O Invocador Sagrado - Capítulo 9
— E depois? — perguntou Ravi, balançando as mãos de ansiedade.
— E então eu disparei uma Bala Sombria e matei o bicho, bem no último instante.
— Uau! — Os olhos dele haviam se tornado lâmpadas brilhantes.
Roan riu, mal acreditava que suas mentiras entravam na mente de seus amigos tão facilmente. Mesmo que os paladinos olhassem-no com desaprovação, mentir era a melhor escolha no momento.
Após salvarem Cassandra no poço, ele narrou os acontecimentos desde a luta contra os cultistas até a batalha contra o demongorgon, porém omitiu detalhes e mentiu bastante para tornar a história verídica.
Sobre a vila, disse que alguns encapuzados os emboscaram e que teve que lutar contra um demônio, nada além disso.
— Só que ‘cê ainda tem umas coisinhas pra explicar — pontuou a loira e olhou-o nos olhos. — Primeiro, da onde diabos tu tirou esse poder de invocar? Você nunca me disse isso!
— É, realmente… — disse Lezandra, ao lado deles. — Fale a verdade de uma vez, é impossível você ter aprendido de uma pedra no caminho de volta pra casa.
— Ehhh… — Encurralado, ele olhou ao redor e percebeu a atenção travada em si. — É meio complicado, sabe? Só aconteceu.
— Só aconteceu? — A elfa cruzou os braços, extremamente cética. — Engraçado, então você descobriu o covil porque “só aconteceu”.
— Ei, ei, esconder essas coisas não é legal, sabia? — Cassandra agarrou o ombro dele, com um olhar afiado direcionado a seu rosto.
O olhar incriminador e as altíssimas suspeitas das mulheres o deixaram sem chão. Por um lado, era impossível de explicar à Lezandra, já que não poderia simplesmente falar “É porque eu vim de outro mundo e estou num jogo”.
Por outro, conversar com a amiga seria mais fácil, se levasse em conta que ambos vieram do mesmo lugar e viviam quase as mesmas situações. Para resumir, jogaria o motivo e a culpa no sistema.
Felizmente, não houve um interrogatório, pois Ravi interveio dizendo: — Ali está o assentamento!
O grupo se voltou para frente e apressaram um pouco o passo. O questionamento de mais cedo foi esquecido, para a sorte de Roan.
“Ravi, obrigado. Eu juro que vou te pagar o máximo de comida possível quando puder…”, pensou, enquanto agradecia aos céus por salvá-lo daquela enrascada.
Aproximaram-se do assentamento, as pessoas estavam muito calmas e a atmosfera continuava confortável e leve.
Roan percebeu alguns guardas relaxarem os ombros e suspirarem ao vê-los. Os aventureiros e camponeses também estavam muito tranquilos, sequer notaram os seis chegarem naquele lugar.
— Por favor, descansem por agora — falou Lezandra. — Vou procurar alguns materiais e um mensageiro. Esperem até eu retornar.
Os três acenaram com a cabeça, enquanto Lezandra, Políto e Vatares se misturaram à multidão de camponeses e aventureiros.
— Enfim aquela mulher foi embora! — resmungou Cassandra, que imediatamente se virou para os amigos. — Vamos procurar a dona Benia. Quero saber se a bichinha tá bem!
— Ah! É mesmo! — Roan bateu no próprio rosto, tendo esquecido da pobre velha.
Com o passo apressado, procuraram uma velha entre as tendas armadas pelo assentamento.
No caminho, perceberam um novo mural negro instalado muito mais coberto de pedidos que o anterior, cheio de papéis cravados por adagas.
Não demorou muito para se depararem com uma mulher baixinha que curtia couro numa bancada de madeira.
Usava um capuz sobre a cbeça e trabalhava com afinco, tão concentrada que decidiram não interrompê-la. Assim que terminou, Roan chegou perto e cutucou o ombro dela.
— Dona Benia?
Porém, quando a mulher se virou, ele tomou um grande susto. Era uma pessoa completamente diferente, uma garota muito jovem e mais musculosa que Cassandra.
Um véu cinzento cobria o rosto, sendo possível apenas para discernir a cor dos olhos esverdeados e notar o cabelo curto encaracolado.
O homem recuou na hora, seu olhar confuso e desconfortável fez a dama esconder a face e se afastar.
— Ué, a dona era tão novinha assim? — comentou Cassandra, agarrando os ombros da garota para encará-la nos olhos.
A menina evitava encará-la de volta, balançava a cabeça da direita para a esquerda, mas a insistência da loira foi mais que suficiente para captar cada detalhe.
— Maithe! — chamou uma senhora de dentro da cabana, que logo revelou ser dona Benia. — Ah, são vocês! O casal e o rapazinho herói… oh, onde estão meus modos? Essa é minha neta Maithe. — A velha indicou a garota com a cabeça.
— He-herói?! — falou Maithe, enquanto tapava o próprio rosto avermelhado.
A situação era muito esquisita. Nos dias passados dentro da alfaiataria, jamais tinham visto a menina, era o primeiro contato deles.
O olhar envergonhado da garota não era direcionado ao invocador ou à barbara, somente a Ravi, que estava muito confuso e totalmente alheio à situação.
Benia os convidou para dentro da tenda, e logo o trio entrou na quente e aconchegante tenda de teto alto.
Porém, ali dentro que era a alfaiataria, com uma lona que cobria metade da tenda e várias cadeiras espalhadas.
Roan viu uma montanha de peles e couro deixada no canto, algumas das quais lembrava de ter curtido e apanhado durante as caçadas na Floresta de Marfim. Assentou-se numa cadeira, seus amigos logo fizeram o mesmo.
Dona Benia primeiro realizou uma longa reverência a Ravi e afagou a cabeça dos outros dois.
— Então, queridos… querem contar algo pra essa velhinha aqui? Estou morta de curiosidade pra saber o que aconteceu lá!
— Ei, dona, a senhora é fofoqueira, é? — Cassandra, como sempre, dizia a primeira coisa que viesse a sua língua.
— Cass, menos, por favor — interveio Roan, pronto para falar.
Ele contou sobre o que ocorreu, sem esquecer de mentir para tornar a história verídica e o mais distante possível de “demônios” e fanáticos religiosos.
Era idêntica à primeira versão contada na travessia para o assentamento, apenas com detalhes a menos.
A expressão curiosa da velha era a melhor, certamente falaria para suas amigas e conhecidos, no caso, dona Neide e o açougueiro Henato.
No final, dona Benia creu em tudo o que foi dito. Ela ainda por cima ofereceu um ensopado muito delicioso.
— Que sorte a de vocês… Aliás, muito impressionante e inteligente você usar o momento oportuno para atacar, Roan! — A velha bateu palmas.
— Ah, não foi nada… só aproveitei. — Deu de ombros, expondo um pequeno sorriso. No mesmo instante, ele relembrou da cena estranha de antes. — Por sinal, dona, por que a sua neta usa um véu e está toda vestida? Ela tem algo contra a luz do sol?
— Contra a luz do sol?! — Benia elevou as mãos para cima, aquelas palavras foram tratadas quase como calúnia. — Claro que não, homem! É só que minha netinha ainda não se casou… e ela precisa logo arranjar um marido. Por isso, cobrimos o rosto das garotas para que os homens só as vejam depois de as aceitar por dentro.
— Ohhh… esperto… é uma tradição da família da senhora?
— Não só da minha, mas de todo o país! Como vocês parecem estrangeiros, não me impressiona que não saibam disso…
— Ah, claro, claro! Que bobo da minha parte! — O homem deu uma batidinha no próprio crânio.
Após aquele feliz reencontro, despediram-se. Ravi, que vinha mais atrás, frequentemente olhava para suas costas, sempre se encontrava com olhar de Maithe.
Um arrepio subiu até sua espinha. Apressou o passo para fugir dos olhos daquela garota, ao ponto de empurrar seus amigos para irem mais rápido.
Exaustos e extremamente entediados, fixaram-se no bazar do Chifre do Boi, o nome do mesmo estabelecimento no qual atiraram um anão pela janela.
— Sério, eu tô com muito sono… — disse a loira, com as mãos apoiadas ao queixo. — Ei, Roan, vamos fazer o que agora?
— Não sei… — Ele cruzou os braços e passou os olhos pelas pessoas do bazar. — Eu também tô muito cansado, queria dar um cochilo.
— Sei… — Encarou-o com uma certa curiosidade, queria muito saber sobre o poder de invocação, mas a preguiça falou mais alto.
— Eu tenho algo que vai fazer as horas passarem num piscar de olhos! — exclamou Ravi, tirando dos bolsos da roupa um baralho amarelado. — É aquele jogo que vocês tinham esquecido. Decidi pegá-lo na última hora.
O rapaz embaralhou as cartas com rapidez, as espalhou em três montes diferentes na mesa e sacou 4 cartas de cada monte para os colegas na mesa.
— Ah é, como funciona esse jogo? — Cassandra se inclinou para frente. — Lembro de só ter jogado as cartas com maior número no topo para ter sempre os bichos mais fortes na mesa.
— Bem, não é tão diferente do a senho… do que você disse. — Recobrou a compostura e deu de ombros, quase que um tiro teria saído pela culatra. — Só entendi como funcionava depois de assistir umas partidas aqui no bazar durante a madrugada.
“O nome do jogo é Glossário Aprofundado. As regras são as seguintes:
- Todo jogador começa com 4 cartas para jogar.
- Uma vez por rodada, ele pode tirar uma carta de um dos montes na mesa.
- Há dois tipos de carta: monstro e feitiço. Os monstros que demonstram dois ícones de sol podem ser jogados imediatamente, enquanto os de feitiços são representados por símbolos de lua e só podem ser usados uma vez por rodada.
- Se um jogador possuir uma carta com o símbolo de sol e lua, ele pode sacrificar uma criatura e um feitiço para trazer essa carta ao campo.
- O objetivo do jogo é causar o máximo de dano possível em um espaço de dez rodadas.”
— Quero jogar! — A loira finalmente recuperou sua animação. — Finalmente algo interessante para fazer…
Roan acenou com a cabeça e apanhou suas cartas, assim como os outros fizeram.
Ravi iniciou a partida com um feitiço chamado “Enterro do Tolo”, que aumentava o ataque de monstros do tipo morto-vivo em 1. Então, ele terminou o turno jogando dois Guerreiros Zumbi em campo, ambos ficaram com 2 de ataque.
Cassandra foi a próxima. Pôs na mesa dois monstros chamados “Esporos”, bolinhas felpudas brilhantes de grandes olhinhos arredondados e garrinhas nas mãos, ambas com 1 de ataque.
Na vez do invocador, lançou um feitiço chamado “Pendante Branco”, o efeito da carta era de anular um ataque sofrido por qualquer criatura. Por fim, trouxe um Mago do Clima para mesa, um relógio de cartola e varinha mágica.
— Ravi, nunca te perguntamos isso, mas como você parou naquela vila? — perguntou ao encerrar o turno.
— Enquanto eu voltava para casa de ônibus, subiu um sujeito esquisito de terno. — Ele puxou uma carta do monte. — Em dado momento, fiquei sozinho no ônibus, minha parada era a última. Esse cara veio até mim e me disse que o ônibus precisava fazer uma parada para “reparos”.
Jogou outra carta no campo, uma abóbora gigante com um olho no centro e de vários tentáculos. A abóbora tinha uma boca de dentes pontudos esculpida e possuía uma coroa na cabeça.
— Ele me ofereceu para esperar em outro lugar, só precisava assinar um contrato. — Ravi usou os zumbis e a abóbora para atacar Cassandra, ambos Esporos defenderam o ataque dos zumbis e o último passou pela defesa. — Li o contrato e aceitei, não tinha nada demais. O ônibus seguiu mais um pouco em linha reta e quando desci parei aqui.
— Então por que você tava passando fome e com as roupas todas esfarrapadas quando te vimos? — questionou Roan, enquanto comprava uma carta.
— Eu tô aqui há pouco mais de duas semanas…
— Duas semanas?! — Os dois gritaram em uníssono e só abaixaram as vozes depois do bartender fazer sinal de silêncio.
— Isso, duas semanas. Mal tinha dinheiro e nem sabia o que fazer, então deu nisso.
— Ó garçom! — A loira levantou uma das mãos. — Traz um rango pra esse moleque!
— Pra já, senhorita! — O bartender cozinhou às pressas por trás do balcão com um sorriso no rosto.
Em seu turno, a mulher usou o feitiço “Mudança de Lado”, o efeito era de trazer uma carta do campo de outro adversário ao seu, mas só funcionaria em um monstro e quando saísse do campo a criatura voltava ao possessor original.
Ela pegou a abóbora gigante e terminou seu turno atacando Roan. Um ataque foi bloqueado pelo Mago do Clima, o outro anulado pelo Pendante Branco e o último o acertou.
— Foi aí que eu descobri esse sistema e percebi que ninguém além de mim poderia ver as janelas. — completou o rapaz, observando a deliciosa comida chegar à mesa. — Felizmente, encontrei vocês.
— Que dureza… — Cassandra deu tapinhas nas costas do garoto.
A partida prosseguiu entre mais cartas jogadas, um ótimo guisado de frango para o almoço e conversas monótonas no bazar. Perto da partida terminar, uma janela apareceu em frente à Ravi.
O Glifo de Prestidigitação evoluiu.
Rank F → Rank
Ele fez um movimento rápido de arrastar o dedo no ar para fazer a tela desaparecer. Por sorte, ninguém havia visto a janela, estavam concentrados demais em ganhar.
Um bardo tocava notas melancólicas em seu alaúde, outros grupos de aventureiros se reuniram pelas mesas do bazar para tomarem cervejas antes de viajarem.
Roan os analisava, cheio de curiosidade por aquele modo de vida, que consistia em inúmeras pessoas de características diferentes em um ambiente tão único.
Criava uma expectativa, uma vontade de procurar mais a respeito e de explorar o mundo com os próprios pés. Seus devaneios só foram interrompidos pela chegada inesperada de Lezandra no recinto, que prontamente tocou o ombro dele.
— Teriam um minuto? Gostaria de falar com vocês três.
— Po-pode sim, o que você quer? — respondeu Roan, recuperando-se do susto.
Ela pigarreou, mostrou um envelope nas mãos e disse: — Não encontrei nenhum mensageiro e Pólito não conseguiria entregar a carta a tempo. Bom… minha única opção foi recorrer ao seu grupinho.
— Opa, uma missão! — indagou Cassandra e pegou o envelope. — Pra quem temos que entregar? Tem pagamento pra isso? A gente vai ser reconhecido?!
— Por favor, se acalme um pouco. — A elfa balançou a mão em negação. — Me escutem primeiro, e digam se aceitam ou não depois.
O pedido era para entregar a carta à basílica de Cililiana em segurança o mais cedo possível.
Pólito ofereceria o transporte ideal para chegarem o mais próximo possível à basílica, mas não poderia acompanhá-los dado ao terreno do lugar que a basílica se localizava.
Por conta disso, a mensagem seria mandada por meio deles. Explicou também que a viagem seria longa, pelo menos duas semanas de viagem, mesmo com o transporte.
O máximo oferecido para a viagem era 20 liros de prata, mais que o suficiente para duas semanas, além da própria basílica os recompensar após a missão ser cumprida.
— Já aceitei, não quero saber. — A loira se levantou da mesa.
— Espere, eu ainda devo alertar dos peri…
— Ah, deixa disso, nós lidamos com isso facinho — interrompeu e mudou o olhar para seus dois amigos. — Não vamos?
— Eu tenho escolha de recusar? — O invocador, a pessoa mais sensata da mesa, estreitou os olhos.
— Óbvio que não! — Ela apontou para Ravi. — E você virá conosco!
— Por que recusar mais comida? — O menino deu de ombros, erguendo-se da cadeira.
Roan, numa posição desfavorável de dois contra um, aceitou com um suspiro. Acompanharam a elfa e atravessaram a pouca mata das planícies, de longe viram o poço em que Cassandra havia caído, e lá estava Vatares e Pólito.
Ao se aproximarem, o anão perguntou: — Já aceitaram? Que rápido…
— Pelo visto, sim. — comentou a elfa, que olhava de um lado para o outro. — O seu… “super transporte” está aqui em baixo? Queria saber como nunca foram roubados.
— Ora, segredo de anão! Mas vamos logo com isso, quanto antes formos, melhor.
— Perai, foi tu que abriu esse buraco? — perguntou Cassandra.
— Sim, e vocês vão se impressionar ainda mais quando verem! — O homenzinho soltou uma corda para o fundo do poço e seu assistente a amarrou em uma pedra.
— Que a santa dama alada os abençoe e os proteja em sua viagem. — Lezandra abanou a mão e se afastou do poço.
Assim que todos desceram e puseram os pés na placa de metal fria, Pólito puxou uma alavanca na fresta da placa.
Engrenagens giraram, a plataforma desceu lentamente para dentro de uma sala cheia de botões e alavancas, além de um parabrisa tapado por terra.
Na parte de cima, tinham vários mapas e engenhocas metálicas distribuídas, alinhadas umas com as outras.
O único detalhe especial era o retrovisor, que além de não ter motivo algum para estar lá, tinha um cordão de pássaro amarrado ao redor.
— Sejam bem-vindos a minha locomotiva! — falou o anão, apertando um botão e fazendo toda a estrutura tremer. — Ou como gosto de chamar, o meu mini-trem!
— Tomara que tenha um lugar pra dormir… — comentou Cassandra, fazendo esforço para manter os olhos abertos.
O grupo inteiro riu, e realmente havia um cantinho para dormir. Uma longa viagem sempre exigia um longo descanso.