O Monarca do Céu - Capítulo 334
Obedeça a sua rainha.
Apoiando uma das mãos nas costas e a outra na barriga, Ayla adentrou a sala de reuniões onde Lyriel a aguardava, apreensiva.
Assim que a rainha passou pela porta, a garota fez uma reverência de imediato enquanto suava frio.
— Ma-majestade!
Ayla passou pela garota e sentou-se em sua mesa, dando um longo suspiro.
— Como foi a viagem?
A garota continuava de pé. — Fo-foi tranquila… eu… agradeço em nome de meu pai que tenha permitido que eu viajasse por suas terras… elas são lindas.
— Você fala bem a nossa língua, quantos anos tem?
— De-dezesseis, senhora…
Ayla assentiu e ajeitou-se em seu trono.
— O seu pai, Leif, é bem atrevido. Mandar você de presente para um rei que já tem duas esposas é uma aposta ousada, para não dizer estúpida.
A garota engoliu em seco.
— E-eu… estou aqui para servi-la como a senhora desejar… meu pai me disse que, pela trégua, eu deveria… servir à família real…
— E você concorda com isso?
— … bem… não acho que eu tenha escolha…
— Todo mundo tem uma escolha, por que não se senta?
Após engolir em seco, ela se sentou.
— Você é uma garota jovem, bonita, não acha injusto que acabe com sua vida dessa maneira? Pense comigo, mesmo se você ficar aqui e servir à família real, seus títulos serão esquecidos, sua figura, você. No fim, se tornará uma serva sem identidade. Um fim triste para uma garota que tinha tudo pela frente.
Ela desviou o olhar.
— Eu sei, mas… meus pais, meus irmãos, meus amigos… eu não quero que tudo termine nessa guerra, se me usarem para todo mundo ficar bem, então…
Ayla assentiu e pegou uma uva que estava no canto da mesa, em um prato de porcelana junto a um cacho.
— Sabe, eu poderia muito bem ter decapitado você e mandado a cabeça para o seu pai numa caixa assim que botou os pés no meu território, sabe por que não fiz? Eu queria ver como era a filha de Leif, e estou sinceramente decepcionada. Esperava uma mulher forte, personalidade magnética, carismática, mas você é o oposto disso.
Lyriel franziu os lábios e apertou as bordas do vestido.
— Si-sinto muito, majestade, e-eu posso tentar mudar-
— Esqueça, minha impressão de você não mudará. Sequer consegue me encarar nos olhos, garota… não sou um monstro, sabia?
Ela engoliu em seco. — No caminho… no caminho para cá, eu vi árvores com nortenhos enforcados… corpos em estacas, amarrados em rodas de tortura, cabeças jogadas por todo canto… eu… fiquei assustada já que a senhora está por trás de tudo isso…
Ayla pegou outra uva e deu de ombros.
— Seu pai continua a insistir com isso, então a guerra não vai parar.
Lyriel encarou Ayla nos olhos. Os olhos da garota estavam cheios d’água.
— Meu irmão mais velho morreu nessa guerra… tudo por que nós não podemos ficar com as terras de um império extinto? Isso… é tão cruel…
— Os nortenhos, sempre tão orgulhosos e nunca mudam essa visão unilateral, né? Se seu povo estivesse vencendo, o que acha que aconteceria comigo?
A garota desviou o olhar e continuou em silêncio.
— Matariam os meus filhos, massacrariam o meu povo e os soldados me estuprariam, mesmo eu estando grávida, porque é assim que vocês são. Não passam de bárbaros. Os carniceiros estão à frente na invasão do território que vocês ocupam. A ordem foi clara, eles não matam civis, não violam mulheres ou machucam inocentes. Eles sabem que, se quebrarem essa ordem, estarão condenados.
Ayla pegou outra uva e encarou a garota com o nariz empinado.
— Todo esse choro, essa humilhação que seu pai está passando, foi porque ele me subestimou. Escreveu uma carta endereçada a mim há alguns meses, e sinceramente, vocês merecem tudo isso.
— Isso não é justo… — disse ela limpando as lágrimas.
Ayla deu um suspiro. — O que é justiça para você, garota?
Soluçando, ela continuou a limpar as lágrimas. — Não é isso que a senhora está fazendo com o meu povo…
— Justiça é garantir os direitos naturais, garantir que cada pessoa tenha o direito à vida, à liberdade e que ela tenha um pedaço de terra que possa chamar de seu. O seu pai, Alexander, representam tudo que estou combatendo.
Limpando as lágrimas, a garota encarou Ayla no fundo dos olhos enquanto a rainha estava prestes a começar seu monólogo.
— “A Natureza produz um amor especial pela descendência, e viver segundo a Natureza é o supremo bem.” Sabe o que essa frase quer dizer?
A garota fez que não balançando a cabeça.
— Então, a ideia é que a própria natureza estabelece um laço especial de afeto entre pais e filhos. Pode-se entender que o vínculo emocional entre progenitores e sua descendência é algo inato, uma parte essencial da ordem natural. Seguir a natureza implica buscar contentamento moderado, evitar sofrimentos desnecessários e cultivar um equilíbrio na existência. Em síntese, trata-se da relevância das relações familiares e da imperativa necessidade de viver em harmonia com a natureza para atingir a felicidade e o bem-estar.
Ayla esticou a mão, pegando outra uva, enquanto a garota tentava entender o que a rainha estava dizendo.
— Essa frase foi compartilhada pelo meu mestre de esgrima na minha juventude, e, honestamente, ela nunca fez muito sentido para mim. No entanto, tudo mudou quando engravidei e comecei a zelar por várias crianças que tinham laços familiares com meu marido. Isso despertou em mim uma empatia genuína por elas. O que estou tentando expressar é que nenhum pai deveria enviar a filha para a toca do leão, como o seu fez com você. Isso revela algo profundo, não acha? Parece que ele não se importa minimamente com o que possa acontecer a você aqui. Se ele não demonstra preocupação pela própria filha, que é seu próprio sangue, como podemos confiar que ele se importe com um povo?
Ela cerrou as mãos sobre o vestido, franzindo os lábios.
— O meu pai não é assim!
— Sua visão ainda é a de uma garota. Comece a pensar como mulher e deixe de ser estúpida. Se ele teme tanto Runyra, por que enviar a própria filha nas mãos de demônios? Você só faz parte de uma jogada do seu velho, uma jogada que ele jogou sabendo que poderia perder.
Lyriel balançou a cabeça, negando tudo enquanto lágrimas continuavam a cair.
— A senhora quer me jogar contra o meu pai!
— São os fatos, garota. Qual a grande ambição de Leif, sabe me dizer?
— Ele quer a paz, quer que vivamos em paz no continente, que o meu povo seja livre-
— Errado! — Ayla a interrompeu. — Se ele quisesse isso, teria dobrado os joelhos para mim há meses. Seu pai quer me destruir, mas ele não conseguirá. Minha briga é contra Alexander, contra o abismo. Nesse tabuleiro, seu pai e os nortenhos não são nada. Sequer mandei um contingente significativo para parar vocês, sabe por quê? Vocês são insignificantes, formiguinhas barulhentas que serão esmagadas sem esforço algum.
— Então a senhora não vai nos poupar? — disse em meio aos soluços.
— Não, porém, eu posso fazer com que vivam, eu posso dar ao seu povo partes das terras, dar a eles um refúgio, ser “justa” com eles, mas a condição que quero é a cabeça de Leif espetada em uma lança.
— Mas-
— Não há discussão, garota. É assim que o mundo dos regentes funciona. Se fosse Runyra que estivesse perdendo, vocês fariam pior, e você sabe disso. Basta me dar o seu pai, e assim, quem assumirá o posto de regente será a sua mãe, correto? A única coisa que ela terá que fazer será dobrar os joelhos para mim e garanto a vocês o direito de ficarem nas terras de Ultan, conservar sua cultura, suas regras, mas com a sombra de Runyra sobre seus ombros.
Lyriel engoliu em seco enquanto desviou o olhar.
— Eu… eu não sei…
— Esse é o máximo de benevolência que posso oferecer a você. Salve sua mãe e seu povo matando o seu pai, ou morra com seu pai, sua mãe e o seu povo, porque farei questão de matar cada habitante da cidade que seu “papai” reside.
A garota continuou desorientada, sem saber que decisão tomar.
Ayla comeu mais uma uva.
— Você vai retornar para sua cidade e matará o seu pai por mim, em meu nome. Sem terceiros, tem que ser você, ou o seu povo sofrerá as consequências. Só quero ver o seu rosto de novo quando você estiver ajoelhada, jurando servir a sua rainha, entendeu?
Ainda sem digerir tudo, ela apenas assentiu.
— Si-sim… senhora…
— Ótimo, agora saia.
Lyriel ergueu-se, fez uma reverência e abriu a porta.
— Tuly! — Ayla o chamou e ele adentrou. — Deixe a garota bem alimentada e a mande de volta.
— Sim, senhora.
[…]
Vallkuna, sentada em seu trono majestoso, havia acabado de receber a notícia que mais um dos quatro deuses principais havia sido eliminado. Sua figura esguia observando por uma janela o seu belo reino que ali havia criado, também nas costas de um deus morto cultuado por alguma civilização do cosmos em algum período histórico.
Agora, havia somente dois alvos para os devoradores, e era perceptível que eles estavam próximos. Seu medo, era que não havia lugar para se refugiar, um lugar onde pudesse esconder o seu povo.
Ela estava à mercê do destino.
A porta da sala abriu de repente em um baque, e Vallkuna virou para trás, vendo um de seus soldados Alados entrar apressado.
— Senhora! Scasya retornou, e traz notícias!
Dos fundos, Scasya apareceu, caminhando até sua senhora e se ajoelhando.
— Sr.ᵃ Vallkuna, é ótimo vê-la! Trago notícias, o devorador que estávamos buscando não é o devorador de verdade, ele-
— Obrigada, Scasya, mas nós já sabemos de tudo… — A Alada ergueu a cabeça. — As companheiras desse devorador, Colin, estão hospedadas aqui. Ele não veio com você?
Scasya engoliu em seco. — Estávamos explorando uma antares, até que fui expulsa pela entidade no núcleo, desde então não sei o que aconteceu… corri de volta para o reino temendo que o verdadeiro devorador tivesse chegado.
Vallkuna assentiu com um sorriso gentil.
— É bom tê-la de volta, mas deve saber que as notícias não são tão animadoras. Dois dos quatro deuses regentes foram mortos. Posso ser o próximo alvo deles… eles podem estar se dirigindo para cá nesse exato momento, e quando isso acontecer, temo o pior.
— Eu retornei, senhora, posso reunir os exércitos, deixá-los atentos.
— As companheiras do Devorador falso estão aqui. — Scasya ergueu a cabeça. — Faz alguns meses que estamos as hospedando, vá conhecê-las, garanto que vão se dar bem.
— …, sim, senhora…
Não tão longe dali, os olhos de Safira avistavam aquela cidade flutuante brilhante. Os prédios eram belos, feitos de mármore branco do plano astral, que deixava tudo ainda mais deslumbrante.
Ela estava com sua pandoriana Nix, que estava sentada em seu ombro.
— Consegue sentir isso, Nix? — indagou Safira. — Essa mana familiar…
— Deve ser coincidência. Não é fácil viajar até o plano astral, não acho que tenha alguém que você conheça aqui. E essa é a nossa última parada antes de irmos para casa.
Safira assentiu e tirou as mãos dos bolsos.
“Essa mana… é a do Colin?”
— Tem gente forte lá embaixo…
— Você derrotou dois deuses do plano astral sozinha, não deve ser problema para você. Aquele pandoriano disse que cuidaria do deus da terra, então não precisa se preocupar.
— Por que acha que ele quis isso?
— Ele está te testando, mas acredito que ele queira ver se você é mesmo capaz de pertencer aos caídos. Vamos, você se concentra no deus daqui e eu cuido das distrações.
— Certo…
[…]
Sentada na cama como um cão, Leona coçou as orelhas com o pé e depois se jogou na cama, abrindo os braços.
A sereia Sirela estava nos fundos lendo um livro, e Heilee estava sentada na cadeira com os pés na mesa e um livro aberto sobre o rosto, tirando um cochilo.
— Heilee! Tá acordada?
Ela grunhiu em concordância, sem tirar o livro do rosto, e Leona continuou:
— Acho que a gente devia ir atrás do mestre Colin, mais cinco minutos aqui e eu enlouqueço.
Heilee tirou o livro do rosto e encarou Leona com a carranca sisuda. — Por que não tenta ler um pouco? Vai distrair a mente…
— Ler? Bleé… que nojo!
— Então não me enche.
Leona olhou para os dois lados e sussurrou. — O rato frito deles é horrível! Se não fosse por isso, eu ficava aqui. Esse é o lar de um deus ou algo assim, a comida não devia ser fabulosa?
Heilee revirou os olhos e tirou os pés da mesa. — Por que não vai caçar alguns ratos e prepara você mesma?
— Eu não! Eles vão achar que sou maluca.
— E não é?
Leona sentou-se na cama e mostrou a língua para a companheira. Saltando da cama, ela foi até Sirela que abaixou o livro para encarar aquele rosto sorridente.
— Srt.ᵃ Leona…
— Quer brincar comigo? Eu, você e Heilee!
— Brincar?
— Não dê trela para essa doida — disse Heilee erguendo-se. — Ela vai fazer você perseguir por todo esse palácio.
— Ei! — Leona apontou o indicador para a companheira. — Sou uma usuária da pujança, preciso me exercitar! E você também precisa!
— Não preciso nada, e eu vou dormir um pouco, então fique em silêncio!
Sirela segurou a gargalhada, observando aquelas duas.
— Vem, Sirela, vamos-
Leona e Heilee sentiram uma mana diferente, enquanto Sirela não sentiu absolutamente nada, mas notou a mudança de humor das duas.
— Aconteceu alguma coisa?
Heilee suou frio. — Acho que ele está aqui… o devorador de deuses…