O Monarca do Céu - Capítulo 327
Me entenda.
Na sala de reunião de Ayla, ao invés de haver uma grande mesa de madeira entre elas, a rainha preferiu colocar sua cadeira de frente para a Santa, numa conversa cara a cara. Havia somente uma pequena mesa de centro entre elas, onde repousava uma chaleira e duas xícaras.
Apesar de frente para a outra, nenhuma das duas sabia o que dizer.
Brighid havia sido totalmente desarmada até chegar naquela sala. Parte de seus amigos que não via há meses estava bem, assim como seus preciosos filhos.
Ayla se sentia tão intimidada quanto culpada. Ela não queria que Brighid pensasse que ela estava roubando seu lugar, muito menos criar uma relação de inimizade entre elas.
Foi então que o silêncio foi quebrado.
— Quantos meses? — indagou Brighid enchendo ambas as xícaras de chá.
— Seis… eles têm ficado bem agitados ultimamente.
A fada tomou o chá e entregou a outra xícara nas mãos de Ayla. — São gêmeos?
Ela assentiu. — Um menino e uma menina… dois de uma vez para uma primeira vez… você teve três, né? Como foi?
— Foi complicado. Quando estavam perto de nascer, eles não ficavam quietos. Ficava enjoada boa parte do tempo, mas você se acostuma.
— Você… sente saudade da gravidez? Digo, você já teve três, é um bom número de filhos, mas… pensa em ter mais no futuro?
Brighid bebeu do chá novamente.
Ela nunca havia pensado nessa possibilidade.
— Não sei… se fosse depender do Colin acho que teria um filho por ano.
Ayla deu um sorriso genuíno, mas logo seu sorriso se desfez.
— Sinto muito… acabei me casando com um homem já casado, e eu sabia o que estava fazendo. — Ela desviou o olhar. — No início, tratei tudo como um casamento político. Quando conheci Colin, ele havia tomado posse de um ducado… era um homem que estava atrás de poder para encontrar a esposa. Pensei “claro, você me usa para alcançar a posição que deseja e eu uso você como o meu cãozinho particular”.
Ayla pegou-se pensando em como seus sentimentos haviam mudado tanto.
— Então a gente foi para uma missão junto no território hostil, e vi algo a mais nele… não sei como chamar isso, mas senti que não podia deixá-lo escapar. Meu pai me criou como guerreira e como sucessora ao trono… nunca fui para bailes e sempre recusei a maioria dos pedidos de casamento que recebi, mas com Colin abaixei a guarda…
Ela bebeu do chá novamente, olhando no fundo dos olhos de Brighid.
— Ultan havia deixado um vácuo de poder enorme, com um extenso território pronto para ser dominado. Guerra começou a acontecer em todo canto, guerra por território, e como eu poderia me casar com um homem mais fraco que eu? Alguém que não aparenta nem mesmo ser um homem? Mas Colin era diferente, ele era alto, forte, magnético… havia tomado um ducado para si em uma única noite, e eu havia ouvido histórias sobre ele. Era um homem brutal, mas também benevolente, era o homem perfeito.
Brighid continuava a ouvir sem sequer piscar.
— Eu não podia deixá-lo escapar, era a chance perfeita para minha dinastia se estabelecer e perdurar por mil anos. Se eu tivesse os filhos de um homem forte, então eles seriam fortes também, tão viris e pungentes quanto o pai. Seriam conquistadores, reis e rainhas, príncipes e princesas com poder para conquistar o mundo… mas eu não penso mais assim, tudo que quero agora é deixar as coisas em ordem para a próxima geração crescer em paz.
A fada tomou o seu chá novamente, enchendo a xícara mais uma vez.
— O que a fez mudar de pensamento? Você parecia ter uma ideia bem consolidada sobre o que você queria…
Ayla também tomou o chá.
— Acho que foi quando engravidei… temi por meus filhos. Esse continente sempre esteve em guerra, e dezenas de pessoas morrem todos os dias nesse caos. A única maneira de garantir que meus filhos não fossem vítimas seria tendo tudo sob controle, mas isso não é o mais importante.
A rainha inclinou o corpo, tocando uma das mãos de Brighid. — Sei que ainda me vê como estranha, talvez como uma inimiga, mas preciso da sua ajuda… Colin está em uma missão há quase dois meses e há muitas coisas para fazer sozinha, além da gravidez que tudo…
Brighid desviou o olhar.
— Olha, Ayla, dá pra ver que se esforçou aqui, e ver todos aqueles rostos me deixou muito feliz, de verdade, mas… você está grávida, esperando filhos do meu marido, e isso ainda me machuca. Suas intenções são nobres, mas ainda não consigo levar isso de maneira natural… desculpe…
A rainha engoliu em seco. Falhar em convencê-la significaria que tudo estava prestes a ruir. Como uma estrategista competente, ela sabia que Colin era tão dependente de Brighid quanto ela mesma era de Colin.
— Brighid, por favor… só escuta o que tenho a dizer, depois disso você toma sua decisão e eu vou respeitá-la, seja ela qual for.
Brighid suspirou. — Tá…
Ayla afastou-se.
— Você conhece Alexander, não é? Ele é o nosso maior inimigo, os outros são apenas seus fantoches. Eu consegui um acordo com o Norte para eles entregarem suas terras para Runyra, e logo Yonolondor atacará de Rontes. Preciso que você fique aqui comigo, me ajude a governar, a planejar, seja a minha parceira e eu serei a sua.
Segurando as mãos dela com carinho, Ayla se aproximou.
— Sei que isso parece estranho, talvez até absurdo, mas somos casadas com o mesmo homem, nossas almas estão ligadas à dele, e isso nos torna próximas… prometo pela minha vida que protegerei os nossos filhos, e nunca vou me colocar entre você e Colin. Sei que você veio antes, e eu respeito o seu lugar, então, por favor, me aceite como sua amiga, como sua irmã.
Ayla baixou o olhar.
— Estou cansada… amo o Colin, mas não sei se ele me ama… não como ama você… ele partiu nessa missão perigosa e me deixou aqui sozinha cuidando dos filhos dele mesmo sabendo que estou grávida… sei que pode parecer egoísmo, mas eu queria que ele estivesse aqui, comigo, acompanhando a minha gestação, me apoiando…
Ela sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto e as enxugou depressa.
— Não quero que tenha pena de mim, só que me compreenda — disse ela com a voz embargada. — Eu nunca neguei nada a ele, mesmo que ele me machucasse… — As lágrimas continuaram a cair sem parar. — Mas… qual é o meu propósito? Aquecer a cama dele, ser um brinquedo que ele usa quando quer? E o pior é que ele não me diz nada, e às vezes eu nem o reconheço…
Ela encarou Brighid com os olhos marejados.
— Eu… fui criada para ser uma arma, é isso que sou… mas às vezes eu queria me sentir mais do que um objeto descartável. — Limpou as lágrimas das bochechas. — E o mais irônico, é que eu ainda o amo…
— Ayla…
— Fiz o que achei certo, o que era necessário, e eu… acabei me casando com o seu marido, carregando os filhos dele, e eu entenderia se você me odiasse por isso, porque eu nunca quis ser amada, nem amar… mas… agora é diferente. Nunca imaginei que esses sentimentos pudessem ser tão… tão fortes em alguém.
Ela olhou para o vazio, tentando sorrir.
— Às vezes eu me imagino no seu lugar, e me vejo vendo Colin se casar com outra mulher, gerar os filhos dele, e isso me dói por dentro… eu não sei como você se sente, tendo que conviver com uma mulher que tomou o que era seu… por isso eu-
— Ayla, não se preocupe com isso-
— Por favor, me deixe falar… é por saber disso, que eu nunca vou me colocar entre vocês dois… eu não sou sua rival, Brighid… e não quero ser, jamais, então peço perdão, por tudo… eu… — Os olhos dela se encheram de lágrimas novamente. — Eu não sabia que isso podia doer tanto e… relacionamentos humanos nunca foram o meu forte, eu não desejava nada disso e… eu juro. — Ela encarou Brighid. — Vou fazer de tudo para proteger você, Colin e as crianças, eu darei a minha vida por isso, então…
Ayla enxugou as lágrimas com as costas das mãos. — Só quero te pedir uma coisa, e é só a você que posso pedir isso. Por favor… me aceite como parte da sua família, como sua amiga, sua irmã… como parte de algo que transcende o sangue… e-eu não quero que os meus filhos… sejam desprezados, excluídos por causa da mãe deles que fez uma escolha errada e… naquela época eu não podia saber que era errado, sentimentos como os que sinto agora eram insignificantes para a antiga eu… então por favor…
Aquele havia sido um desabafo que causou impacto em Brighid. Ela não lembrava de Colin ser como Ayla descreveu, e juntando tudo que Coen disse e o que ouviu de terceiros, a queda de Ultan, principalmente aquela fatídica noite, havia sido brutal para todos, especialmente para Colin que parecia um homem totalmente diferente.
— Aqui, Ayla, beba isso. — Brighid ofereceu o chá, e em meio aos soluços, Ayla se acalmou.
— Obrigada… — gracejou em meio aos soluços. — Eu não… queria ter chorado desse jeito, acho que estava guardando isso por tanto tempo que-
— Calma, tá tudo bem, não precisa se explicar. Tome o chá e relaxe.
Ayla assentiu com a cabeça e relaxou as costas na poltrona. Seus olhos e seu rosto vermelhos de tanto chorar.
Brighid segurou uma das mãos dela.
— Eu… confesso que fiquei furiosa quando soube… — disse Brighid. — Fiquei arrasada, não com você, com o Colin. Você sabe como ele é… às vezes ele age sem pensar… bem… e isso piorou com o tempo, ele começou a se sentir responsável por tudo, e isso o deixou um pouco… obcecado. Quando cheguei aqui, estava pronta para brigar com você, mas vi amigos que não via há anos, eu vi as pessoas sorrindo, as crianças e os meus filhos e… pensei comigo mesma: ela não pode ser tão má assim, pode? E, pelos deuses, como eu poderia machucar uma mulher grávida? Tá tudo bem, Ayla, e quando Colin voltar falarei com ele, mas… acho que uma parte de mim tem medo do que ele se tornou…
Ayla apertou a mão dela. — Eu te entendo… o Colin… ele me disse estar disposto a fazer qualquer coisa para se tornar o mais forte, até mesmo se tornar um monstro e… eu não sei como ajudá-lo, mas você sabe melhor do que ninguém como ele é por dentro. Você é a mulher dele de verdade. A esposa que ele ama mais do que tudo.
Ela desviou o olhar.
— Ele me contou sobre a visão do lithium… de que ele vai morrer em breve e… sinceramente, eu não sei como lidar com isso, é um pesadelo…
Brighid assentiu.
— Quando ele chegar, nós vamos conversar com ele, tenho certeza de que ele vai nos escutar. Colin só precisa de um rumo, só isso…
Foi a vez de Ayla apertar as mãos dela.
— As crianças, mesmo não tendo sangue real, eu as tratei como se fossem meus filhos, e posso tornar você rainha, autorizar uma monarquia com múltiplos consortes. Estou disposta a colocar você ao meu lado, não como concorrente, mas como uma igual, uma irmã. Terá os mesmos poderes que eu neste império, assim como os seus filhos.
Brighid a encarou no fundo dos olhos.
— Ayla, não precisa fazer isso-
A rainha levantou-se da cadeira e ajoelhou com calma, segurando as mãos de Brighid.
— Meu objetivo é deixar as coisas em ordem, apenas isso. E se no pior dos cenários isso der errado, títulos, nobreza, isso não é mais importante do que deixar você, as crianças e Colin seguros. Comprei terras vastas no reino esquecido, terras aráveis e férteis.
A mestiça abriu um sorriso genuíno. — A gente pode se mudar para lá com as crianças, viver do que a terra provê, criar as crianças ao nosso modo. Colin é forte, e continua se fortalecendo… mesmo se ficarmos sem poderes, ou se a gente ficar frágil de alguma forma, ele pode cuidar da gente, ele nos protege, então, por favor, confie em mim e me ajude, por favor…
Aquela mulher era bem diferente do que Brighid tinha na cabeça. Ela também ouviu histórias dela, de como a rainha era ardilosa, mas ela era um ser do abismo, conseguia sentir maldade em um ser apenas pelo olhar, e não sentiu isso vinda da rainha de Runyra que diziam ser orgulhosa e impiedosa.
Era a primeira vez que Ayla suplicava daquela maneira para alguém, nem mesmo com Colin ela se comportou daquela forma, mas ela não se importava. Seu objetivo era trazer Brighid para o seu lado, fazer com que a Santa de Valéria não a visse como adversária.
Brighid deu um longo suspiro.
— Devia puxar a orelha de Colin de vez em quando. Ele deixou você tomando conta de tudo sozinha, mesmo cheio de inimigos, e levanta, ficar ajoelhada com essa barriga enorme deve ser incômodo.
Ela ajudou Ayla a se levantar e foi a vez de Ayla dar um longo suspiro.
— Obrigada… achei que a gente não fosse se entender…
Brighid abriu um sorriso de canto e brincou. — Ainda temos tempo de isso acontecer, se eu fosse você não ficaria tão confiante.
Ayla forçou um sorriso enquanto suor seco escorreu por sua têmpora. — Precisamos arrumar você, apresentá-la aos nobres!
Brighid ergueu uma das sobrancelhas.
— Arrumar?
— Eu te mostro o palácio!
— Na-não precisa, não agora… estou um pouco cansada…
— Ah… tá… posso pedir pra prepararem um quarto e-
— Não me importo de dormir no quarto dos meus filhos…
— Tá…, vou te acompanhar até lá…
— Obrigada.
Ambas fizeram o caminho de volta, e no quarto das crianças ficaram. A serva que estava na cadeira fez uma reverência e se retirou.
— Se precisar de qualquer coisa, é só pedir, tá?
Brighid assentiu com um sorriso de canto.
— Obrigada…
— Imagina, você faria o mesmo por mim, agora deixarei você descansar.
A rainha deixou o quarto.
Depois de um suspiro, Brighid deparou-se com seus filhos dormindo, mergulhados em uma paz palpável. Um sorriso de canto apareceu em seus lábios e ela se dirigiu rapidamente ao banheiro nos fundos, encarando seu reflexo no espelho.
Estava exausta, mas seu cansaço mais evidente era mental.
Não foi fácil processar tudo o que vivenciara nas últimas horas, e a ideia de que nada seria como antes doía profundamente.
Do modo como Ayla falou sobre Colin, Brighid já antecipava o pior. Agora, ele era um rei, com responsabilidades sobre milhares de pessoas, e ainda havia outra mulher.
Refletiu se desejar Colin somente para si seria egoísmo, sonhando com uma família ao lado dele, longe de toda aquela situação infernal. Um sentimento ambíguo invadiu seu peito.
Rever os rostos familiares, reencontrar seus filhos, trouxe uma mistura de emoções, gratidão, mas, ao mesmo tempo, ao ver tudo o que Colin fizera para conquistar isso, ela se encheu de raiva e até mesmo de culpa.
Sabia que Colin era um homem instável. Com ela longe, Brighid imaginou que ele foi forçado a tomar certas decisões, resultando no reino, em Ayla, em toda a responsabilidade que ele insistia em carregar sozinho.
Queria encontrá-lo, confrontá-lo, mas, ao mesmo tempo, ansiava por beijá-lo, sentir seu calor, seu toque. Suspirou e encarou-se no espelho.
— Colin é forte, ele sabe se virar. Cuide de você e dos seus filhos, e Ayla… ela está grávida… Se Colin estiver mesmo como ela descreveu, então… — A expressão dela mudou, ficando séria. — Não dá para mudar o que aconteceu…
Brighid abriu a banheira e voltou para verificar as crianças. Acariciou suavemente os cabelos de uma delas.
— A mamãe está aqui agora, vai ficar tudo bem. — Ela beijou a testa da criança e retornou para o banheiro, tirando a camisa e observando seu corpo, definido não com os músculos de Morgana ou o abdômen trincado de Ayla, mas esculpido como o de alguém que frequenta a academia regularmente. Prendeu o cabelo em um coque e manteve um semblante sério.
— Até que não estou tão mal quanto pensei.
Entrou na banheira, um pé de cada vez, e se acomodou na água morna, relaxando. Cerrou os olhos e permaneceu ali por bastante tempo, lavando não apenas seu corpo, mas também sua alma.