Purificação - Capítulo 3
Capítulo 3 – Mais um Dia de Trabalho:
– Será que eles passaram por aqui?
Foi Jacob quem perguntou. A noite estava clara, mas fria, principalmente perto do extenso lago de Dawn City, onde uma neblina esparsa percorria o ambiente e o sereno da madrugada deixava seu rosto avermelhado. Charlie só queria acabar com aquilo o mais rápido possível:
– Provavelmente, são crianças, é o que elas fazem.
Alguns voluntários caminhavam com eles em uma longa fileira. Charlie usava um casaco e toca, já Jacob continuava sem roupas de frio, mas isso não importava. A luz das lanternas abria caminho através da escuridão, como faróis que sinalizavam um porto seguro em meio a uma tempestade silenciosa, e nessa tempestade encontrava-se ele, um homem tão perdido quanto as próprias crianças.
– Depois dessa noite, vou dar uma passada na casa da Rebeca, a Sophia só tem três anos, mas é bom tomar cuidado.
– Faz bem… – disse Jacob. – duas crianças desaparecidas no mês passado na cidade vizinha, e aqui, agora tem três. Acha que há alguma ligação?
– Sinceramente, não sei, quero apenas que –
Subitamente, Charlie percebeu algo na clareira em que estavam passando, por fim, anunciou para os demais:
– EI, ESPEREM AÍ. Encontrei alguma coisa…
Charlie abaixou-se para observar melhor, era um estilingue. O xerife veio de encontro a ele, o Pastor Alemão, Zen, estava comportadamente acompanhando-o e procurando qualquer sinal das crianças através do olfato:
– O que achou, policial Charlie?
– Um estilingue, senhor. Provavelmente as crianças estiveram aqui e esqueceram o brinquedo. – Ou, não tiveram tempo de correr para se esconderem, e o desgraçado que as sequestrou não viu o objeto. Mas manteve o pensamento em silêncio, ao invés disso, disse: – devem ter ido para a estrada, senhor.
– Entendo, mas temos que nos certificar de que essa área está limpa. Zen, aqui, cheira. Bom garoto. Colete o objeto, Charlie, podemos analisá-lo mais tarde. Atenção a todos, CONTINUEM!
…
O resto da noite passou com buscas longas, Charlie teve tempo apenas de comer alguma coisa na delegacia e voltou para o apartamento quando a madrugada terminou, mas o sono não durou muito (cerca de três horas), então ele resolveu fazer algumas compras para a sua cozinha e para o jantar na casa do casal de amigos.
Enquanto ia para o mercado, ele passou pela primeira vez em muito tempo na casa de Rebeca, que um dia também tinha sido sua casa. O quintal era pequeno, mas florido e o imóvel era modesto, localizado no bairro mas externo ao centro. Andou até a porta e ali ficou, sem saber ao certo o que dizer.
Por fim, tocou a campainha. Algum tempo depois, a porta se abriu. Rebeca nem havia percebido sua presença, então continuou falando ao telefone enquanto atendia a visita:
– Não, mãe. Está tudo bem, vou levar a Sophia pra fazer um exame… – por fim, ela o viu, a agitação de antes e o semblante contagiante sendo retraído para uma cortesia fria. – mãe, tenho que desligar, te ligo depois… oi, Charlie.
– Oi, Rebeca. Eu estava indo pro mercado e pensei em dar uma passada aqui…
– Poderia ter pensado também nos quatro últimos meses. O que houve?
– Tem algumas coisas que eu queria conversar…
– Charlie, por favor, não comece…
– Não, não é sobre isso, Rebeca. Posso entrar?
Relutante, ela abriu passagem. Rebeca foi em direção à cozinha pegar algo para beber enquanto Charlie sentava-se no sofá, como um verdadeiro estranho (mesmo tendo ficado ali, abraçado com ela e a bebê centenas de vezes), no carpete, estava Sophia, com os olhos vivos e curiosos, os braços chegando próximos dele e agarrando sua perna. A voz dela o surpreendeu:
– Mamãe, ma-ma, mamãe.
Charlie ficou atônito.
– Vo-vo-você está falando!
Sophia sorriu, os dentinhos de leite já crescidos e o olhar meigo. A voz de Rebeca soou como uma faca em seu estômago:
– Ela só não sabe falar papai, mas de resto, já consegue se comunicar muito bem. Por que veio, Charlie?
Sua feição também se enevoou, e ele afastou a bebê da perna (gentilmente, mas com pressa, como se ela fosse um cão sardento que pudesse passar alguma doença contagiosa a ele). A voz manteve-se calma:
– Não sei se está a par das notícias, mas duas crianças desapareceram mês passado próximo daqui, há poucos dias algumas crianças daqui também. Sei que a Sophia só tem três anos, mas evitem ficar andando por aí ou irem ao lago (último local em que foram vistas) até que as coisas se acalmem, e se algo der errado, sabe onde me achar.
– Sim, Charlie, eu sei. O que mais?
– Bom, é só isso mesmo, já vou indo. – a voz mudou para um tom contagiante e enérgico – Tchau, Sophia! – e depois, séria como um promotor em tribunal – Até, Rebeca.
…
Quando chegou na delegacia, Charlie foi direto para o escritório e trabalhou na papelada, cumprimentou Jacob e comentou sobre os preparativos da noite. Quando estava no intervalo para o café, já de saída, ele viu Josh (outro policial e amigo de longa data) discutindo com uma moça junto a Elizabeth. A discussão já estava encaminhada, mas o que ele pôde ouvir da mulher foi:
– Então está me dizendo que eu não posso ao menos fazer uma consultoria local a fim de averiguar os fatos? Escute, Elizabeth, não é? Howard é o xerife? Então por que não posso acessá-lo diretamente?
– Escute, senhorita. – Josh estava perdendo a paciência. – Os eventos ainda são recentes, o xerife não quer alarmar a cidade mais ainda. Nossos esforços estão centrados nas crianças desaparecidas, o resto pode esperar.
Ela não disse mais nada. Agradeceu com uma cortesia fria e dirigiu-se para fora do departamento, Charlie a acompanhou, cumprimentando-a:
– Com licença, sou o policial Charlie, prazer.
Ela virou a cabeça, a princípio, desinteressada;
– Prazer, sou Sarah.
– Escute, o pessoal daqui é de bom caráter, mas trabalhamos a madrugada toda, tem sido difícil pra gente também. Mas o que houve? Talvez eu possa ajudar…
– Ah, é uma longa história.
– Bom, estou no intervalo para o meu café.
Ela sorriu, e ele convidou-a para o Rose`s Coffe, onde poderiam conversar melhor. Como o café era no outro lado da rua, não demoraram muito até chegar lá. Após fazerem seus pedidos, Charlie retomou:
– E então, senhorita Sarah? O que te traz à cidade pacata de Dawn City?
Ela contou sobre tudo, cortando detalhes desnecessários, levando em consideração o tempo de vinte minutos que ele tinha. Mas, quando acabou, ele sem dúvidas ficou interessado no caso (ainda mais depois de saber do passado e história de superação dela). Charlie concluiu a conversa cordialmente:
– Foi um prazer conhecê-la, Sarah. Conheço o xerife há muito, vou ver o que posso fazer por você, qualquer coisa, pode me ligar.
– O prazer foi meu Charlie, obrigada!
…
Charlie estava jantando com o amigo e sua esposa. Na mesa, frutas, salada e um bife mal passado com molho picante e arroz temperado com cebola e enroladinhos de queijo, para acompanhar, uma taça de vinho. Enquanto comiam, Anne, uma esbelta mulher de pele negra e sorriso e olhar alegres, brincava sobre os preparativos do evento:
– Então, eu disse pra ela, o Jacob não vai gostar de ter que andar nisso de novo, mas aí meu lembrei do por quê, ele tem medo! Ha, ha, ha.
Charlie não pôde conter a risada:
– O quê? Tá falando sério? É só um barco desajeitado…
– Olha. – disse Jacob, meio desconcertado. – podem dizer o que quiserem, mas só quando estão lá é que conseguem ter essa certeza, pra mim, aquele negócio é do capeta e ponto final.
Mais risadas, depois, um silêncio agradável. Anne voltou-se para Charlie:
– Então, Charlie, já sabe o que vai fazer até lá?
– Provavelmente passar mais um tempo lendo algum livro, assistindo uns filmes, dando uns passeios…
– Eu não queria ter de te falar isso, mas eu pedi pra Rebeca me acompanhar.
Charlie achou que ficaria com raiva, mas não sentiu nada:
– Sem problema, não podemos fugir um do outro pra sempre como se nada tivesse acontecido. Fui na casa dela ontem, discutimos alguns assuntos e parece que as coisas estão indo muito bem, quer dizer, agora cada um toma o seu rumo.
Anne e Jacob estavam visivelmente aliviados. Jacob disse:
– Ufa, achei que você viria com mais alguma desculpa. Escuta, cara, eu sei que é um evento religioso, mas muitas pessoas comparecem, quem sabe você não encontra uma dama que lhe atraia?
Mais algumas risadas. Anne perguntou:
– Mais vinho, Charlie?
– Não, obrigado. Ainda tenho que dirigir, uma taça tá de bom tamanho. Então acho que é isso, nos vemos amanhã?
– Com certeza, obrigado por nos visitar, Charlie.
– Eu que agradeço, e ainda vamos dar uma volta naquele negócio do capeta, ha, ha, ha.
…
Charlie gostava de andar sozinho até sua casa de vez em quando. O silêncio da noite ajudava-o a pensar, mas, estranhamente, não conseguia pensar em muita coisa. Assim que estacionou no pequeno prédio onde morava, andou algumas quadras, somente para voltar para casa um pouco mais confuso, por fim, tomou uma ducha e foi assistir algo na TV.
E então o telefone tocou.
– Alô? – Charlie disse, ao atender.
– Oi, Charlie, sou eu, Sarah.
– Oi, Sarah, o que foi que aconteceu?
– Desculpa te ligar essa hora, é que eu fiz algumas investigações e descobri que aquela igreja está funcionando, mesmo com as restrições e a reforma. Gostaria de pedir humildemente sua ajuda, será que não poderia me acompanhar amanhã? Acho que eles tem um culto às oito e meia.
– Amanhã fico só com o segundo turno, por causa das buscas dos últimos dias, então acho que dá. Nos encontramos lá?
– Pode ser, muito obrigada, Charlie.
– Sem problema.
Se tinha algo que Charlie gostava era uma desculpa para trabalhar mais, mas isso já é sabido. Rolar de um lado para outro na cama pensando nos dias que passavam, na suposta filha que crescia, na ex-mulher que aproveitava a sua pensão e com certeza fodia com aquele desgraçado.
Ele precisava terminar com aquele elo tortuoso e podre que o mantinha ligado àquela cidade, talvez eu faça igual o Brandon, fuja, é disso que eu preciso. E ele precisava, não por que estava adoecendo, não por que estava triste, ele estava perdendo sua essência, já não era o mesmo, e a cada dia percebia mais isso.
Por deus, ele não queria virar mais um daqueles velhos rabugentos que sentavam na calçada de sua casa todos os dias pra reclamar de política e comentar sobre os novos remédios que estava tomando. Ele precisava de uma volta. Quem sabe uma viagem de isolamento, uma cabana num vale? Os pais tinham feito isso com frequência antes de morrerem, talvez isso ajudasse ele.
Estava decidido, tá na hora de encarar os seus demônios, Charlie. Com esse pensamento, adormeceu.