O Legado de Giliard - Capítulo 2
Durante o tempo em que a multidão se dispersava, um antigo amigo foi em direção a Yasmin, encontrando-a, o leal servo falou:
— Senhora Yasmin, lamento profundamente a perda do seu marido. Nunca vou poder esquecer o que ele fez por mim, minha alma estará por toda eternidade em dívida com a bondade do seu marido. Porém, temo que não tenhamos muito tempo para conversar agora. Por favor, siga-me.
Ele, sem esperar por uma resposta, virou-se e se misturou entre a multidão que ainda estava saindo.
Ela levantou-se, limpando o choro do rosto de Norman.
Durante todo o caminho, não falou nada, lançando apenas algumas pequenas olhadas ocasionais para trás para verificar se a Senhora Yasmin e o jovem Norman estavam conseguindo acompanhá-lo.
Ele começou a acelerar o passo à medida que se afastava da multidão. Virando algumas ruas aqui e ali, finalmente, chegaram a uma viela direcionada à área comercial da capital. Ao passarem por várias lojas, entraram em uma que, comparada às demais, parecia uma pequena mesquita.
Norman, em uma situação comum, teria ficado animado por poder passear pela área comercial, já que as ruas eram decoradas e o aroma de comida boa sempre faziam o seu estômago roncar. Porém, ele não estava com ânimo para isso naquele momento e mal percebeu seu entorno.
Quando, por fim, pararam de caminhar e ficaram diante de uma lojinha, seu coração começou a acelerar, uma estranha sensação de familiaridade vinda daquele lugar. Ele viu o homem de confiança do seu pai entrando e logo atrás dele, sua mãe o seguindo.
Dentro da loja, havia vários livros empoeirados e outros ainda parecendo bastante novos dentro de uma caixa, perto de uma moça que limpava as estantes.
O garoto lembrou que esta era a pequena lojinha para a qual seu pai o levou quando tinha apenas quatro anos para adquirir seus primeiros livros. Assim que esse pensamento veio à mente, sentiu os seus olhos, ainda vermelhos de chorar, voltarem a lacrimejar. Embora a dor em seu peito estivesse ardente e latejante, ele apenas fungou e seguiu a sua mãe, pegando sua mão.
O antigo amigo de Giliard abriu uma porta no fundo da lojinha, ali parecia ser onde ficava o estoque de livros da loja.
Ele puxou uma corda perto da porta e acendeu uma luz amarelada que vinha de um cristal amarelo. O homem, sem demora, começou a mover várias caixas para o lado dando vista, agora, para um pequeno alçapão no chão. Ele o abriu, revelando dois lances de escada. Outra porta à frente foi aberta pelo homem.
Ligando as luzes, finalmente, deu-se a falar:
— Senhora Yasmin, peço que me desculpe por me manter em silêncio até agora sem lhe explicar nada. O homem fez uma pequena reverência em sinal de desculpa.
— Senhor Heitor, tenho em grande consideração por sua ajuda. Você sempre foi o braço direito do meu marido e um grande amigo da família.
Um sorriso amargo apareceu no rosto de Heitor ao lembrar-se do velho amigo.
Ele virou-se e começou a mexer em uma caixa, como se quisesse pegar algo, quando, na verdade, estava tentando esconder as lágrimas que insistiam em escapar de seus olhos. Ele as limpou, virou-se e voltou com um colar nas mãos.
O colar era um pequeno tesouro feito por ourives habilidosos, com uma pedra violeta de brilho intenso, era uma peça incrível. Aproximando-se de Norman, abaixou-se e colocou o colar no pescoço do jovem. No tempo em que o fazia, partiu a falar:
— Este colar incrível pertencia ao seu pai. É o tesouro da família Vitoiesk, passado de pai para filho quando se tornam adultos.
Norman agradeceu fazendo uma reverência ao homem à frente, sentindo o peso das palavras dele.
Heitor já havia se levantado e começou a limpar algumas cadeiras para que a Senhora Yasmin e o jovem pudessem se sentar. Feito isso, ele se pôs novamente a falar:
— Sem mais delongas, vou começar a explicar o que será de nós daqui pra frente e o que faremos. Embora a execução sistemática de familiares como parte de uma condenação formal não seja uma prática comum, houve casos ao longo da história do Império de Elenea em que familiares de prisioneiros foram punidos com a morte de maneira arbitrária.
— Não me surpreenderia se isso de fato acontecer. — Heitor com frequência entrelaçava os dedos debaixo da mesa. Elas estavam trêmulas como nunca antes.
— A capital está uma verdadeira bagunça, com tantas pessoas migrando para ela. O povo, mesmo com a execução, ainda tem sede de sangue. A corte imperial, poderia muito bem fazer essa jogada para acalmar os ânimos dos cidadãos.
— Na verdade, eles vão fazer isso, porque é o que eu faria no lugar deles. Vocês estão com sede? — Heitor falou a última parte para poder abaixar um pouco da tensão na sala, que era quase palpável.
Yasmin foi a primeira a quebrar o silêncio: — Entendo. A situação é realmente muito crítica. Por favor, chá — ela disse, forçando um sorriso pela tentativa do homem de amenizar o clima.
Norman, logo em seguida: — Pra mim só um pouco de leite quente, por favor. — Ele não estava realmente com sede ou fome, mas sabia que logo sentiria, já que não havia comido desde a execução de seu pai naquela manhã.
O porão é dividido em quatro partes, semelhante a uma casa, só que abaixo da terra. O garoto tinha observado a direção para a qual o homem tinha partido e, como toda criança em lugar novo, sentiu a vontade de explorar o local. Mas suas pernas insistiam em não se mexer.
Porém, quando Heitor voltou com as bebidas e com alguns biscoitinhos de laranja, biscoitos amanteigados, cookies e biscoitos salgados, colocaram sua fome, até então escondida, em xeque. Revelando-se com um pequeno ronco de sua barriga. Norman colocou suas mãozinhas sobre a barriga, ficando semelhante a um pimentão.
Heitor fingiu que não notou para não constranger ainda mais o jovem, mas colocou a bandeja cheia de guloseimas bem na frente dele, servindo-as antes de voltar a se assentar
Ele prosseguiu na sua fala enquanto os dois comiam:
— Se estamos aqui vivos, devemos isso ao meu amigo. Graças à sua rede de informação e às informações fornecidas por ela, pudemos nos preparar para uma fuga antes do ataque ao Senhor Gilliard. — Ele estava prestes a continuar, mas notou uma pequena mãozinha levantada.
Norman estava comendo e ouvindo ao mesmo tempo, quando começou a pensar sobre algo que notou, algo estranho na fala de Heitor: “Como podemos ter conseguido nos preparar a tempo para uma fuga, mas ainda assim o papai foi pego? Por que só a mim e a mamãe conseguimos escapar?” Logo Norman tratou de externalizar os seus pensamentos.
Heitor e Yasmin ficaram surpresos, pois o garoto havia feito perguntas concisas e bastante pragmáticas. O homem, enquanto enxugava as mãos suadas em suas coxas, respondeu:
— Na verdade, tínhamos essa informação há alguns meses atrás e poderíamos ter fugido antes. No entanto, seu pai decidiu o contrário.
Essa resposta havia surpreendido o menino tanto que sua mente, normalmente sempre cheia de pensamentos, só conseguia formular uma única pergunta: “Por quê?” O garoto era costumeiramente elogiado por sua postura e semblante calmo, porém ele não pôde deixar de ficar estupefato.
Heitor, como se não tivesse notado nada, continuou:
— Os movimentos de Giliard estavam sendo constantemente vigiados, então fazer grandes movimentações era impossível. Além disso, havia outro motivo para que ele não ousasse fugir: ele estava ciente dos planos da corte imperial, mas a corte imperial não sabia que ele havia descoberto os seus planos. Se ele fugisse, seu inimigo notaria que seu plano havia sido descoberto, levando-o a agir mais rapidamente. Ao não o fazer, ele nos deu essa oportunidade, tempo para levar a família para longe e preparar uma fuga.
Norman estava mortalmente pálido com aquelas palavras. Todos dentro daquela sala, mesmo sem falar uma palavra, estavam pensando na mesma coisa: “Meu marido/Meu pai/Meu amigo se sacrificou para salvar a sua família.”
Norman olhou para sua mãe, que parecia desolada, à beira de desabar em lágrimas com um simples empurrão emocional.
Para Yasmin, finalmente tudo fazia sentido. Ela começou a recordar: “Cerca de uma semana atrás, Giliard me mandou para casa de minha irmã, que fica fora da capital, somente acompanhada de duas servas e o Norman.”
Heitor, como se estivesse lendo o pensamento de Yasmin, falou:
— Isso mesmo, mandá-la para casa de sua irmã fazia parte do plano de Giliard, coincidindo perfeitamente com o dia em que as fronteiras do Império de Elenea foram atacadas pelos povos bárbaros. A capital não teve escolhas senão enviar tropas para a fronteira, com as tropas restantes servindo apenas para proteção da capital. Não havia como realizar um ataque à Senhora durante a viagem.
Heitor completou, pensando interiormente: “Os planos daquele homem são sempre assustadoramente perfeitos. A situação na frente de batalha ainda continua a mesma, então, desde que sejamos discretos, poderemos sair da capital.”
Norman questionou o homem:
— Se já estávamos salvos, por que tivemos que voltar para a capital?
A pergunta fez o queixo de Heitor por pouco cair na mesa. Ele quase podia ver a imagem de Giliard no garoto. Não era apenas o semblante calmo que pareciam, mas até mesmo a personalidade curiosa e questionadora. Ajeitando a postura para responder, disse:
— Isso se deve porque, agora que seu pai morreu, não há mais vigilância, ou pelo menos houve um afrouxamento, segundo os pensamentos de Giliard. Seu pai não queria que vocês fugissem apenas para morrer na miséria e na fome. Ele não confiava plenamente em Amélia, irmã de sua mãe; ele pensava que, no momento em que fosse colocada uma recompensa por suas cabeças, ela os trairia.
Yasmin retrucou:
— Ou seja, meu marido deve ter guardado algum fundo antes de ser confiscado, para que pudéssemos sobreviver. Pelo que vejo, ele não fez isso antes, pois mover uma grande quantidade de dinheiro iria acabar levantando suspeitas e novamente acelerando os planos do inimigo. Fazer isso aos poucos levaria tempo.
Heitor assentiu com a cabeça e disse:
— Como esperado da Senhora Yasmin, foi muito precisa em suas palavras.
O homem levantou-se, tirou um relógio de bolso e, ao conferir as horas, notou que já passava das dez da noite. Percebeu que uma longa e exaustiva jornada havia transcorrido desde a execução naquela manhã. Despediu-se, desejando-lhes uma boa noite e prometendo visitá-los no dia seguinte à tarde.
Norman e Yasmin estavam absolutamente cansados, mesmo com os corações e mentes pesarosos, os seus corpos exigiam descanso.
Os dois foram dormir na única cama presente, enquanto Heitor saía da casa e olhava para o céu estrelado, pensando no que o futuro reservava para aquela família.
Norman passou a noite toda sobre os peitos de Yasmin; ela o abraçou fortemente, como se temesse que algo mais pudesse ser tirado dela.