Reencarnação Dracônica - Capítulo 1
Dias, dias e mais dias passaram, mas a escuridão permanecia lá, imutável, invariável, silenciosa e enlouquecedora, contudo o cenário monocromático deixou de provocar apreensão há muito tempo. Quanto foi esse tempo mesmo? Talvez alguns dias, meses, ou, na pior das hipóteses, anos, realmente não sabia e, aos poucos, perdia interesse em ter conhecimento do decorrer das horas.
O corpo permaneceu na mesma postura fetal de quando despertou, esperando o momento da divina luz do sol dissipar as trevas o cercando. Mesmo estático ali, a circulação sanguínea não o incomodava, a ardência dos músculos tensos era nula, na verdade não sentia nada. Não sentia fome ou sono e os cinco sentidos eram inúteis em meio à vasta escuridão.
Lembrou-se de uma citação do seu antigo mundo que dizia: “O que separa céu do inferno é uma tênue linha.” Eram palavras de um líder religioso, vira-o em um livro. Apesar de não acreditar na existência de um ou vários seres divinos onipotentes e oniscientes, naquele momento, aquele homem, anteriormente chamado Petter, — não que seu nome fosse relevante agora — questionava-se: Estou na tênue linha?
Viveu de uma maneira tão patética a ponto de não ser aceito no paraíso ou tormento?
Se bem que, segundo os fanáticos religiosos do seu mundo, verdadeiros alienados, ambos os locais não eram exatamente tão bons. Tanto o céu quanto o inferno eram governados por seres de regras unilaterais — verdadeiros ditadores, como aquele tirano asqueroso do seu antigo mundo.
Por estar imerso em pensamentos, a única coisa que podia fazer ali, percebeu com atraso uma pequena fissura na escuridão. Ela começou de um pequeno ponto e circundou as trevas em padrão zigue-zague. Era como ver um ovo rachando pelo lado de dentro — talvez porque estava de fato em um?!
Mal pôde acreditar ao notar o fato. As trevas eram, na verdade, uma casca dura como uma pedra, de aspecto escuro. Seria o tipo de coisa que alguém colecionaria por hobby. “Oh, olhe aqui minha coleção de cascas de ovos bonitas!”
Os olhos foram ao encontro da luz solar que não via há muito, mas teve de fechá-los imediatamente ao receber os raios ultravioletas de repente. Doeu.
Tentou mais uma vez. Os glóbulos oculares avermelhados abriram-se devagar mais uma vez, mas ao ver a criatura à sua frente, eles arregalaram-se.
Era enorme. Um monstro dourado de aproximadamente trinta metros e olhos afiados o encarava, mas por algum motivo, o homem não se apavorou. O coração batia em ritmo normal. Sem gritos? Nada de movimentos involuntários? Não era isso que caracterizava o medo? Foram os olhos do monstro? Talvez. Era fato que Petter estava maravilhado, não horrorizado.
Não havia outra palavra para descrever aquilo senão um “dragão quadrúpede de escamas douradas” — ele era como aqueles que vira em um quadrinho de fantasia.
A atenção foi roubada por um barulho ao lado. Um crack ecoou pelo ar silencioso e outra criatura, uma miniatura daquele réptil majestoso, saiu de um ovo ao lado. Outro som igual veio do lado oposto e outro monstrinho pôs o corpo cambaleante para fora das trevas assustadoras.
Petter percebeu algo com atraso: sua mão esquerda, ao invés de uma mão mutilada por lâminas de barbear, lá estava um membro coberto por escamas douradas, terminando em três dedos finos, adornados por garras negras pontiagudas. Um muco esbranquiçado o cobria por completo, era viscoso como cola.
Não restavam dúvidas, de alguma maneira, o homem miserável tornou-se um dragão, ou qualquer que fosse aquele animal. Tudo aquilo era real demais para ser apenas uma alucinação provocada pelo uso imprudente de álcool ou drogas.
— Parabéns, — o monstro começou — você foi o primeiro a nascer, ou seja, é o mais velho, querido.
A voz grave provocou calafrios no corpo escamoso, arrepiando-o da cauda fina à ponta das garras negras. A besta aproximou-se sem fazer barulho. Ei, ei! Essa coisa tá falando!? Petter gritou internamente surpreso.
Tentou berrar, agora que o medo chegou ao cérebro, mas tudo produzido pelas cordas vocais foi algo semelhante ao grasnado de um cisne filhote. Patético.
— Não precisa ser tão apressado, tudo tem o seu devido tempo. Em breve você aprenderá a se expressar com palavras — a besta explicou calmamente.
A distância entre eles era tão próxima a ponto de Petter sentir o ar quente expirado pela dragoa. Sim, era uma dragoa. A voz, apesar de grave, era calma e maternal, e lembrava a Petter sua antiga professora do ensino elementar — o maldito ensino elementar!
— Pegue — ela falou fazendo um movimento com a pata esquerda. Algo entre um peixe e uma tartaruga foi arremessado em direção ao homem — não, ele agora era um dragão, um bebê dragão.
A dragoa falou para ele tentar comer aquilo e foi em direção aos outros filhotes grasnando como pequenas aves roucas. Tentou convencer a si que aquilo era um sonho, mas desistiu e aceitou aquilo.
“Tente comer”? Aquela criatura estava praticamente viva, as pálpebras se moviam e ela constantemente tinha espasmos enquanto produzia um guincho perturbador. Mal acordou e já precisaria matar?
Petter franziu o cenho, quer dizer, tentou fazer isso, mas o rosto escamoso não lhe oferecia esta opção. Não tinha outro jeito, ali estava a sua prova. Aceitaria ou não o seu destino?
Se seria um monstro dali para frente, então teria de aprender os modos de um monstro. Decidiu-se. Começaria pela alimentação, estava decidido.
Um dos maiores arrependimentos que tinha da sua antiga vida era o fato de não ter experimentado coisas novas. Tinha medo, por isso viveu uma vida medíocre, isolado em seu quarto enquanto destruía o corpo lentamente com tabaco barato, álcool e drogas ilícitas.
Tinha alucinações constantemente, por isso não estranhou quando acordou um dia e se encontrou em meio às trevas infindáveis, mas agora suas memórias retornaram. Ele lembrou-se de como comprou um novo tipo de droga em uma das muitas favelas daquele mundo socialista, usou-a e acabou pulando da ponte.
Viveu afogado em dívidas e álcool, morreu afogado no rio, talvez fosse irônico, mas já esperava por algo assim.
Petter, um ex-homem miserável, tinha medo de tudo e todos, por isso, por mais que sua vida fosse horrível, não teria coragem de acabar com ela, mas aquela droga foi o gatilho, comprou apenas por curiosidade, uma das poucas coisas novas que tinha arrependimento de ter experimentado, ela deu-lhe esta coragem.
Flashes passavam pela mente. Em uma hora estava injetando a droga, na outra, saltando de uma ponta, encarando a água fria, com um rosto inexpressivo.
Cerrando os pequenos dentes pontiagudos e engolindo seco, o pequeno dragão afastou as memórias ruins e engoliu aquilo que sua mãe lhe dera. Cof! Cof! Cof! Ele lutou contra a vontade de vomitar o pequeno animal debatendo-se enquanto adentrava sua garganta. O guinchado continuou até sentir algo aterrissando no interior do estômago.
— Calma, grandão, não precisa comer tão rápido, — a mãe advertiu — você precisa ser paciente. Veja só: PA-CI-EN-TE. Significa que não pode engolir tudo de uma vez — ela explicou enquanto passava as garras carinhosamente pelo rosto viscoso do bebê.
O dragãozinho ouvia a voz da gigante e só conseguia lembrar aquela voz era tão familiar: a voz de tom maternal que sua professora do elementar tinha — provavelmente, aquela mulher fora uma figura materna muito melhor que a mãe de verdade de Petter, a que o abandonou quando ainda tinha oito anos.
— Eles nasceram? — Uma voz diferente reverberou pelo local, fazendo seu corpo estremecer apenas pela vibração.
Mais uma vez, o campo de visão do bebê dragão foi surpreendido por uma figura alada e majestosa. Era um dragão com mais de quarenta metros, escamas dourado-avermelhadas e asas gigantes.
A criatura imponente pousou graciosamente e andou até Petter a passos estrondosos. Ao tocar o chão, o peso do monstro dourado fazia as árvores tremerem e crateras com formato de pegadas de dragão eram abertas na terra.
— São todos saudáveis — a mãe respondeu o companheiro. Se aquela dragoa gentil era a mãe, então aquele gigante provavelmente era o pai…
— São bonitos — o dragão comentou examinando os bebês e continuou: — São dignos de serem nomeados por mim.
Entendeu a personalidade dele por aquela fala. Claro, não dava para ter uma família perfeita nem naquela vida. Petter não gostou do jeito daquele ser, lembrava-o alguém desagradável.
— Você será Uuyr. — Ele começou do mais novo. — Você, Aurdo — disse apontando a garra para o do meio. — E, por último, você será… Aisley. — Por algum motivo, o monstro olhou de maneira estranha para Petter, como se lesse seus pensamentos.
A dragoa olhou curiosa para o companheiro, deixou-se levar pela curiosidade e perguntou o motivo dele dar um nome humano ao filho mais velho. Ele respondeu em sua voz imponente:
— Não sei, mas os olhos dele me lembram um humano que salvei, certa vez, com esse nome. Agora, se me der licença, tenho que ir para um reino vizinho, você já sabe o que deve fazer. — O dragão ergueu as asas majestosas e decolou, fazendo as árvores curvarem-se perante sua grandiosidade. Is bebês vislumbraram o alto maravilhados.
— Bem, bem, bem, — a dragoa chamou atenção dos bebês olhando para o alto impressionados — também precisamos sair daqui — ela disse e começou a caminhar.
Petter seguiu desajeitadamente os passos da mãe. Aisley, é? Ele repetiu o novo nome inúmeras vezes. Na verdade não sabia seu próprio nome na vida passada. “Petter” foi um nome dado carinhosamente por sua professora, por isso gostava dele, mas aquela era uma nova vida, então precisaria adotar o novo nome que lhe fora dado. Assim pensando, ele apressou os passos para acompanhar a figura enorme da dragoa.
A jornada deles não foi fácil. Quando o terreno era acidentado, a mãe olhava fixamente até todos os filhos atravessarem em segurança. Os animais enormes semelhantes a ursos com chifres eram afugentados por um único rugido da besta, os menores nem saíam dos seus esconderijos nos arbustos. O coração de Petter disparou ao ver aquele grito majestoso. Ele ainda não havia parado para pensar onde estavam indo, isso não era necessário.
Ocasionalmente, a mãe explicava algumas coisas, mas o tom de voz dava a entender que falava mais para si do que para os filhos. O bebê dragão chamado Aisley escutava tudo atentamente e memorizava cada palavra.
Quando estavam tomando água em um pequeno lago, a dragoa contou que estavam indo ao “Santuário dos Dragões” nas montanhas, pois os humanos caçavam e matavam monstros para diversos fins, um mais perverso do que o outro, como vender suas escamas ou comer sua carne, segundo a tradição deles, isso deixava os guerreiros mais fortes. O último comentário deixou o bebê dragão desconfortável ao imaginar a cena. Humanos são sempre assim, não importa o mundo, pensou encarando o céu azulado da imensa floresta.
Andar em quatro patas era um verdadeiro desafio para o dragãozinho, porém ele dedicou-se e foi o primeiro dos irmãos a conseguir correr sem tropeçar. A mãe parabenizou-o muito pelo feito.
Por sorte, acostumou-se com a sensação de engolir pequenos animais ainda vivos, no entanto a sensação de sentir algo se movendo no estômago era horrível. Prometeu a si que jamais mastigaria, seria uma sensação repugnante.
Eles continuaram andando por uma vasta floresta pelo período de aproximadamente um mês. Viajavam apenas ao dia, à noite sempre roubavam a toca de outros animais enormes e dormiam lá. Petter descansava entre os dois irmãos, Uuyr e Aurdo, mas como a mãe era grande, ficava no lado de fora, de vigília.
— A montanha fica após aquele mar de arbustos — a mãe havia explicado. O mar de arbustos citado tinha apenas um caminho estreito, com diversos galhos incômodos brotando pelos flancos, por causa disso a dragoa esforçava-se para passar e não ser arranhada pelos galhos. O céu arroxeado da alvorada não podia ser visto, afinal havia árvores imensas por todo o corredor vegetal estreito. A dragoa rugiu repentinamente.
Por que ela fez isso? Petter olhou assustado para a mãe e percebeu o que aconteceu em seguida. Um objeto perfurou sua asa esquerda e o sangue espalhou-se pelo chão. Revoltada, a besta cuspiu fogo contra os arbustos e o grito de uma multidão de pessoas reverberou pelo ar. Humanos! Tinha que ser os malditos humanos!
— Corram! Rápido! — A mãe ordenava ofegante enquanto atirava flamas nos Inimigos. Mais lanças choveram em suas escamas duras, rasgando a carne e tocando ossos profundos, e ela gritou, mas não fugiu, precisava esperar todos os filhos atravessarem.
Petter correu rapidamente ao perceber que caiu em uma emboscada, porém parou ao escutar um grasnado ao seu lado. Uma das lanças atravessou o irmão menor, Uuyer, e um homem saltou dos arbustos sobre o corpo do dragãozinho debatendo-se, o humano cravou uma faca no pescoço do irmão, finalizando-o ali mesmo. Viu em câmera lenta a lâmina forçando a entrada na carne dura e o sangue jorrando. O pequeno monstrinho teve espasmos, mas logo foi jogado dentro de um saco pelo humano, onde o sangue pingou lentamente, deixando uma trilha vermelha onde o assassino passava.
Ele ficou paralisado. Nem quando alguns membros da sua família anterior morreram sentiu o coração acelerado daquela maneira. Se dragões choravam ou não era algo que nunca saberia, porém sentiu os extremos dos olhos ficarem úmidos e algo descer suas escamas.
A dragoa voltou um olhar furioso para o corpo sem vida do seu precioso filho sendo carregado por um humano e soltou um berro ensurdecedor. Petter sentiu uma pontada violenta na cabeça quando o rugido penetrou seus tímpanos.
Os humanos ficaram atordoados por alguns segundos e a maioria foi queimada pela besta em estado de frenesi. Petter procurou pelo seu outro irmão em meio ao caos, com um zumbido insuportável lhe perturbando o ouvido, mas não o encontrou. Em instantes, a mãe estava cercada mais uma vez pelos humanos. Eles arremessaram tantos projéteis que foi impossível a besta defender-se com suas chamas. As duas patas dianteiras e as asas foram perfuradas, alguns dos mais bravos guerreiros correram em direção ao corpo da dragoa com grandes espadas douradas enquanto outros tentavam reduzir seus movimentos com longas fibras de junco.
Petter saltou nos arbustos, arranhou o rosto e toda a pele nos galhos secos, sentiu as escamas ardendo ao entrar em contato com folhas de plantas semelhantes à urticária e lascou algumas garras.
Nunca quis tanto sobreviver como naquele momento, porém também se odiava por não ter forças para voltar e ajudar a mãe e os irmãos. Perderia aquilo que acabou de obter.
Escutou passos de pessoas perseguindo-o e lanças sendo arremessadas, mas jogou aquilo para o canto da mente e focou em salvar a própria vida. Viveu a antiga vida querendo que ela terminasse logo, mas por algum motivo, não queria morrer daquela vez. Seria fácil apenas ficar parado e esperar os órgãos internos serem perfurados pelas lanças, no entanto o sentimento de que devia matar aqueles que fizeram mal à sua família não o permitia parar…
Droga! O chão acabou e o bebê dragão rolou morro abaixo, sentindo pedras e galhos perfurando sua pele escamosa. Ele continuou rolando por mais uns cinco ou oito minutos, até bater a cabeça com força em uma árvore no sopé do morro. Crack! Escutou o barulho de um graveto rachando no fundo da sua mente. A última coisa que escutou antes de apagar foi um rugido furioso da mãe e as gargalhadas perversas dos humanos.
Quando recobrou a consciência, pensou que já estivesse sido capturado pelos perseguidores, mas ainda estava no mesmo local, deitado sob a sombra da árvore que batera o cocuruto. O corpo tremia e um formigamento anestésico percorria sua espinha. Por um segundo, viu o cenário à sua frente turvo, com estrelinhas pretas estourando, mas a visão ajustou-se gradualmente.
Questionou-se novamente se os dragões choravam. Há pouco tempo estava andando calmamente com sua nova família para o Santuário, mas bastou a aparição dos humanos para que sua vida se tornasse um inferno novamente. Droga! Droga! Droga!
Não estava com raiva ou medo dos malditos, apenas amaldiçoava sua fraca existência, não conseguia proteger ninguém, estava realmente condenado a viver miseravelmente outra vez? Ele perguntava-se enquanto batia a cabeça com violência na árvore e algumas gotas de sangue arroxeado pingavam nas gramíneas. Algo chacoalhava solto na sua cabeça.
Crack! De repente o barulho de um galho seco quebrando chamou a sua atenção. Pensou que fosse o seu crânio, mas tremeu ao escutar o barulho repetindo. Alguém estava se aproximando a passos lentos, porém não conseguia identificar a origem do barulho devido à tontura. Quando percebeu, foi tarde demais.
Ahhhh! Exclamou internamente surpreso. O dono dos passos já estava em suas costas. O bebê dragão rolou mais uma vez no chão, a fim de ficar distante do humano.
— Você está perdido? — perguntou uma voz doce e angelical, porém em um tom baixo, como se não quisesse chamar atenção. Petter levantou-se e mostrou os dentes para a figura próxima à árvore. Não parecia ser um dos humanos que o atacou, mas ninguém que andava em duas pernas era confiável, decidiu isto depois do que presenciara.
Examinou-a com desconfiança.
Era uma garota de longos cabelos loiros e olhos azulados reluzentes, aparentemente em seus doze ou treze anos e com vestes brancas que chamavam a atenção naquela floresta escura. Como não viu ela aproximando-se?
— Você está machucado — ela perguntou fazendo menção de se aproximar, porém Petter recuou alguns passos e parou ao escutar os ossos estalando. Ele sentiu vontade de soltar um grasnado alto, a dor nas patas traseiras era insuportável, mas nada equiparado à que sentia na cabeça.
A garotinha fez uma expressão preocupada ao ver o sofrimento e se aproximou do bebê dragão rapidamente. Ela pôs a mão sobre o corpo pequeno e começou a murmurar palavras inaudíveis para o dragãozinho agonizando, com saliva misturada a sangue escorrendo pela boca.
Uma luz amarelada iluminou o local e a dor excruciante aliviou e, em pouco tempo, já não a sentia mais. Ele conseguia ficar de pé novamente!
Distraiu-se com o alívio de ter o corpo recuperado e baixou a guarda. Antes que tivesse tempo de fugir, a menina segurou Petter com força nos braços e começou a correr. Ela saltou por alguns arbustos e se escondeu em um tronco velho repleto de besouros negros, segurando o corpo do pequeno monstro contra o seu. O tremor tomou conta de ambos.
Petter estava prestes a morder o braço dela, porém parou ao escutar o som de vários passos. Homens com lanças, espadas, arcos e outras diversidades de armas brancas chegaram ao local, o brasão estampado em seus peitos era conhecido. Um deles murmurou: — Eu tenho certeza que escutei o barulho vindo daqui! — Por sorte, nenhum deles aproximou-se do tronco repleto de besouros.
— Eles estão atrás de você também? — A menina sussurrou a pergunta.
Como assim “de você também”?, pensou Petter intrigado. Ele não precisou esperar muito para obter a resposta. A menina, como se visse uma pergunta em seus olhos amarelados, puxou o cabelo dourado e mostrou um grande par de orelhas pontudas.
— Eles fizeram uma chacina na minha vila e até hoje estão me perseguindo. Pela sua reação, estamos na mesma — explicou a menina, uma elfa de orelhas compridas.
Ambos ficaram em silêncio até o grupo de humanos adentrar mais a floresta. Esperaram pacientemente antes de dar o primeiro suspiro de alívio. A menina então quebrou o silêncio e se apresentou como Helva Deenlief, filha do chefe do vilarejo de elfos destruído pelos humanos há alguns anos.
Conforme sua explicação, seu único objetivo era ficar forte o suficiente para vingar seu povo, por isso treinava diariamente na floresta. Também disse que podia conversar com animais por via de pensamento, caso houvesse consentimento de ambas as partes.
Petter hesitou por um momento, mas logo falou telepaticamente com a garota, apresentou-se como Aisley e disse que os objetivos dela iam ao encontro dos seus.
— Então por que não seguimos nossas jornadas juntos? — ela sugeriu após um tempo, quando caminhavam pela floresta. A guarda ainda estava alta, porém estavam mais relaxados que anteriormente.
Não havia motivos para recusar. Primeiramente, ainda era um bebê dragão, acabaria sendo devorado ou morrendo de fome caso desejasse seguir sua vingança sozinho. Ainda tinha o seu irmão, — provavelmente — ele sabia que havia a chance do pequeno Aurdo ainda estar vivo, realmente precisaria de toda a ajuda possível. Tudo bem, eu aceito ir com você.
A elfa abriu um largo sorriso condizente com sua idade ao perceber que não estaria mais sozinha. Pelo que contou, esteve vagando por dez anos pela floresta, mas nunca encontrou a saída dali, seu único passatempo era treinar magia e o corpo, usando gravetos pesados como espadas. Seu rosto iluminou-se quando Petter falou sobre a montanha dos dragões e o Santuário. Ela nunca ouvira falar naquele lugar, porém, se ele realmente existisse, seria um local perfeito para se abrigarem e treinarem, ela havia explicado eufórica.
As conversas entre eles aumentavam conforme o passar do tempo, cessando brevemente ao chegar no pequeno acampamento feito pela pequena elfa. O local era oculto por arbustos e troncos grossos tomados pelos besouros negros. Havia algo em um caldeirão de pedra improvisado, um tipo de sopa de cogumelos? Não importava, o sabor era delicioso.
Após o fim da refeição, eles apagaram o fogo, que ainda usaram para assar alguns pequenos animais, e dormiram em uma toca após o diálogo. O local fora forrado por folhas aconchegantes. Não havia tochas ou algo do gênero, mas nem era necessário, a luz da lua prateada adentrava por entre alguns buracos da toca.
Quase não conseguiu dormir, sempre que fechava os olhos, revia a cena da sua mãe e seus irmãos sendo mortos pelos malditos humanos. Mexeu-se de um lado para o outro, mas o sono nunca vinha, não até a elfa tocar-lhe o corpo com a mão quente. Aquilo tirou toda a sua tensão, sentiu um formigamento bom e aconchegante percorrendo todo o seu ser.
Dormiu sem perceber.
No dia seguinte, acordaram logo cedo. Petter, recuperado após a noite de sono tranquila e pronto para enfrentar mais um dia, não sabia exatamente onde ficava a montanha, mas pelo que se lembrava, sua mãe dissera: “Após o mar de arbustos”. Nunca havia imaginado que um dia teria algum objetivo na vida. Emoções como de vingança e a tristeza eram novidades para ele, no entanto, dessa vez, não se acovardaria.
— Vamos? — A pergunta da menina trouxe o dragãozinho perdido em pensamentos de volta à realidade.
E assim, o dragão e a elfa iniciaram sua longa jornada, apesar de que, no fundo, um estava usando o outro para conseguir alcançar seus objetivos individuais, mas isso não importava de qualquer forma. Petter seguia o lema de que não importava o princípio, mas sim o fim. Tinha certeza que ambos conseguiriam o que queriam, por mais que o caminho fosse difícil.