Purificação - Capítulo 5
Capítulo 5 – Um Brinde, ao Jornalismo:
— Como assim não é possível, xerife?
— Já lhe disse uma vez, Charlie, não faça-me repetir. A cidade está muito alardeada para complicarmos ainda mais a situação, entendo a urgência do problema, mas não podemos nos desviar mais do que o necessário para auxiliar nosso objetivo atual.
— Mas, senhor, já fazem quase trinta e cinco horas desde o desaparecimento das crianças, temos provas o suficiente para uma averiguação local. O que nos impede? Já temos mão de obra disposta a ajudar nos meios técnicos e as pessoas daqui são boas, vão nos ajudar. Só preciso de um mandato autorizado, xerife, é tudo o que peço…
— Policial Charlie, por quê tá tão convicto de que há algum tipo de envolvimento entre as partes, o que te preocupa?
— Senhor, você não tem uma filha?
Quando Charlie reconheceu o erro, já era tarde de mais.
— Tive, policial, e sei muito bem a dor de perder alguém muito próximo, estou tão certo de que encontraremos elas quanto as provas indicam. Mas não temos um departamento de investigação preparado, a maioria dos policiais ainda atende a pedidos de investigação e busca, bem como averiguação dos locais em que supostamente as crianças foram avistadas, lamento Charlie, mas não posso permitir…
Um suspiro, um silêncio, apenas o barulho das hélices do ventilador e o cheiro do cigarro, o som de teclas confundindo-se com vozes distantes. De quê adianta ser um policial se não posso fazer nada quando realmente poderia ter feito a diferença? Antes de fechar a porta da sala, o xerife o chamou:
— Charlie, só mais uma coisa, eu sei que você tem passado por um tempo difícil nesses últimos meses, mas não desista de nós, você é o melhor policial que esta delegacia já teve, não deixe-se levar pelos discursos da mídia.
Charlie fechou a porta.
…
— E aí, caubói? Como estão as coisas?
Era bom ouvir a voz do namorado novamente:
— Estão bem, até. O Duncan tá atormentando a vida dos estagiários e a Valéria tá me enchendo o saco pra próxima campanha eleitoral.
— Ela tá certa, você vai receber bem, cara.
— Pois é, mas é um saco ir de lá pra cá com um governador que fica te consultando toda hora. E as coisas aí?
— Bom, estão bem, estou recebendo ajuda de um policial e a cidade até que é legal, salvo alguns moradores. E também – Charlie saiu da delegacia – Olha, John, ele saiu e podemos ter alguma informação valiosa aqui, vou ter que desligar, te amo!
— Te amo, gata!
Após desligar o celular, esperou o policial vir ao seu encontro.
— E então? – a voz de Sarah soava como a de uma criança que tentava esconder a animação de receber um presente – conseguiu?
— Infelizmente, não. – Charlie tampouco gostava de ser o estraga prazeres, mas era a verdade. – sinto muito, acabei dando alguns vacilos e ele tá a cada dia mais restrito.
— Entendo, então só nos resta uma opção…
— Escute… – Charlie a interrompeu antes que o pior chegasse. – sei que as coisas devem ser diferentes na cidade grande, mas não podemos fazer esse tipo de coisa aqui…
Sarah espantou-se:
— O que acha que eu iria fazer, policial?
— Roubar os arquivos?
A voz dela soou sarcástica:
— Nossa, me entristece o fato de você achar isso. Nos meus tempos de faculdade, talvez? Ha, ha! Mas eles se foram, vou chamar um contato para nos ajudar. Tem algum bar por aqui?
— Tem sim, na verdade.
…
Os copos deslizavam pelo balcão de madeira polida, refletindo o brilho das luzes vívidas que compunham o Having a Good Time, o som do rádio com a notícia do desaparecimento das crianças repercutia, e por um momento, Charlie achou que ainda estava na delegacia… até o primeiro gole de cerveja ter descido a garganta…
— Então – Charlie começou. – já estamos aqui há uns bons trinta minutos, seu contato é tão especial assim?
— Depende… para os empresários e políticos ele é um verdadeiro pau no cu… – após um longo gole de uísque acompanhado de um trejeito amargo, ela continuou: – mas é um cara legal, o trabalho dele tem coincidindo com muitas das matérias que fiz na New Express nos últimos meses.
— E como é?
— Como é o quê?
— Bom, ser uma jornalista, essa cidade deve ser um saco pra você…
— Ah, não fala isso! Na verdade, começou como uma obrigação, as contas chegam, e digamos que garçonete não apresenta um futuro tão contagiante, ainda mais quando se trata de mim…
— Olha, parece que temos uma candidata da classe média alta aqui, ha, ha, ha!
— É, pois é… – subitamente, o tom de voz de Sarah mudou, um silêncio, mais para ela do que qualquer coisa, e sua feição se enevoou: – na verdade, não é fácil ter uma perspectiva de vida depois que você sofre de abusos…
— Não precisamos falar disso, se você –
— Não, tá de boa. Foi justamente isso que me fez seguir com a carreira jornalística, tem algumas coisas que precisam ser ditas, por mais difícil que sejam. – Charlie só ficou em silêncio, afinal, não sabia o que dizer, e ela parecia ter percebido. – bom, mas até onde eu sei, policial em uma cidade pacata tá fazendo muito bem pra você, qual foi o seu motivo, Charlie?
— Pff, eu discordo sobre quem tá na pior aqui, não me importo com os tiroteios que acontecem todos os dias, ou com a alta quantidade de apreensão de drogas e menores infratores, a desgraça mesmo é a Gloria…
O ar pareceu pesado para ela, de repente:
— Vish, ex-namorada?
— Pior…
— Ex-noiva!?
— Pior do que isso…
Ela não parecia acreditar.
— Então o que é?
— A gata da delegacia, nunca achei que dava para existir um bicho tão gordo.
As risadas vieram tão altas que foi difícil encontrar fôlego e se recompor. A cara de Sarah estava vermelha:
— Nossa, mas gatos são tão fofinhos! Deve ter um motivo mais especial pra você ter virado um policial, qual é!
— Na verdade, eu era de cidade grande, esse costume de ir viajar pra uns lugares pacatos era dos meus pais. Eles falavam que não havia ¨melhor jeito de pensar do que ter um canto só seu, longe da correria.¨ Eles gostavam dessa moda, alugavam uma casinha em Dawn City e partiam, eu ficava na casa da minha tia, mas ela sempre avisava que eles faziam isso, geralmente, duas semanas e eles estavam de volta ¨resetados¨, prontos pra mais um ano de luta.
— Deixa eu adivinhar, as coisas não ficaram tão bem no fim das contas, né?
— Pois é, eu lembro de estar brincando certo dia com meus primos em uma praça e quando voltei pra casa, minha tia tava chorando no sofá, perguntei o que tinha acontecido, lógico que eles não responderam diretamente, mas descobri um tempo depois que eles tinham sido mortos por menores infratores que invadiram o casebre deles tentando achar a chave do carro.
— Nossa, que merda, sinto muito.
— Sem problema, eles também sabiam que isso poderia acontecer, então eu tive que ver o que eles achavam de tão interessante em uma cidade tão pequena. Viajei no verão de 86 pra cá e visitei a cabana que eles moravam (hoje posto da guarda florestal), foi aí que me apaixonei pelo estilo de vida, e policial era uma profissão promissora, na época pelo menos.
— Bom, você não parece estar muito contente com isso.
Mais alguns goles de cerveja. Charlie prosseguiu:
— Não pretendo ficar aqui por muito tempo…
Antes que pudesse continuar, uma voz se sobressaiu:
— Então, parece que já fez amigos na cidade, em Sarah?
A voz veio tão repentinamente quanto a presença do sujeito. Alto, magro e careca, mas certamente estava longe da velhice. Sarah o recebeu com um salto:
— Jimmy! – após um abraço, ela continuou: – então, gostando da cidade?
— Meio que não tive muito tempo para apreciar Dawn City, mas até agora, não me parece nada mal.
— Esse é o Charlie, Charlie, esse é o Jimmy. Ele é o nosso contato supersecreto!
— Prazer!
Após algum tempo conversando sobre a viagem até ali, Jimmy retomou:
— Bom, escutem só essa, estou eu fazendo minha boa e rotineira pesquisa de campo em Rochester, e descubro que já tá rolando propaganda com o mesmo sloogan que vocês viram, mas pararam subitamente. Tentei averiguar através de testemunhas oculares se alguém conhecia o gerente de marketing dessa tal organização…
— Espera – Charlie interrompeu. – Rochester é grande e bem longe daqui, por quê tão específico? Só não faz sentido na minha cabeça ainda…
— Isso é comum, na verdade, eles precisam de histórias pra contar, e a igreja já está estabelecida em algumas cidades vizinhas daqui e na própria Minneapolis já tem um departamento deles, só que o que difere… são os costumes, meio que na cidade grande eles só fazem esses tipos de palestra de autoajuda e citam a tal da Saint Marry Wood…
— Ela tá sequer na bíblia?
— Bom, pesquisei um pouco – era Sarah que tomava o rumo do diálogo. – e não achei absolutamente nada, pode ser um pseudônimo ou simplesmente eles não querem dar a identidade de forma clara…
— Eu cogitei uma possível seita… mas parece que não há qualquer tipo de ligação de terreno deles no território de Minnesota, que é o único estado que estão, por enquanto, o valor deles na bolsa também é razoável, eu descarto essa hipótese, não estamos mais no século dezoito, simplesmente não dá mais lucro.
Charlie refletiu:
— A não ser que haja envolvimento ilegal.
— Exato! – Jimmy disse, a empolgação tomando conta de sua voz. – quando eu achei que as esperanças iriam acabar, eu acho isso – a pasta deslizou através do balcão para as mãos da jornalista e do policial, ao abrir, fotos tiradas as pressas de galpões e caminhões descarregando caixotes…
Charlie não pareceu surpreso:
— Pode ser extravio, mas somente com as imagens não dá pra saber…
— Prestem atenção no galpão, não nos caixotes!
Olhando melhor, não parecia um local mobiliado, e estava rodeado por morros.
— Então eles estão fugindo da receita. – Charlie disse. – mas qual é o ponto?
— O ponto é, em todas as oito cidades em que registrei há presença de galpões como esse, algum galpão desse estava alocado na saída, mesmo em Rochester, são difíceis de achar, mas o que parece é que há uma rotação de uma mercadoria que não conhecemos.
— Uau, tenho que admitir – Sarah disse – você se superou, Jimmy. Então, Charlie, alguma ideia de onde possamos procurar?
— Na verdade, eu acho que sim. Jimmy, posso pegar teu número?
— Claro!
Enquanto pagavam a conta e se dirigiam para a saída, Charlie disse:
— Há poucas semanas recebemos uma denúncia sobre caça fora de época e sobre caçadores clandestinos que se reuniam ao norte da cidade, o xerife falou que ia cuidar disso pessoalmente e o caso foi arquivado.
Sarah refletiu:
— Sabe que ele pode estar envolvido, né?
— Sim, eu sei, o que me faz pensar que teremos de usar o bom e velho suborno com esse pastor para verificarmos os registros da igreja e torcer pra que haja uma relação com o desaparecimento das crianças.
— E você, Jimmy, vai vir também?
— Não, dei uma passada aqui pra outra pesquisa, meio que investigações de busca estão sendo valorizadas nos departamentos das cidades grandes, a maioria dos casos consta passagem em uma dessas cidades pequenas, a grana é boa, e é muito interessante atuar nessa área, mas já tô nessa viagem faz um mês, vai ser bom ficar aqui por um tempo, só que nossos caminhos não vão se cruzar tão cedo, ha, ha.
— Então tá, foi bom te ver, Jimmy. Mais uma coisa, aqui está uma listinha com os nomes dos suspeitos até agora, se as coisas ficarem feias, contamos com você pra ser nosso guardião.
— Pode deixar.
Assim, policial e detetive entraram no carro enquanto Jimmy entrava em seu próprio. Charlie engatou a primeira e começou a se dirigir ao centro para pegar a rua que levava à igreja, ainda estava fardado, o que traria benefícios, em parte. No caminho, o celular tocou. Charlie atendeu e aguardou.
— Policial Charlie, tá aí?
Uma cara emburrada e a resposta:
— Tô sim, xerife, podia ter falado pelo rádio, ainda tô no final do turno.
— Não, mais prático desse jeito.
— Alguma novidade sobre as crianças?
— Na verdade, sim. Parece que tem mais um relato de um motorista que viu algumas crianças próximo a residência dos Robbinson na noite do crime, dê uma conferida.
— Vou dar uma passada na delegacia e chamo o Jacob pra vir –
— Não, só você, aquele Jacob é faz muito estardalhaço, tá sozinho?
Charlie olhou para a detetive por um momento, depois disso, respondeu:
— Tô.
— Ótimo, avisa se qualquer coisa chamar a atenção.
— Pode deixar.
E desligou o celular.