O Velho Novo Mundo - Capitulo 0
O Velho Novo Mundo
Capítulo 0 – Inízio
Onde estou? Há fogo por toda parte, o cheiro de fumaça, ferro e um amargo odor de carne queimando permeiam tudo, acompanhando o fogo e a destruição. Não consigo ver muito; a fumaça é espessa. Vozes gritam ao fundo, conheço algumas dessas vozes, e meu coração dói a cada grito ouvido.
Meu corpo está cansado, muito cansado; o calor está prestes a me fazer sucumbir completamente. Com dificuldade, consigo ver uma silhueta por dentro da fumaça; ela parece falar comigo.
— Damiano, é você? Estou com medo — pergunta a voz, fraca e se esvaindo.
Tento responder, mas sinto uma mão me agarrando e puxando-me pela camiseta, levando-me para longe. Aos poucos, fico mais cansado e acabo perdendo a consciência.
— De novo — diz Damiano ao acordar de mais um sonho indesejado.
Da cama, ele olha seu quarto bagunçado: garrafas jogadas, baratas por toda parte e roupas sujas espalhadas pelo chão. A madeira já mofada exalava um odor pouco agradável.
“A festa ontem foi boa, pena que não lembro de muita coisa… Puta merda, tô atrasado!”
Damiano se levanta, vai até a pia que fica num dos cantos do quarto e começa a fazer a barba em frente ao espelho sujo. A lâmina de barbear passa pela sua pele bronzeada, derrubando os fios quase loiros de sua barba. Pela pressa causada pelo atraso, ele acaba se cortando e, sem tempo e sem curativos, decide ir mesmo assim. A família estava o chamando, afinal.
Ele coloca a roupa menos suja da pilha nojenta do quarto: uma camisa social branca sem gravata, uma calça de alfaiataria azul, além dos sapatos baratos que vestira rapidamente.
O conjunto, mesmo barato e de qualidade menor, se alinhava bem no seu corpo esguio e de altura mediana.
Ao sair do quarto e, logo após fechar a porta, um frio na espinha o atinge. A luz da lua iluminava as ruas vazias de Palermo. Ele havia dormido da madrugada de ontem até essa noite.
“Eu deveria ter visto a previsão do tempo antes de sair do quarto”, pensou ele.
Estava frio, o que na Sicília é raro. O frio era tanto que havia até mesmo se formado uma densa camada de névoa. Unindo isso à missão dada a ele e à guerra entre as famílias, Damiano estava um pouco tenso e paranoico.
Ao andar pelas ruas de Palermo, Damiano estava prestando atenção a cada passo. Ele estava tão tenso e saiu de casa com tanta pressa que nem havia percebido que havia deixado o seu celular em casa.
“Esse maldito remédio tá me deixando esquecido. Vou parar de tomar essa droga depois desse trabalho e ir num médico logo.”
Durante o caminho, ele vê um grupo de jovens estudantes de uma escola particular próxima. Rapidamente, pensa em como conseguir um celular novo.
Quando o plano já havia sido bolado em sua cabeça, em segundos, surge uma figura barbada do meio da neblina: o capodecina. Ele veste um terno negro e um sobretudo preto. Em sua cabeça, cobrindo seus olhos, havia um fedora acinzentado.
Ao aparecer logo à frente de Damiano o homem e a sua presença o fazem desistir do seu plano imediatamente.
— Você está atrasado, garoto — diz a figura, tirando um charuto do bolso e o acendendo. — Está com sorte de eu não ser um dos homens do Ricci. Vamos, o trabalho pode nos esperar para sempre, mas logo começará a feder, e eu não gosto de mexer em defunto podre.
Damiano acena e segue a figura. Ele evita falar, pois sua garganta estava terrível, e nem muitas garrafas de whisky e remédios conseguiram ajudá-lo na noite anterior.
Eles caminham durante alguns minutos até chegarem a um píer silencioso. Logo quando chegaram, Damiano percebe que os outros que deveriam estar ali não estavam.
— Carlo, onde estão os outros?
Carlo inicialmente pareceu ignorar a pergunta do novato, mas, após desamarrar as correntes que mantinham o portão do píer fechado, ele veio com a resposta.
— Eles devem estar atrasados, é o que eu espero — diz Carlo enquanto se aproxima de Damiano, assustando-o um pouco.
Ele entrega um revólver para Damiano e pede para que ele o siga. Ele guarda a arma e segue Carlo rapidamente.
Eles encontram no píer quase abandonado o veículo que usariam para concluir a tarefa: um barco quase em pedaços. Ao entrarem no barco, Carlo assume o leme.
— O nosso sócio está no deque inferior. Vou pilotar o barco e, ao chegarmos no mar internacional, você sabe o que fazer.
Damiano desce até a parte interna do barco, onde o cadáver havia sido posto. O cheiro de podre já estava por toda parte e parecia queimar o nariz de Damiano.
“Que cheiro horrível! Isso já está podre faz algum tempo, o maldito do Carlo já sabia disso, desgraçado, por isso foi foi pilotar, deixou a pior parte comigo”, pensou ao descer os degraus.
Logo, chegou até o corpo, que fedia mesmo embalado por vários sacos pretos.
“Cacete, só não vomitei porque não tenho nada para vomitar”
Sem muitas opções, Damiano agarra o corpo e o põe nas costas, levando-o ao deque de cima. Ao chegar na parte de cima, seu corte de quando havia feito a barba começa a sangrar.
Após um pequeno gemido de nojo ele ignora isso e continua a carregar o saco, jogando o corpo no convés pouco atrás do leme onde Carlo estava. Ele larga o timão e olha para Damiano.
— Achei que o frio ajudaria a atrasar a decomposição. Pelo jeito eu Estava errado — diz Carlo
enquanto ri.
Damiano ri com ele, e já vem com a resposta.
— Se você acha ruim assim, imagine ter que subir com ele nas costas, hahaha!
Carlo concorda com um sorriso. E, ao perceber o sangue no rosto de Damiano, oferece a ele um lenço que havia em um de seus bolsos. Damiano aceita, mas percebe algo de estranho: o lenço entregue por Carlo estava sujo de sangue, e ele não estava ferido…
Juntando isso aos pesos extras no deque inferior e ao fato de que estavam agindo sozinhos o que não era comum nesse tipo de missão. Damiano decide confrontar Carlo, mesmo podendo estar errado.
Damiano saca rapidamente o revólver dado a ele, mas Carlo já estava preparado e, ao puxar o cão, Damiano percebe que o peso do seu revólver estava muito leve, e ao checar a câmara, ela estava vazia.
“Maldito remédio, esqueci de checar.”
Carlo saca o seu revólver e o aponta para Damiano. E pela primeira vez, Carlo olha em seus olhos.
Os olhos de Carlo mostravam sua determinação, mas sem culpa ou felicidade.
Os olhos azuis de Carlo refletiam bem os olhos verdes de Damiano, que diferente dos de Carlo, mostravam arrependimento e tristeza, mas sem ódio.
— Bom, acabou para mim. Me diga, foi a família que te ordenou ou está com o Ricci? Na verdade, quem se importa? Faça o’que deve fazer!— exclamou Damiano com seus olhos sérios e desolados.
Carlo olha para o garoto na sua frente, um jovem, com poucas cicatrizes, e sente um pouco de culpa. Ele então diz ao menino à sua frente:
— Sinto muito, garoto. São só negócios.
Damiano fecha os olhos para evitar pensar. Ele ouve o barulho do cão sendo puxado e, com um estrondo, a bala atravessa seu peito, rasgando sua carne e perfurando-o, explodindo o seu coração.
Sua face, antes calma, agora estava preenchida por medo e terror. O jovem cai quase imediatamente, mas consegue se arrastar pelo convés em direção ao mar. Infelizmente, suas forças não duraram muito.
“O mundo nunca soube quem sou, como vivi. E nunca saberá como morri. Não era para ser assim. Por favor, Deus, me perdoe! Me dê outra chance!”
Uma lágrima cai de seu olho e desce em seu rosto agora sereno. Quando ela toca o chão, seu corpo já estava sem vida.
A consciência de Damiano flutua no vácuo do nada perpétuo. Ele não consegue falar, pensar ou se mexer, só observar o fim.
O jovem não sabia, mas era assim que aquele lugar se chamava: O fim. Não havia nada, nem mesmo escuridão, pois não se tratava da ausência de luz. Era a ausência de tudo e de todos os conceitos.
Só havia Damiano naquele infinito, mas mesmo sendo claramente o único ali, ainda ele pudesse sentir que havia algo com ele.
Ele permaneceu nessa tortura por muito tempo. Na verdade, não. Afinal, o tempo não existia. Havia apenas o momento. A tortura continuou por incontáveis momentos infindáveis. Até que finalmente algo pode ser ouvido.
“Ò Criança de Aphoestus, Seu julgamento acabou. Você como um fugitivo do destino deveria ter morrido em outro momento, mas fugiu do predestinado então te darei outra chance. Sua honra virá agora.”
Damiano, ouve aquelas palavras e vê que finalmente estava recobrando os sentidos. Sua mente estava voltando ao normal e parecia que ele poderia se mexer, mas não parecia precisar respirar.
De repente, uma dor surge de dentro de seu corpo, queimando-o por dentro e aos poucos seu corpo se tornava acaba se cinzas.
Ele olha ao redor desesperado enquanto sua mente ardia junto ao corpo. Ao olhar para baixo, Damiano vê um mundo gigantesco. Ele era feito de terra e água e lembrava seu planeta.
A sua mente já se esvaindo agora recebia um novo suspiro pela familiaridade da imagem. Ele olha ao redor novamente e em seus últimos momentos, Damiano pôde ver o que esteve atrás dele durante sua tortura.
Um falcão, grotesco e belo, feito de sangue, carne e pura energia dourada, que habitava dentro de toda matéria orgânica, mas que conseguia escapar da grotesca camada de carne e sangue por meio de raios de luz. O olhar do falcão era belo, antigo e vazio, mas permeava por dentro de tudo isso, uma raiva, uma ira que incendiava corações só com o olhar.
Damiano aos poucos desaparece virando cinzas e desaparece, suas cinzas vão na direção do mundo que havia visto anteriormente, ele poderia não saber ainda, mas aquele era o seu mesmo mundo. O mesmo mundo onde teve um fim sem honra e que agora, assim como ele, teve uma segunda chance.
O planeta havia sido reconstruído, começando tudo do zero, virando assim a caixinha de areia de Deus.
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Obrigado por lerem.
*Fedora: um tipo de chapéu, muito utilizado pela máfia italiana.
*Um tiro no coração é considerado uma forma de respeito, ao contrário de um tiro na face ou cabeça.
*Capodecina é um cargo muito comum na máfia italiana, ele está acima dos soldados e os comanda.