Purificação - Capítulo 13
Capítulo 13 – Ajuda:
Charlie se perguntou se de fato alguma vez em sua vida ele não tivesse se sentido um covarde. Talvez o beisebol fosse um reflexo do quanto era ansioso em jogar os problemas pelos ares e correr, correr para qualquer lugar longe dali, o mais rápido que podia, somente para voltar para o mesmo ponto (touchdown! O narrador em sua mente dizia).
Veremos. Na pior das hipóteses, a primeira pessoa que abrisse aquela a porta e fosse ágil o suficiente para desviar do tombo da estante (que era pesada, mas não o suficiente para causar qualquer dano), poderia simplesmente meter uma bala na testa dele se estivesse armada ou chamar por ajuda. Já que essa maldita família parecia não ter fim, então ele começaria a correr até que algum tiro o atravessasse.
Tentara abrir a porta sem sucesso e a única coisa de que tinha certeza era que estava em um local aberto, pois a brisa que entrava através das frestas da porta de metal era forte. Também percebeu o som das primeiras gotas de orvalho caindo de forma desorganizada e dissonante em alguns momentos, provavelmente provenientes do acúmulo de água nas folhas das árvores que cediam pelo peso ou curso do escorrer entre sua estrutura. Estavam em uma floresta, ou um bosque.
Ele poderia fugir lutando, mas não chegaria muito longe, o braço direito estava latejando por causa do frio e a ferida começava a sangrar sempre que ele fazia algum esforço, e não havia como fazer um torniquete descente. Pensou em Sarah, na Rebecca, na voz das crianças, Jacob já deveria estar a caminho, eles estavam se arriscando muito e na pior das hipóteses, se houvesse envolvimento de alguém no departamento que tentasse apaziguar a situação, caberia ao companheiro e ao amigo de Sarah, Jimmy, pedir interferência das cidades vizinhas e polícia estadual, além de superiores intermunicipais. Se ainda assim não fosse o suficiente, a nota de desaparecimento e a coincidência dos fatos dariam uma bela matéria na primeira página da New Express, e depois disso, não demoraria até que os federais entrassem no caso. Porém, nas três situações seus corpos estariam fedendo em um ninho de larvas quando a ajuda chegasse.
Porra, você é um policial e tem histórico atlético, dá pra fazer alguma coisa, Charlie. Ele descobriria isso já já, pois conseguiu ouvir sons de passos se aproximando através do chão lamacento. Não sabia se eram mais de um, se fosse, ele morreria, mas ao menos com uma luta. Não quis prestar atenção para ter certeza, de quê adiantaria? No final das contas, era hora de contar com a sorte.
Os sons de gotas de chuva que caíam como lágrimas lamuriosas lá fora e o de gotículas que vinham de encontro ao telhado de ardósia da sala em que se encontrava formavam a trilha sonora perfeita, como se tambores de chuva (do céu nublado) e sangue (das batidas provenientes do seu coração, cada vez mais acelerado) preparassem o ambiente para uma reviravolta, a ascensão ou a queda de uma peça no teatro da vida.
Tuc, tuc, tuc, splash, tuc, tuc, splash. O giro da maçaneta nunca foi tão perturbador, as ferrugens gritando para quem quer que estivesse abrindo: Sai daí! Sai, anda logo! Por fim, o girar que mais pareceu uma translação em volta do Sol concluiu-se, e o vento forte veio de encontro ao rosto de Charlie, banhando-o de assombro ao ver a sombra que se projetava ali dentro. A porta rangeu enquanto a figura entrava despreocupadamente, falando qualquer coisa:
— HI, HI, HI, voou pra tooooca dooo cooelinho… coooelinho?
Charlie estava atrás da porta, com um empurrão, encurralou a figura (quase duas vezes o seu tamanho) dentro da sala que pulou de susto, tamanha foi a rapidez do policial.
— Coooeelinho! Vooolta praa toooocaaa!
Charlie não iria voltar. Com um puxão fez a corda que estava atada a estante adjacente a eles cair em um rápido e maciço tombo. Desviando por pouco e evitando ficar preso entre as esparsas linhas de prateleira que apresentavam os incríveis produtos da sua loja do nada. Agora, um desses produtos era Bob, a cabeça entre duas prateleiras. Olhou no fundo de suas pupilas e encontrou um monstro aterrador, sua boca babava de raiva, a boca de dentes podres e tortos silvou:
— O COEELINHO VAAAI SE ARREEPENDER.
Bob estava preso e sem mobilidade para qualquer ataque, mas Charlie sentiu um súbito estado de pânico, quando se encontra cara a cara com um urso em uma caminhada na trilha da floresta, quando, com a cabeça e braços entre as prateleiras, ele se levantou e levantou junto a estrutura, lançando um soco tão forte na boca do estômago de Charlie que por um momento ele perdeu as forças, caindo para o lado achando que não iria respirar mais, torcido como um feto em fuga de uma agulha de aborto em um útero há pouco tão tranquilo, agora tão conturbado.
O mundo girava ao seu redor, ele estava realmente fraco, mas percebeu. Ele tem a porra de um revólver, por que não usa? Burro demais ou não, Charlie não arriscaria chegar perto dele para tentar outorgar a arma nem se estivesse em seus melhores dias. Bob não parecia ao menos gaguejar ou hesitar em sua voz que agora fazia o escárnio do velho Robbinson parecer uma menina de doze anos do ensino fundamental:
— O COELINHO VAI PERDE AS PATAS, COELHINHO MAU!
Jesus Cristo. Charlie achava que tinha sorte em terem mandado Bob ali, ainda mais sozinho. Estava errado, como quase tudo em sua vida. Não só não conseguiria escapar como o doente acabaria torturando-o até agonizar de dor, e quando o momento chegasse ele estaria chorando de tristeza lamentando-se pelo fato de não ter sido outra pessoa com revólver, uma bala acabaria com aquilo muito mais rápido.
Bob começou a andar com estante e tudo para cima de Charlie, o barulho das vigas da estrutura traçando o corredor da morte (pior, tortura) de um policial que seria encontrado aos pedaços semanas depois. Nem os próprios Robbinson sabiam o monstro que tinham. Charlie lutava para recobrar a consciência, mas estava afundando em um mar de dor. Pensou em desistir, talvez seja melhor, no final das contas.
Esse sempre foi o seu lugar, o fundo, mas agora não era mais o mar, a água tornou-se escura, e tijolos o rodeavam, lá em cima, apenas um céu azul contornado por uma escuridão opaca. Teve vontade de rir. O fundo do poço, afinal. Foi quando viu o rosto de Rebecca e Sophia lá em cima, olhou para baixo e viu que em seu corpo estavam acorrentados Alex, Laura, Lucas, e ao seu lado, algemada junto a ele, estava Sarah. A voz de Jacob de alguns dias atrás veio em sua mente de novo:
[– Ela é sua filha, cara, e o que precisa é de um pai…]
[Ela não é a minha filha, imbecil]
Afinal, isso realmente importava? Se fosse verdade, todos os momentos felizes que aquela carinha rosada e fofucha olhou para ele e a felicidade que sentiu deixaram de ser reais? Olhou novamente para cima, vendo o rosto da filha, encarando os… os lindos olhos azuis…
[– Ela só não sabe falar papai – a voz de Rebecca voltou à sua mente]
Ela vai saber, oh, ela vai. Charlie começou a se arrastar para o canto da sala quando Bob chutou sua perna direita, sentiu os músculos estalando por dentro, mas não iria voltar. ¨COELINHO FEIO, FEIO, VAI PERDER AS PATA!¨ Charlie segurou a corda que estava atada a estante e puxou com toda a força que conseguiu, enquanto sentia a ferida no seu braço direito abrindo-se como um verdadeiro abismo. Bob se desequilibrou. O revólver, vai ter que ser.
Charlie partiu em riste, o soco veio tão repentinamente que Bob não conseguiu pôr o braço na frente do corpo a tempo (lá vai ele, senhoras e senhores, o menino Charlie não para!), o clac do nariz entrando no próprio rosto dele e esguichando um borrifo de sangue não deu ao menos o tempo de fazê-lo gritar.
Charlie enfiou a mão entre as prateleiras enquanto Bob recobrava à consciência com as mãos no rosto. Pegou o .38 do coldre e apontou na direção dele… parou no último instante… se eu atirar, estou morto… mas isso pouco importava, Bob não se abalou à presença da arma e segurou sua garganta como um açougueiro segura o contrafilé que está prestes a degolar.
Não tinha jeito… ¨COELINHO MAU, COELHINO MAU¨ (senhoras e senhores, a bola já está fazendo a volta no campo de novo! Ele tem poucas chances de vencer, o que acha, Bran? – outra voz se sobrepôs no microfone de sua mente, era Brandon – olha, eu não sei não, esse soco foi bem impactante, e olha que entendo de socos do Charlie, em? – a arquibancada caiu na risada, todos os moradores bisbilhoteiros de Dawn City apreciavam a partida e os comentários. Bran continuou. – não há como ter certeza de mais nada)… Charlie atirou. Click, click, click… sem munição, o ar escapava de seus pulmões (o Mister Robbinson ria), não vou conseguir (a arquibancada arquejava, mas não havia torcida, nunca houve)…
[– Ela só não sabe falar papai…]
Charlie jogou a coronha do revólver contra o nariz repartido de Bob, que grunhiu e fraquejou, permitindo a captura do ar que anunciaria se essa batalha seria ou não em vão. Puxou a corda e pulou sobre Bob, entre as prateleiras, derrubando vários produtos da loja do nada. A corda áspera dançou junto ao ar enquanto se prendia ao pescoço sujo e encardido de Bob. As veias começaram a saltar da testa dele, que começara a se debater à procura de ajuda, Charlie podia jurar que o ouviu implorando ¨MÃE¨. Lá fora, um raio caiu. Bob tentou segurá-lo, enterrando as unhas sujas dentro da ferida de Charlie, que uivou de dor.
[– É a sua filha? – era Sarah]
[– Eu não tenho filha. – era ele]
Não, estou errado nisso também. Eu tenho, ela vai completar quatro anos e é coisa mais fofa desse mundo, os olhos azuis… os olhos azuis… Charlie desistiu de fazer força, se pudesse desistiria até de respirar, tamanho era o seu cansaço. Parecia que Bob havia desistido também… para sempre dessa vez…
A porta de trás se escancarou:
— Bob, tu demora pra cacete, em? Eu… mas… que porra é es –
Charlie pegou o revólver, era Robb, se ele soubesse que a arma não tinha munição, estava tudo perdido. O policial apontou na direção dele, ainda estava cansado e foi uma luta para se levantar.
— Meu irmão, o que você fez…
— CALA A BOCA E AGACHA… DE COSTAS…
Todos tem medo de alguma coisa, disso ele sabia. Robb virou-se, lá fora, um bosque, não era uma despensa, agora ele via com clareza, devia ser um depósito. Charlie não hesitou:
— ONDE A GENTE TÁ?
— Extremo norte, mais um pouco e vamos dar em Courter Town…
— A ROTA, PORRA!
— Quarenta e dois… escuta, não vai adiantar, isso é maior que você pensa, você tá muito fudi…
— CADÊ ELES?
— Eles quem?
A coronha voou na nuca dele, fazendo-o cair de dor:
— CADÊ ELES?
— No oeste, próximo da cabana, do lado do galpão, mas tem muita gente…
— QUANTOS?
— Sei lá, umas quinze pessoas pelo menos.
Charlie olhou de relance, Bob realmente não se levantaria.
— Não vai adiantar, você vai morrer se tentar fugir…
— Eu também achava, mas eu costumo estar errado.
Enterrou o calcanhar em um salto na mandíbula de Robb, que se foi tão repentinamente quanto o irmão. O coelho saiu da toca.
Momentos antes…
Sarah achava que Laura estava na pior. Viu que estava errada quando olhou para Lucas. O rosto do menino estava coberto de hematomas e cortes, sua testa e nariz estavam tão inchados que fê-la se lembrar do Mr. Wabbles, um brinquedo de infância. Laura estava atrás de si, apreensiva. Sarah estava de costas para ela, e não conseguiu conter as lágrimas, que desciam pelo seu rosto como as gotas de chuva que caíam fora dali.
— Jesus Cristo – aproximou-se de Lucas, que respirava em um tênue e fraco assobio. Foi quando esbarrou no cadáver de Marley. Um arquejo a fez tropeçar ao ver os olhos dO cachorro abertos, olhos de dor, as patas ausentes jogadas para o ar, a carne do pescoço totalmente dilacerada. As lágrimas vieram com mais força.
— Moça?
Deus, por que você é tão cruel, porra? Sarah espantou-se com a coragem e a resiliência que permitiu às crianças conseguirem manter-se lúcidas. Sarah, você é novo alicerce deles, respira, porra, respira. Ela o fez. Precisava averiguar o estado de Lucas, então levantou e passou por cima de Marley com o maior cuidado.
O inchaço era tamanho que os olhos pareciam bolas de golfe, Sarah tentou tocá-lo, confortá-lo. Antes de dizer qualquer coisa, o menino acordou em um susto, pressionando o corpo contra a parede com tanto vigor que ela imaginou por um momento que de fato ele conseguiria unir-se aos tijolos, a voz rouca:
— ÃÃÃN, NÃO, PÔ FAVOR!
Respira, Sarah, respira.
— Lucas, tá tudo bem, sou amiga de Charlie, tá vendo? – foi quando percebeu que o inchaço era tão grande que ele mal conseguia abrir os olhos, o sangue preso em seu rosto. Ele respondeu:
— Tia… pô favor, tem água?
— Não, querido, não tenho.
— Tia… fala pra mamãe que eu amo ela, tá?
Respira, Sarah, respira, se você fraquejar, já era. Era como aquela vez, o policial perguntou: ¨querida, eu preciso da verdade. O que ele fez?¨ ela queria dizer alguma coisa, mas não saía, não era sobre medo, era sobre coragem, nenhuma vítima que passa por abuso é medroso, Sarah descobriu que são as pessoas mais corajosas do mundo, passar por um abuso e se manter resiliente era sinônimo de não ter medo, ou ter forças para encará-lo de frente, agora, a coragem para tomar uma atitude, isso era outra história.
A coragem faltou a ela depois de anos. As palavras ficaram presas em sua garganta, como se uma bigorna estivesse pendurada em sua mandíbula, e não permitisse qualquer gesticulação. Por sorte, Laura tentou ajudá-la:
— Tá tudo bem, Lucas. A gente vai dar um jeito, a gente sempre dá.
A menina era corajosa, ela falara exatamente o que sua mãe havia falado após a prisão do pai. ¨A gente vai dar um jeito, a gente sempre dá¨. Respira, Sarah…
[– Por mais difícil que esses momentos sejam, saibam que vocês não estão sozinhos…]
Estou com deus, Sarah pensou em deboche.
[– Senhora, você acredita em deus?]
Agora ela sabia a resposta que daria, não tinha coragem de admitir isso na palestra pois estava com medo do que os outros pensariam dela. Mas dentro da mente não há um público, no final das contas, era somente ela, e a garota que perguntara transformara-se por algum motivo em Lúcia. Ela tinha a resposta: Eu odeio deus, garota. Até quando as pessoas vão achar que ele gera algo de bom em suas vidas? No final das contas, estamos fadados a nós mesmo, assim como Dante.
Estava começando a divagar, mas o choro de Lucas a trouxe de volta, como a verdadeira Sarah:
— Lucas, você mesmo vai dizer isso pra sua mãe. A tia Sarah vai tentar dar um jeito, ok? A delegacia já foi informada e tem muita gente procurando.
Olhou para o lado para ver Alex, estava sentado com a cabeça apoiada nos joelhos e encarando como uma múmia o cadáver do cachorro, parecia murmurar algo repetidas vezes, catatonia. Sarah frequentou cursos de psicologia e abordagem em situações de estresse e sabia que não era incomum esse tipo de caso, a única forma de trazer uma pessoa de volta era tirá-la do abismo. Lucas primeiro, Sarah, depois ele.
Lá fora, um raio caiu.
— Lucas, preciso que você fique preparado para correr, eu sei que você tá cansado, mas a tia precisa que você seja forte mais uma vez, tá bom? Laura, você ajuda ele e a tia…
Laura aquiesceu, e Lucas disse:
— Tá bom, moça… tá bom…
Sarah procurou na mesa algo que poderia usar, havia a haste de um serrote jogada no chão, mas estava cega e enferrujada. Talvez houvesse outra ferramenta que poderia utilizar, então ela procurou nos suportes, as chaves de fenda haviam sido removidas, bem como a maioria das ferramentas, o que deixava a sala sem nenhuma possível arma. Sarah foi de encontro a Alex, ele murmurava:
— O David, papai, ele vai sair quando?… quando?… o David…
Sarah pôs as duas mãos no rosto do garoto, o cabelo liso e negro caía e a pele estava pálida e fria, os olhos negros estavam com as pupilas dilatadas. Ergueu seu queixo até que os olhares se encontrassem, foi aí que ela disse, o mais calma que pôde:
— Ele tá esperando, o seu pai… vai poder perguntar pra ele, mas a gente tem que sair daqui primeiro… eu, a Laura, o Lucas, a gente precisa da sua ajuda, tá? Alex, olha pra mim, ouviu?
Palavras curtas, o suficiente para jogar uma corda no turbilhão de uma mente traumatizada. Alex piscou e disse:
— Quem é você?
— Sou amiga do Charlie, as pessoas já estão procurando por vocês, mas a gente precisa sair daqui, eu preciso da sua ajuda, Alex. Consegue ajudar?
Laura ajudava Lucas a se levantar. Alex disse:
— Consigo, acho que consigo.
— Ótimo – Sarah falava para todos eles agora – eles são bem maus, a gente vai ter que sair daqui a força, eu preciso que vocês me ajudem, se alguma coisa fora dos planos acontecer, corram, não olhem pra trás, corram separados. Se der certo, eu vou conseguir prender um deles, então quero que todo mundo prometa pra mim que não vai gritar nem tentar sair sozinho, tá?
— Tá bom.
A resposta veio em uníssono. Sarah sabia que se eles não mataram as crianças até agora foi pura e simplesmente por não estarem ameaçados, mas na primeira oportunidade de esconder os corpos eles matariam cada um deles. Como seus pertences não estavam ali, ela teria de se virar. Laura exortou:
— São eles, tão vindo!
Como ela ouviu? Não fazia diferença. Disse apressadamente:
— Voltem pro lugar de vocês, Laura, me dá o alicate. Não tentem fazer nada antes de mim.
A maçaneta virou. O barulho do ranger. Uma voz grave se sobrepôs enquanto a luz da noite e o vento frio invadia o interior do local, bem como das suas próprias almas:
— A gente leva o menino corredor primeiro.
Outra voz, masculina, porém mais aguda:
— A mestre Margaret disse para ter cuidado… oh, coitado… o menino não vai aguentar muito…
Então, uma sombra negra invadiu a sala, um homem (devia ser um pouco maior que Sarah) entrou a passos largos, mas o semblante era paciente. Olhava com ternura ao redor e quando encarou a carcaça do cachorro, disse:
— Mataram o coitado do filhotinho mesmo.
A voz do lado de fora respondeu:
— Aquele Bob é louco mesmo, chegará um dia em que ele mesmo desfrutará de seus atos no inferno dos doentes.
A sombra com aquele enorme manto negro abaixou-se sobre Lucas como um humano se abaixa para observar uma formiga e decide se vai matá-la ou deixá-la viver. Ele disse, balançando o corpo do menino como se fosse papel:
— Garoto, preciso que acorde. Consegue se mover?
— Não sei, tô muito machucado moço… pô favor, tem água?
— Não deram água pra você?
— Não…
— Ei, me dá a garrafa de água aí, esses Robbinson realmente não sabem tratar com educação ninguém.
A outra figura, esguia, se aproximou com uma garrafa. Respira, Sarah, respira. Alex e Laura fingiam dormir muito bem, o homem ainda não havia prestado atenção nela, em vez disso, dizia:
— Com calma… isso… só um pouco, pra não engasgar… a gente vai cuidar de você a partir de agora, tá legal? Vou te levantar…
— NÃO, PÔ FAVOR, EU NÃO VOU FAZER MAIS NADA, NÃO QUERO MORRÊ, MOÇO.
Vão levá-lo como um boi conduzido em seu caminho estrito para o abatedouro, e na pior das hipóteses, vão realmente matá-lo. Sarah precisava fazer alguma coisa, mas eram dois, e dos grandes, sua perna estava machucada, e se errasse o ataque com o alicate, um soco de um deles e o pescoço dela estaria torcido do avesso. O homem levantou Lucas. É agora, Sarah, você tem que fazer alguma coisa.
Foi quando lá fora houve um arquejo:
— Asrrgh!
O homem largou Lucas como um saco de lixo, sacou uma arma (M9A1), adotando uma postura ereta e de atenção enquanto se direcionava para a porta:
— Ei, tá aí ainda?
É agora. Sarah reuniu forças e começou a andar agachada em direção ao homem de manto, quando ele estava prestes a sair, ouviu o barulho da arfada que se dá quando está prestes a jogar algo, mas antes que virasse o pescoço, Sarah meteu a ponta do alicate em suas costas. O homem gemeu e se retorceu de dor, tentando alcançar com uma das mãos a haste, enquanto a outra mão, armada, rodava até chegar na cabeça dela. Sarah parou-a como pôde, bloqueando o manuseio da arma, as crianças estavam apavoradas.
Sarah recebeu um chute entre as pernas que a fez cair de dor, mas ela não largou a mão da pistola, que disparou quando o homem perdeu o equilíbrio e caiu junto a ela no chão, um tiro voando para a parede e por pouco não acertando Laura. Ele somente grunhiu,p levantou-se o suficiente para conseguir apoio com o joelho e pressionou a ferida na perna dela. Foi Sarah quem gritou de dor:
— Aaaargh!
O homem começou a direcionar o revólver para a cabeça dela, suas mãos tremiam e os músculos rugiam tentando fazer com que ele não terminasse o percurso mortal. Mas ele estava conseguindo, aos poucos a flecha do destino que determinaria em pólvora e sangue a sua morte estava cada vez mais próxima. Sarah começou a chorar perante a inevitabilidade da morte, da fragilidade de seu corpo em contraste à feição barbada do homem, os olhos e as veias saltando de esforço.
Acabou, é assim que termina… foi quando uma sombra clara surgiu por detrás dele, desenterrando o alicate das costas do sujeito, que arquejou e fraquejou de dor em um gemido cacofônico que mais se assemelhava a um ronco de dragão, e antes que pudesse se virar, o alicate voou em diagonal e afundou-se na carne de seu pescoço, esguixando sangue no rosto de Sarah a fazendo-o cair de lado enquanto soltava a arma e tentava estancar o sangramento, afogando-se no próprio mar vermelho. Sarah estava apavorada, foi quando uma mão de apoio surgiu no ar.
Ela segurou, e quando levantou-se com a ajuda, lágrimas de felicidade desceram pelo rosto quando viu que era Charlie, que disse com um sorriso cansado para os presentes:
— Tá na hora de sair daqui.