O Perigo nas Sombras - Capítulo 1
Quão verdadeira é uma relação humana? Poderia-se afirmar que as interações entre esses seres egoístas é de fato confiável?
Por trás de uma palavra gentil, há um interesse, um objetivo a se atingir. Mentiras criam uma ilusão, onde se vive acreditando que tudo é real, simbólico, que um gesto carrega consigo seu legítimo significado. Uma enganação sutil esconde a genuína intenção através de uma acepção não-verbal dos sentimentos. No final de tudo, seriam abandonados aqueles que não conseguem perceber uma intenção a mais, uma falsidade, e criar uma relação profunda e verdadeira, onde é compartilhado uma expressão de emoções reais, voluntárias, cintilando com a confiança mútua da relação, porém, ter algo assim é difícil, pois certas vezes somos guiados pelos nossos instintos, e numa situação de grande risco, eles agem com a única intenção de sobreviver. Ter a coragem de abandonar seu percurso para não morrer e ir ajudar alguém, é algo que não provém de uma amizade fajuta.
Essa concepção era algo que pairava sobre a mente de Miura Kazuo, um colegial com dificuldade em confiar nas pessoas. Sua irmã mais nova, Miura Sachie, era a pessoa em que ele mais confiava.
Após um incidente familiar, ambos foram auxiliados por sua tia, Natsuko, que morava numa cidade vizinha.
Três anos após o incidente, Kazuo já havia se adaptado à cidade nova — maior do que a antiga, por sinal — morando em um apartamento alugado por Natsuko.
A paisagem florida acariciava o coração dos moradores naquela época. O bairro residencial estava recheado pelo resplendor rosa das cerejeiras, e aquele espetáculo indicava apenas uma coisa: o início das aulas.
O aroma suave das árvores, em mais uma manhã fresca, encontrava Kazuo na cozinha enquanto preparava o café da manhã. A janela aberta permitia ao sol carinhosamente iluminar a pele clara do jovem e o interior do recinto. Ele terminava de preparar a refeição, quando olhou para o relógio e viu que marcava “07:45”.
— Vai se atrasar no primeiro dia? O que ela está pensando? — Kazuo falou consigo mesmo, então arrumou a sopa de missô, o omelete, o arroz com wakame na mesa baixa, e por fim completou com chá verde a apresentação, assim andou em direção ao quarto de Sachie.
— Sachie! — Ele a chamou, batendo na porta.
Nenhum som pôde ser ouvido do outro lado. Não acredito… Ele girou a maçaneta e entrou no quarto comum de uma garota que gosta de coisas fofas. Kazuo andou pela escuridão até as cortinas e…
— Levanta, Sachie. Você vai se atrasar. — Ele as abriu, e uma grande claridade invadiu o quarto. O rapaz viu pela janela uma rua com árvores e as casas de alguns vizinhos.
Kazuo observou o contorno de um corpo sob o lençol, percebendo a maneira estranha que ele estava deitado, e logo, sua falha em fingir que estava dormindo. Essa garota… Ele não conteve um pequeno sorriso, e então se aproximou lentamente da suposta cabeça do corpo.
— Você não me engana… e vai se atrasar.
— Hi hi! — Uma risada doce, repentina.
Antes que Kazuo pudesse perceber, metade do seu corpo havia sido puxado para debaixo do lençol. Sua cabeça estava sendo envolvida por braços macios, enquanto era encarado por grandes olhos violeta.
— Bom dia, maninho! — Sachie sorriu, enquanto abraçava Kazuo, ainda impressionado.
Seu rosto por um momento ficou vermelho, porém, respirando um pouco, ele aliviou o embaraço.
— Sachie, o que você está… — Kazuo parou de falar, levantando. — Bom dia… — Ele coçou a cabeça.
— Maninho, a partir de hoje, a gente vai ficar menos tempo juntos, por isso… eu queria fazer uma surpresa.
Kazuo percebeu na expressão de Sachie uma certa tristeza, então disse em tom reconfortante, enquanto caminhava para a porta do quarto:
— Fiz Tonkatsu.
— Eba! — Instantaneamente a melancolia da garota foi substituída por um sorriso e uma pequena fome.
Ela levantou rapidamente e seguiu Kazuo enquanto ele abria a porta.
Além dos olhos violeta, Sachie tinha longos cabelos pretos que tocavam as costas e sua pele era clara como a de Kazuo, porém, ela tinha uma aparência um pouco mais jovem que a dele. A garota tinha quinze anos, enquanto Kazuo tinha dezessete. Ele também possuía cabelos pretos, que caiam sobre a testa em uma franja desarrumada, e seus olhos eram escuros. O topo da cabeça de Sachie passava um pouco dos ombros de Kazuo, que era alto. Ela vestia uma camisa folgada, azul escuro, e um short preto. O rapaz estava com um casaco de moletom cinza, e uma bermuda verde musgo.
No apartamento de Kazuo, haviam somente cinco cômodos. Eram eles três quartos, um banheiro e a sala, que dividia espaço com a cozinha. Dois quartos, que eram os dos irmãos, ficavam na sala, ao lado do banheiro. Para chegar até o terceiro, existia um corredor que começava na frente do quarto de Kazuo, e a entrada do apartamento ficava na direção contrária à esse corredor.
No centro da sala, estava a mesa baixa, com o café da manhã em cima dela. Havia uma televisão presa na parede que ficava ao lado do corredor. As portas dos quartos e a cozinha ficavam em lados opostos.
Droga… Por quê eu fui mentir? Ela ficou muito feliz. Mas quem comeria Tonkatsu de café da manhã?
Kazuo estava suando um pouco quando chegou até a mesa, não sabendo qual seria a reação de Sachie quando descobrisse que ele mentiu sobre ter feito seu prato preferido. Ele se sentou no tatame, e Sachie abriu a porta ao lado do quarto dela, entrando no banheiro.
Que eu bata o dedinho, mas que ela não fique triste.
— Eu devia ter dormido mais cedo ontem. — A porta do banheiro se abriu, e de lá saiu uma jovem dona de cabelos negros saltitantes.
— Hm? Cadê o Tonkatsu? — Ela se aproximou da mesa, e olhou para Kazuo. — Maninho, você está suando… — Sachie pegou uma toalha pequena, se abaixou perto do rapaz e delicadamente enxugou sua testa.
— Nem está calor. Você está se sentindo mal? — Ela encostou a própria testa na dele, aproximando seus rostos. — Hm… Mas você não tem febre…
Kazuo pegou a toalha da mão de Sachie e a deixou de lado.
— Sachie… Eu não fiz Tonkatsu, não.
— O quê?
— Eu falei aquilo só pra você levantar logo.
Sachie ficou em silêncio.
…
— Que cruel, maninho. — Ela riu, obviamente decepcionada.
— Eu sei, me desculpe. — Kazuo riu também, coçando o rosto.
— Mas eu não estou triste, não. — Sachie sentou no outro lado da mesa. — Você falou isso porque estava preocupado comigo.
— Que bom que você entende as coisas.
— É claro que eu entendo! Eu não sou mais criança.
— É verdade. — Os cantos da boca de Kazuo se levantaram um pouco em um sorriso gentil.
Sachie sorriu de volta.
— Obrigado pela refeição.
— Obrigada pela refeição.
Ambos pronunciaram em sincronia.
Sachie segurou o hashi e então pegou o pedaço retangular de omelete. Ela o levou até a boca.
— Hm! — A garota, com os olhos fechados, virou o rosto para Kazuo, levantando o dedo polegar.
O rapaz sorriu, balançando a cabeça em negação.
— Eu estou indo! — Sachie estava com seu uniforme escolar preto, que contava com um lenço vermelho no colarinho. Ela abriu a porta e acenou para Kazuo, que estava lavando as tigelas.
— Se cuide!
A porta se fechou, e o som da água corrente prevaleceu na casa.
As flores das cerejeiras dançavam ao vento, passando pelo rosto de Kazuo junto com o balanço de seus cabelos negros, sobre os olhos de mesma tonalidade, bonitos, porém, eram intensos e carregavam grande profundidade. Ele pedalava cercado pela quietude da manhã, passando pelo bairro para chegar até a escola.
Kazuo estava com sua jaqueta preta por cima da camisa branca, com a gravata azul com listras douradas no colarinho, característica da escola onde estudava.
O som do canto dos pássaros diminuía na medida em que ele prestava menos atenção à sua volta, assim, não percebeu que estava tomando o caminho errado.
A imagem de uma porta surgiu em sua mente. Um grito ecoou do outro lado.
— Que droga é essa?! — Kazuo correu e a abriu.
— N-Não… Como vocês descobriram…? — A voz trêmula de um homem se fez presente.
Algo abaixo dos olhos de Kazuo chamou sua atenção.
— Urgh… — Ele colocou as mãos cobrindo a boca, seus olhos se encheram de lágrimas.
Uma poça de sangue tocou os seus sapatos, e lentamente os envolviam.
— M-Ma… — Kazuo olhava aterrorizado para o corpo ensanguentado caído sobre a poça.
— Eu me esforcei tanto pra que ninguém descobrisse onde nós moramos. — A voz do homem soava angustiada. — Mas aqui estão… Então vou matar todos vocês! — Ele urrou em fúria.
Passos rápidos e pesados ecoaram em meio ao recinto.
— Maninho! — O grito apavorado de uma garota chegou aos ouvidos de Kazuo como um estalo, acordando seus instintos. Ele arremessou um vaso que estava ao lado.
— Argh! — O recipiente se quebrou no rosto do homem, fazendo-o largar a faca.
Kazuo rapidamente se aproximou da garota, pegou sua mão e…
— Ei! Presta atenção!
Os sinos do cruzamento de trem soavam em vermelho enquanto Kazuo ia em direção aos trilhos. Ele apertou o freio com toda a força fazendo a bicicleta levantar.
— Urh!
A bicicleta parou bruscamente na frente da barreira dos trilhos, momentos antes do trem passar.
O cabelo de Kazuo balançou violentamente com o vento, e o ruído alto do trem invadiu seus ouvidos.
— Que… Droga… — Ofegante, ele relaxou um pouco os braços, aliviado — Por que eu lembrei disso agora? — Kazuo olhava para o metal do trem que passava em alta velocidade.
— Você quer morrer?! — Uma senhora corria, se aproximando, preocupada. — Tem que prestar atenção em tudo quando se usa um veículo, viu?
— Sim… Eu me distraí um pouco. — Kazuo coçava a cabeça com um sorriso desajeitado. — Me desculpe, e obrigado por gritar. — Ele ajeitou a bicicleta, e começou a pedalar.
— Ei! Espera!
Kazuo voltou pela rua e seguiu o caminho certo até a escola.
— Ele nem me esperou perguntar se estava tudo bem…
Kazuo aproveitava o intervalo para descansar os olhos debruçado em sua mesa. Era apenas o primeiro dia, mas todos ali já estavam fazendo amizade como se não houvesse amanhã.
Do seu canto preferido da sala, ao lado da grande janela, ele notara sentada no outro canto, uma garota que ao contrário de todos, estava quieta e não conversava com ninguém. Uma hora ou outra ela passava a mão no longo cabelo prateado, arrumando-o atrás da orelha. Que cor bonita.
Os garotos da sala a admiravam; em alguns rostos era óbvio o brilho da paixão à primeira vista. Algumas garotas sussurravam coisas umas para as outras, enquanto observavam a aluna.
Asuka, a garota de cabelos prateados, estava com o blazer azul escuro da escola e uma saia de mesma cor. Por baixo do blazer, ela usava um suéter bege, com a camisa branca e a gravata por dentro dele. A jovem ainda usava uma meia calça preta, que terminava um pouco acima dos joelhos.
Kazuo a olhou com uma mão apoiando o queixo, um pouco entediado, até que…
— Nossa, você viu o que está acontecendo? — Uma aluna próxima a ele mostrou a tela do celular para a outra.
— Vi sim, eu estou evitando ao máximo sair de casa à noite.
— É, né…? Eu também. Esse serial killer está me assustando demais. Até pra vir hoje de manhã, eu fiquei com medo.
— Tive uma ideia! — A outra garota subitamente deu um pequeno pulo da cadeira.
— É mesmo?! O que é?
— Vamos voltar juntas pra casa hoje, não, todos os dias, assim vamos estar um pouquinho mais seguras.
— Sim! Caso fique muito tarde, a gente poderia ir pra casa de quem mora mais perto da escola.
Já se tornaram melhores amigas?
— É! Meu gatinho Kota é muito fofo, você vai adorar fazer carinho nele.
Tsc… Queria ouvir mais sobre o serial killer… Kazuo voltou o olhar para a garota de cabelos prateados. Apesar de chamar muita atenção, nenhum dos alunos se aproximou para conversar com ela.
Foi nesse instante que uma aluna com longos fios dourados se levantou, olhando diretamente para a mesma garota que Kazuo. Ela demorou, mas parece que já vai fazer seu primeiro atentado de inveja. Ele já havia percebido a personalidade opressora e dominadora da aluna loira, evidente até na maneira de olhar para os outros. Ela, acompanhada de outras duas, caminhou lentamente até Asuka.
— Olha só! Temos alguém bem popular na sala. Aposto que o serial killer gosta de perseguir gente bonita igual a ela. — As três alunas apenas passaram por Asuka olhando de cima, rindo, com feições de deboche. Elas abriram a porta e saíram.
A turma entrou em um silêncio angustiante quase instantaneamente, todos olhando para Asuka, que estava com a cabeça abaixada, mal sendo possível ver seu rosto. Gradualmente o clima tenso foi sendo substituído pela conversação incessante dos alunos.
Que merda foi essa? Dá pra ser mais ridículo que isso? Quão invejosa essa garota é? Ou quão grande é sua necessidade de pisar nos outros?
Kazuo observava a garota, agora debruçado novamente, analisando seu comportamento. Asuka deu um pequeno suspiro, olhando tristemente para o vazio, então deitou por cima dos braços como ele, com a franja desconexa caindo um pouco sobre os olhos azuis. Hm? A garota virou o corpo um pouco para o lado, então seu olhar se cruzou com o de Kazuo.
Ela ajeitou a postura imediatamente, desviando os olhos para frente. Asuka passou a mão no cabelo.
Ela está com vergonha? Kazuo levantou um pouco o canto dos lábios como também sua mão, fazendo um pequeno e discreto aceno. A garota percebendo seu gesto, se virou um pouco para ele. Seus olhos azuis como o céu agora fitavam os de Kazuo. Ela sorriu levemente, e começou a levantar sua mão, porém…
— Kazuchi!
A visão que Kazuo tinha de Asuka foi invadida por um corpo. Repentinamente uma garota apareceu em sua frente. Ela sorria alegremente, um pouco inclinada para ele. Cabelo rosa e olhos verdes… quem mais poderia ser?
— Ah, Fujioka-san, bom dia. — Kazuo levou o olhar até a paisagem que se expandia após a janela.
— Ficamos na mesma classe de novo. Por que você não veio falar comigo?
— Eu não te vi.
— Mentira! Nós trocamos olhares assim que você entrou na sala! — Yui, a garota de cabelos rosa, chegou mais perto de Kazuo, supostamente brava.
Ah… é.
— Você ficou tão bonita que eu nem te reconheci. — Ele apontou para o próprio cabelo, como um gesto que indicava o crescimento do cabelo de Yui.
— A-Ah! Você gostou? Eu nem acho que mudou tanto assim, eu estava pensando até em cortar de novo, mas se você gostou tanto… — Yui falava de uma maneira boba, enquanto ria um pouco sem graça, alisando o cabelo com os dedos.
A garota tinha um cabelo liso e volumoso, cor de rosa, que tocava a metade das costas. A franja natural terminava um pouco acima dos olhos verdes, e duas mechas longas estavam caídas por cima dos seios.
Yui também estava de blazer, como os outros estudantes. Por baixo dele, ela usava a gravata e uma camisa branca, desabotoada na região do colarinho até um pouco acima dos seios. Suas pernas apareciam, pois estavam cobertas pela meia calça até um pouco abaixo dos joelhos.
— Fujioka-san, quem é aquela garota? — Kazuo apontou Asuka com o olhar, que estava com o cotovelo em cima da mesa, apoiando o queixo com a mão, olhando seriamente a lousa vazia.
— Ah, é a Asuka-san. Eu não conversei com ela, mas dizem que ela vem de uma família rica e tradicional. Parece que ela se mudou para a cidade recentemente.
— Recentemente…
Será que ela sabe sobre os assassinatos? Não é possível que não saiba, aparece até na TV.
Yui encarou Kazuo com a testa franzida e as bochechas cheias, claramente fingindo que estava irritada. Ele estava olhando para Asuka até que percebeu algo o observando bem mais de perto.
— O-O que foi?
— Eu já falei que você pode me chamar de Yui-chan.
— Eu não vou fazer isso.
— Por que?!
— Nós não somos amigos, e isso não é o meu estilo.
— Claro que somos!
— Eu diria colegas.
— Ai! Eu não acredito, snif… — Yui começou a esfregar os olhos.
Por que eu acho isso fofo, mesmo sabendo que é fingido? Talvez sejam meus instintos de irmão mais velho.
— Chega aqui perto.
Yui se aproximou ainda mais de Kazuo.
— Pode parar de fingir. — Ele estendeu uma mão e começou a acariciar a cabeça da garota, e com a outra segurou o próprio queixo.
— Assim você até parece o maninho. — Yui disse em um tom baixo, rindo consigo mesma.
O cabelo dela é muito macio… Espera, por que eu não estou escutando nenhuma voz na sala?
Kazuo analisou o recinto, e literalmente todos os olhares da sala estavam voltados para ele. Alguns diziam: “Morra”, outros se perguntavam qual era a relação dos dois.
Kazuo rapidamente retirou sua mão da cabeça de Yui e se virou para a janela, com vontade de rir. Droga… A atenção que eu precisava. Ela, sem entender muito, olhou para trás. Yui não poderia ter ficado mais embaraçada, seu cabelo e seu rosto se tornaram apenas um.
— N-N-Não é isso!
O sol encontrava-se no seu ápice quando chegou a hora do almoço. Asuka apenas se levantou com sua mochila marrom claro e saiu da sala.
Bem, hora de ir para o mesmo lugar de sempre. Kazuo tomou o mesmo rumo, passando pela placa “2-A” acima da porta.
Alguns alunos se entreolharam após verem ele saindo sem falar com ninguém.
…
Vou almoçar com o Kazuo-kun, se ele não trouxe almoço eu posso até dividir o meu com ele…
— Kazu… — Yui não viu nada além de uma mesa vazia, somente com algumas pétalas rosas em cima, ao se virar para trás e olhar para onde Kazuo estava sentado.
Ele já saiu?! Será que ele foi para lá? Ela se levantou com sua mochila rosa claro para deixar a sala, porém…
— Yui-chan! Vamos almoçar juntas. — Uma aluna de cabelos ruivos a chamou quando estava prestes a sair. Ela, como Yui, eram da classe de Kazuo no ano passado.
— A-Ah, hoje eu vou almoçar com o Kazuo-kun. — Yui parou, com um sorriso sem graça.
— Com o Miura-san? Ele é meio estranho, Yui-chan.
— Ah, deixa disso. — Ela forçou uma risada. — Então, eu vou indo, até mais! — Yui deixou a sala antes que a aluna pudesse respondê-la.
…
Kazuo saiu do prédio, e o grande jardim da escola preencheu sua visão com vigor. O clima não poderia estar mais agradável. Ele caminhava pelo chão ladrilhado com pedras, passando pelas periódicas árvores cercadas com bancos, indo até seu lugar preferido. Um canto distante, quase com nenhum tráfego de pessoas, coberto por uma grande árvore. O local ainda contava com alguns bancos, mas havia algo nessa cena que Kazuo não esperava.
— Hã?
Cabelos prateados eram tocados suavemente pelo vento, enquanto tristes olhos azuis encaravam o chão. Era Asuka, refletindo sobre algo enquanto sentia o sono chegar como um convite. Ela se deitou no banco de lado, e então repousou delicadamente sua cabeça no mesmo. A garota encolheu as pernas e ajeitou a saia na tentativa de cobri-las um pouco mais.
Será que ela vai dormir ali? Bem, de qualquer forma eu vou almoçar logo.
Kazuo simplesmente caminhou até o banco e se sentou um pouco afastado de Asuka, no lado em que ela descansava sua cabeça.
A garota havia escutado alguns passos, então abriu os olhos. Percebendo a presença de alguém, ela se sentou rapidamente, com boa postura e as pernas juntas. Asuka olhou de soslaio para Kazuo, passando a mão no cabelo, mas ele apenas estava sério ajeitando a bolsa escolar. Quando ela notou quem era, ficou um pouco surpresa.
— Você não precisava se levantar só porque eu cheguei. Eu vinha sempre descansar aqui, mas hoje posso sair mais cedo, então não se preocupe.
— Você não acha estranho uma garota fazer isso? — Asuka olhava atentamente para Kazuo.
— Se você está com sono, então aproveite esse tempo livre pra dormir. — Ele deitou no banco, usando a bolsa de travesseiro, olhando para a copa da árvore.
Asuka apenas o acompanhou com os olhos, e então se deitou novamente, um pouco corada. Seus rostos estavam próximos.
— Qual seu nome? — Kazuo quebrou o pequeno “gelo”.
— Eu me chamo Horie Asuka.
— Sou Miura Kazuo.
— Muito prazer em conhecê-lo! Miura-san.
— Não precisa ser tão formal comigo.
— A-Ah, K-Kazuo-san, então?
— Não estou falando disso, e sim da sua forma de falar. Bem, mas não me importo que me chame assim.
— Tá…
Que cheiro bom… deve ser ela… é um cheiro de xampu. Sentindo um cheiro doce e suave, Kazuo virou um pouco a cabeça para olhar Asuka, que estava com os olhos fechados. Até que é fofa, mas parece realmente um pouco cansada.
Acho que estou entendendo um pouco da situação… De família rica e tradicional, e veio de outra cidade. Ela deve ser filha única, então com tudo isso, os pais dela devem exigir muito dela. Ainda tem aquilo… Pelo o que eu vi, parece que ela está sempre tentando ser comportada, mas às vezes ela acha que não tem ninguém olhando e relaxa. Deve ser muito chato… ser controlado por uma vontade que não é a sua, ter que se adequar ao o que a sociedade espera de você…
Que fome… vou comer logo.
— Asuka-san. — Kazuo se virou para a garota, olhando seu delicado rosto repousar em tranquilidade.
— …
— Ei. — Ele deu pequenos toques com o dedo na bochecha branca de Asuka.
— Kazuo-san…? — Ela abriu um pouco os olhos.
— Sim. Você não vai almoçar?
— Ah, v-vou. — Asuka se sentou, ajeitando o cabelo atrás da orelha.
Eles estão mais próximos.
Kazuo abriu sua bolsa e retirou seu bentô, Asuka o acompanhou, abrindo sua mochila que estava ao lado.
…
Poxa, ele podia ter me chamado pra ir almoçar com ele… Espera!
Yui olhou por uma janela do corredor, vendo distante Kazuo e Asuka sentados sob uma grande árvore. Ah! Ele está lá mesmo! Mas… aquela é a Asuka-san, né? Nossa… ele nunca iniciou uma conversa comigo, mas já estão tão íntimos assim?
…
Kazuo retirou a tampa de seu bentô, e a apresentação não poderia estar melhor. O cheiro de carne grelhada e camarão empanado chegou até Asuka sem cerimônia. Ele pegou seu hashi, pronto para começar a comer, porém…
— N-Nossa, sua mãe cozinha muito bem! — Asuka olhava o bentô, com a feição um pouco encantada.
Kazuo parou, abaixando um pouco o olhar.
— Fui eu que fiz.
— Sério?! Nunca imaginaria que você seria tão bom na cozinha. — Asuka repentinamente ficou empolgada.
— Você não acha estranho um garoto ser tão bom nisso? — Kazuo deu um sorriso, olhando de soslaio para Asuka.
Ela arregalou um pouco os olhos, surpresa, mas logo não segurou a risada. Com o rosto levemente vermelho, Asuka colocou a mão na boca tentando abafar seu riso.
— Isso nem foi tão engraçado. — Kazuo sorriu sem graça.
Ela conseguiu parar de rir pouco a pouco, passando a mão nos olhos lacrimejantes.
— Fazia tempo que eu não ria assim. — Asuka analisou o chão, com um sorriso no rosto, e então se virou para Kazuo. Eles se olhavam nos olhos. Isso pareceu tão real… Acho… acho que eu posso confiar nela… Não, a pessoa que era pra ser a mais confiável acabou com tudo.
Kazuo endureceu o rosto, repentinamente suas sobrancelhas arquearam e ele virou a cabeça, olhando qualquer outra coisa. Asuka estendeu a mão, parecendo prestes a falar algo, mas no final sua boca se fechou e ela não disse nada. O clima seguiu tenso, até que Asuka abaixou o olhar.
— Você pareceu ser diferente. Todos sempre reagem estranho quando eu fujo daquilo que acham que eu sou. Eles olham para mim, criando a expectativa de uma pessoa perfeita, ou da garota rica e arrogante, mas quando eu mostro quem realmente sou, eles simplesmente se afastam.
— Não é isso… Você pode ser quem você é perto de mim, ou melhor, deve. Se você sente que vai afastar as pessoas, então faça o que quiser, só saiba que eu não vou ficar decepcionado por descobrir uma personalidade diferente da qual pensei. — Kazuo encarou Asuka com uma profundidade e sinceridade que a deixou um pouco espantada.
— E-Eu… Eu…
— Aconteceu uma coisa… e agora eu tenho dificuldade em confiar nas pessoas, então não é sua culpa. Mas, eu gostaria de poder… confiar em você.
O que eu estou falando?!
— K-Kazu…
— Kazuchi! — Uma voz feminina interrompeu Asuka.
Yui se aproximou, com a mão levantada, fazendo um aceno.
Asuka olhou para o lado, esfregando os olhos discretamente.
— Ah, Fujioka-san. — Kazuo olhou a garota de cabelos rosa, que veio do prédio atrás dela.
— Seu nome é Asuka-san, né? — Yui olhou para Asuka.
Ela assentiu com a cabeça.
— Eu sou a Fujioka Yui, prazer em conhecê-la. — Yui sorriu gentilmente.
— Muito prazer, Yui-san. — Asuka retribuiu o gesto.
— Kazuo-kun, seu bentô está ótimo como sempre. — Yui se inclinou, rindo intencionadamente.
— Acho que não tem jeito, vem aqui perto. — Kazuo pegou um camarão e levou até a boca de Yui.
Ela começou a comer, então seus olhos verdes brilharam em outro nível de satisfação. Asuka apenas observava os dois.
— Ah! Estava muito bom, você é o melhor que eu conheço, Kazuo-kun.
Acho que eu vou poder comer agora, finalmente.
— Você não vai dar à Asuka-san? — Yui olhou para a garota, e logo Kazuo também.
— O que? Eu? N-Não se incomode. — Asuka balançou os braços em negação.
Kazuo apenas levou o bentô até ela, estendendo o braço.
— Pode pegar.
— Tá… Obrigada.
Asuka pegou um camarão e levou até a boca. Seu rosto clareou por um momento, um suspiro surpreso veio antes de um instante em silêncio.
— Nossa! Está delicioso.
O final do horário de almoço se aproximou, e Kazuo já havia terminado de comer.
— Asuka-san, você vai embora sozinha? — Ele fechou a bolsa, terminando de guardar tudo.
— Não, vem alguém me buscar.
— De carro?
— Sim.
— E você, Yui-san? — Kazuo direcionou a palavra à Yui.
— Yui-san? Eba! — Ela levantou as mãos, comemorando alegremente.
— Cof… Então?
Essa Yui…
— Eu vou sozinha. Continuo pegando metrô.
— Hm… Me espere a partir de hoje, eu vou com você até a estação.
— Sério?! Eu sempre soube que você era muito gentil, Kazuo-kun, as pessoas só não conversam com você o suficiente pra perceber. — Yui chegou mais perto de Kazuo, com um sorriso.
É muito bobinha…
— Eu sou gentil com quem merece gentileza. — Ele deu um “tapinha” na ponta de seu cabelo rosa.
— E-Ei!
— É-É… Que tipo de relação vocês dois têm? — Asuka forçou uma pequena risada para quebrar a seriedade da pergunta.
— Somos colegas.
— Somos amigos.
Eles responderam quase que no mesmo instante. Yui olhou para Kazuo, brava.
— Continuando, seria perigoso você ir até a estação sozinha, então eu vou te acompanhar.
— Mas você não mora pro lado contrário da estação?
— Não tem problema, eu volto de bicicleta. É pior pra quem tem que andar. Asuka-san, tome cuidado, você comentou à um tempo que mora no centro da cidade. Eu estive analisando as mortes desse assassino, e parece que tem alguns pontos específicos na cidade que ele prefere atuar. E o centro é um deles, talvez por causa dos becos…
— Sim, eu vou tomar cuidado, obrigada pela preocupação. — Asuka arrumou o cabelo atrás da orelha. — Você é bem esperto, Kazuo-san.
— Só fiz o dever de casa. Enfim, está perto da hora de voltarmos pra sala. Vamos indo? — Kazuo ficou de pé, colocando a bolsa no ombro.
— Vamos. — Yui e Asuka se levantaram, acompanhando-o.
No primeiro ano, eu estava praticamente isolado, ninguém falava comigo, um completo anti-social. Eu não me abria pra ninguém, e muito menos conversava. Estava focado em estudar e só isso que eu fazia na escola.
Ainda tento descobrir o porquê, mas um dia, Fujioka Yui tentou puxar conversa comigo, mas falhou como todos os outros. A diferença é que no dia seguinte ela tentou de novo, e mesmo falhando, mesmo ouvindo dos outros que deveria desistir, ela tentava todos os dias, sem se importar com as coisas rudes que eu dizia pra ela. Talvez ela só seja idiota, mas a verdade é que essa garota conseguiu quebrar um pouco da minha defesa, porque olhando agora, eu vejo que não sou mais o mesmo. Algo dentro de mim está querendo confiar nas pessoas novamente. Não sei se isso é bom ou ruim, mas agora eu quero ser recíproco com a Yui, quero recompensar seu esforço em tentar ser minha amiga. O que eu preciso ter certeza é de que ela não está fazendo isso por causa de algum interesse egoísta.
O sol já estava se preparando para repousar no horizonte, iluminando suavemente a cidade sob um céu carmesim, deixando em uma maior escuridão, os becos.
Uma pequena jovem olhou para trás, vislumbrando rapidamente a rua vazia que deixou em sua corrida exaurida e desengonçada, entrando na viela. Ela corria sem rumo, apavorada. Por um momento, a garota pensou que despistou aquilo que estava perseguindo-a, porém…
— Ha ha ha! — Uma risada psicótica ecoou no beco.
Ela era tão perturbadora que um calafrio percorreu toda a espinha da jovem. Seu medo a deixou cega, não vendo a caçamba de lixo à direita. Ela chocou metade do corpo, caindo no chão de concreto, arranhando os braços.
— Hã? — Uma voz confusa com a situação ressoou no ambiente.
A menina começou a soluçar. Olhando para trás, ela via apenas uma máscara branca se aproximando, sob um capuz negro. A face branca possuía uma enorme boca que ia de uma orelha a outra, com dentes pretos. Narinas semelhantes às de um crânio, e olhos profundos e vazios, com um grande contorno negro.
Lágrimas escorriam dos olhos da jovem, enquanto ela encarava aterrorizada a brilhante lâmina na mão do mascarado.
— Achei que você ia durar mais. Que pena, estava tão divertido. — A voz sádica apenas desesperava a garota ainda mais.
O dono da máscara se aproximou lentamente da jovem caída, seu uniforme preto estava sujo, e seus pensamentos, estáticos. Ele agarrou seu cabelo castanho, e a puxou para cima, levantando-a. Ela estava com as pernas e os braços encolhidos, sentindo a dor ardente dos arranhões e dos fios de cabelo sendo puxados e arrancados do couro cabeludo. A garota tentava suportar a dor e o cheiro podre que vinha do desconhecido, apertando os olhos.
— P-Po… P-Por favor… — O choro quase a impediu de pronunciar algo compreensível.
— Cala a boca! — Um berro abafado pela máscara ressoou na viela.
A jovem soltou um grito de susto, protegendo o rosto com os braços.
O homem guardou a faca, então levantou sua mão, puxando a máscara um pouco para cima, deixando sua boca à mostra. Ele agarrou um dos braços da garota, afastando-o bruscamente, então lambeu o seu rosto do queixo até os olhos.
A jovem se encolheu ainda mais com o rosto contraído, sentindo o cheiro horrível da saliva do homem, além do fedor insuportável que vinha debaixo do sobretudo negro.
— Delicioso! — O peito do mascarado palpitou com o gosto salgado das lágrimas em sua língua.
Ele pegou a arma novamente. Levantando a camisa da jovem com a ponta da faca, o desconhecido a encarou, exibindo sua pele branca. Ele encostou a ponta do aço gelado em sua barriga. A garota não conseguiu segurar mais o desespero depois de sentir a ponta fina da faca pressionando sua pele frágil e macia, começando a machucar.
— N-Não! Por favor! — Ela agarrou sem forças o pulso do homem, tentando afastar a faca de si. — Eu não quero morrer!
Um guincho de dor ecoou na viela após a primeira estocada, assim, repetidos sons de apunhaladas e suspiros sufocados soaram ali, além dos ruídos finais de luta da garota, que após algumas facadas, começou a ficar mais lenta e mais fraca, mas ela tentava não desistir.
O dono da máscara relaxou a mão, deixando a menina cair no chão como se fosse um peso inútil, assim, à medida que o sangue se reunia em uma poça, empapando o tecido preto da camisa, os olhos castanhos da garota perdiam a vida.
— Stabo não está satisfeito.