito do guerreiro. Ele sentiu algo quente perfurar sua pele, era como o calor do sol num dia de verão. Estava longe de lembrar o inferno, mas ele tinha certeza que isso logo chegaria. Demorou alguns segundos, assim que o homem terminou sabe-se-lá o que, as correntes soltaram o guarda. No final das contas, não aconteceu nada demais.
— Pronto, resolvido. Eu só purifiquei a maldição que estava em você — disse com a maior naturalidade do mundo, dando de ombros. — Não sei o que tá acontecendo por aqui, mas para até você conseguir isso, quer dizer que ocorreu uma merda bem grande. Hah, desculpa se te assustei, só fica o aviso que não somos maus, tudo bem?
Assim, Roan deu as costas e caminhou na direção em que Nat se dirigiu, deixando para trás um atordoado cavaleiro que procurava processar o que houve. Maldição purificada, um invocador de demônios que não era mal… Podia ser mentira! Era isso que queria acreditar, mas a sensação de leveza deixada pela magia e o bem-estar construído em seu corpo dizia o completo oposto.
Minutos depois, ambas as figuras retornaram, dessa vez sujos de sangue podre, farelos brancos e vísceras. A mera aparência indicava uma luta contra os mortos-vivos, e sabe-se-lá como voltaram vivos ainda por cima. O cavaleiro estava um pouco mais confiante e crente na palavra dos dois, mesmo com diversas pulgas atrás da orelha, e por isso procurou refúgio atrás da muralha de madeira ao invés de ficar em céu aberto de frente para eles.
— Esperem um pouco! — ordenou, levantando o braço para o alto. — Me digam quem são verdadeiramente! Só assim eu terei alguma confiança em vocês.
— Eu já disse, sou Roan, um cara que tá em busca da minha amiga, e esse é uma invocação minha.
— Minhas suspeitas estavam certas… você é um invocador. — Agora ele estava relutante, mas ainda curioso para tirar mais informações. — Vocês são maus ou bons? Digam!
— Também já te respondi isso, eu sou bom. Se eu não fosse, pra começo de conversa, não teria te curado. — Ele se apoiou no cajado, soltando um suspiro diante de tanta descrença.
— Certo, vou querer uma prova de que você realmente cura as pessoas! Eu enviarei uma pessoa muito doente, se conseguir curar ela, eu abrirei os portões para você.
Roan concordou, então o cavaleiro trouxe o senhor mais idoso, corajoso e no pior estado da doença dentro da vila. Ele estava andando com duas muletas, uma das pernas se arrastava pelo chão e só um de seus olhos enxergava direito.
Veias e manchas escuras se espalhavam por todo seu corpo, reduzindo cada vez mais qualquer chance de sobrevivência. O senhor se ofereceu como um sacrifício para a vila, tanto por ser o mais velho quanto por estar nesse estágio tão avançado.
Os residentes da casa se aglomeraram nas muralhas para observar o tal homem estranho, que se dizia “bom” mesmo com seus poderes demoníacos. Eles não esperavam nenhuma bondade, na verdade o velho rabugento que morria diante de seus olhos serviria como um a menos para se alimentar, isso até Roan levantar seu item mágico e sintetizar a energia divina para o corpo do idoso.
Ele meticulosamente dissipou a maldição, e de uma hora para a outra suas marcas sumiram e a própria perna ruim voltou a se mexer. Ironicamente, aquele velho senhor pareceu ter rejuvenescido num piscar de olhos. Prova maior não havia, e foi assim que aceitaram Roan dentro dos portões de Zênite.