Renascidos - Capítulo 6
Dor.
Essa palavra descreve bem meu estado físico nesse momento.
O meu corpo finalmente aceitou seus danos depois de passar a madrugada toda em claro, sentindo como se minha pele pegasse fogo. Os músculos pareciam estar rasgando sem parar com o menor dos movimentos.
Roberto tinha me deixado em casa depois da reunião com Ieda. Não conversamos muito e ele mal se despediu, já que tinha de buscar um dos membros do outro lado da cidade. Tinha acabado de amanhecer e eu subi tranquilo, porém o meu corpo começou a doer muito e mal me aguentei de pé. Consegui abrir a porta e cambaleei até o quarto, onde desabei na cama.
Fiquei o dia todo naquele estado lastimável. Dormi por um tempo naquela posição, quando acordei, ouvi a torneira da cozinha aberta. Engoli em seco e tive dificuldade de me levantar. Em dois passos, eu desabei. Ouvi sons de passos apressados e alguém me levantando. Levantei a cabeça e vi Ângela.
— Oi, bela adormecida.
— Oi… — ela me ajudou a deitar enquanto meu corpo voltava a ganhar força depois de vê-la — Como você tá? — quebrei o silêncio constrangedor.
— Bem, por sua causa — ela sorriu — Não saia daí, vou pegar água pra você.
Não era como se eu fosse sair dançando por aí. Ela foi e voltou depressa. Me entregou a água.
— Como entrou aqui?
— Bem, você deixou a porta aberta… E ouvi você sofrendo de dor, então entrei — ela pausou, corada — Foi mal.
— Relaxa, você fez por mim — ela mexeu nos meus cabelos.
— Isso é por causa do que aconteceu lá? — ela perguntou, olhando pros remendos no meu corpo.
— Acho que é por causa do meu poder, usei de um jeito ruim e acabei desse jeito.
Ela engoliu em seco. Percebi que, diferente das outras pessoas, ela não tinha medo de mim.
— Foi incrível o que você fez — continuou — era como se fizesse há anos.
Não sei como, mas eu tive forças para me sentar na cama. Encarei ela e inconscientemente pousei a mão na coxa dela.
— Olha, eu nunca tinha feito nada como aquilo… Mal sabia dos meus poderes… Foi como se meu corpo agisse sozinho — disse, pensativo — Mas uma coisa eu tinha certeza.
— O que? — ela disse, olhando nos meus olhos.
— Não ia deixar você morrer ali, nenhuma pessoa inocente morreria naquele lugar.
Ela se aproximou de mim e… Bem, vocês sabem o que ela fez. Fiquei vermelho e não recuei, talvez por não ter energia ou por conta da dor. É, provavelmente foi por que eu gostei daquilo. Estava confuso desde que fui forçado a terminar meu relacionamento, mas desde então não me pensava beijando alguém novamente. Parece que eu sou um cara bem sortudo.
Quando ela se afastou, eu vi que ela não estava mais corada. Ela sorriu pra mim e sentou na cama, ainda olhando pra mim.
— Eu ouvi que te removeram do restaurante, é verdade?
— Infelizmente sim — ela não pareceu tão triste quando eu respondi — Mas vou continuar morando aqui.
— Isso é bom, pelo menos — suspirou — Vamos continuar nos vendo?
— Por mim sim.
Ela sorriu e não falou nada. Tirou o celular do bolso e começou a olhar as mensagens.
— Bom, agora que eu sei que você tá vivo, vou poder trabalhar em paz amanhã — disse.
— Eu fiquei preocupado de você morrer no hospital.
— Que nada, meu poder é bem útil nessas horas… Sempre foi. — ela olhou para mim, pensativa.
— É, realmente, poderia ser usado para lutar facilmente.
— E agora eu tenho um motivo para me juntar a alguma guilda mais pra frente.
— Tem?
— Sim, vou trabalhar no mesmo ramo que você, vai nos manter próximos… E eu não quero acabar daquele jeito novamente, indefesa.
Era previsível que ela descobrisse da guilda, já que a internet da cidade Alfa devia estar comentando bastante sobre o assunto.
— Eu acho que você tem razão — falei enquanto me ajeitei na cama para descansar — Vai ter uma longa jornada, pelo visto, mas vou te ajudando conforme eu aprender algo.
Ela deitou do meu lado. A cama era meio pequena, mas ela deu um jeito.
— Vou ficar aqui até você melhorar um pouco, tudo bem?
— Tudo bem — queria realmente que ela ficasse ali.
E vou deixar vocês na curiosidade sobre o que aconteceu depois.
——-
Acordei no dia seguinte, uma segunda-feira, já sem dor. Ângela saiu ontem a noite, para se preparar para mais um dia de trabalho. Fiquei muito surpreso por ela ter se recuperado tão rápido e também o restaurante ter voltado ao funcionamento, porém ela me disse que tinham funcionários do governo que eram renascidos e resolveram o problema na estrutura depois do combate.
Houve apenas uma morte de cliente e hoje haveria uma cerimônia no lugar para orar pelas vidas perdidas naquele dia. Ângela tinha me contado que muitas pessoas de fora falavam que um descontrolado entrou e matou os criminosos, que era um monstro. A polícia guardou bem o que eu fiz naquela noite e fiquei muito feliz por isso. O meu celular apitou e quando peguei para olhar, notei que Roberto me mandou uma mensagem.
“Hoje é seu primeiro dia de treinamento, venha para a sede da Guilda, com roupas leves. Precisamos que você aprenda os básicos. Serei seu professor”
Deixei o celular na cama e fui me preparar para um dia seco. Roberto podia ter uma aparência rígida, mas era um cara bem legal, me ajudou muito no dia do recrutamento e gostava muito dele. Não podia ser tão ruim, né?
Me arrumei como foi solicitado e me preparei mentalmente pelo que poderia estar por vir. Mandei uma mensagem de bom dia pra Ângela e me surpreendi com a resposta rápida dela, não consegui manter o sorriso. Fui tranquilamente fazer o café da manhã. Foi tudo normal e logo me vi saindo do prédio para pegar o transporte público direto para base. Demorei uma hora, mas cheguei com vinte minutos de antecedência na frente do portão. A título de curiosidade, subi toda a colina a pé e muitos dos moradores locais me deram bom dia, algo que eu não estava acostumado.
O velho Cain estava trabalhando na vigília. Ele acenou para mim e veio se aproximando.
— Pronto pro primeiro dia?
— Sabe que não sei? Tô com medo de ser pesado.
— E vai ser — ele disse tirando o boné da cabeça — Mas vai ser bom.
— Espero…
Ele me acompanhou na caminhada até a parte interna do prédio, depois da porta automática de vidro. Estranhei que até agora não tenha encontrado nenhum membro além dele e me perguntei quando encontraria com alguém. Quando chegamos na frente do elevador, ele parou e olhou para mim.
— Não é público, mas estão te classificando como Rank C até agora, pode aumentar dependendo do seu desempenho — ele pausou — Com certeza vai aumentar, disseram para mim que sua capacidade é muito além disso.
Engoli em seco, nunca esperei ouvir algo desse tipo. Além disso, quando revivi, me disseram que eu pertencia ao Rank mais baixo e teria de ralar para sair dele. Quem diria que manipular pequenos objetos poderia ser uma habilidade tão interessante?
— Mas calma, você ainda vai ter que atuar para realmente receber esse Rank.
— Como assim?
— Missões, garoto — ele disse — você vai ter que provar que merece.
Entendi. Eu ainda precisaria mostrar para a sociedade os meus poderes. É, não poderia ser tão fácil como imaginava, ainda tinha muito chão para que o meu salário aumentasse. Sim, os salários dentro de uma guilda variam muito dependendo do seu Rank e também do seu desempenho em missões.
Eu sabia que teria de me arriscar, já que o trabalho das guildas era literalmente lutar contra renascidos criminosos ou enfrentar descontrolados, priorizando suas vidas, já que não era escolha deles terminar daquele jeito. Fiquei pensando se poderia acabar daquele jeito e esse se tornou o meu maior medo, por isso faria de tudo para me manter no lugar. E para isso, deveria me empenhar no meu próprio treinamento.
— Obrigado, senhor!
— Não precisa agradecer, rapaz, só se cuide.
Ele apertou o botão do terraço, o décimo andar. Respirei fundo e sorri para ele, que logo voltou ao seu trabalho na vigília. Esperei o elevador de metal subir enquanto me encarava no espelho. Vesti um shorts de esporte que ganhei de Matias para jogarmos bola nos fins de semana, um tênis comum e uma camisa de lã simples que encontrei nas minhas gavetas. Não lembrava de ter comprado isso no shopping local.
——
Assim que a porta abriu, fiquei boquiaberto. Era um espaço enorme, com um tatame gigantesco no meio. Era um terraço, porém percebi que as muretas eram altas e o vidro temperado servia como teto para aquele lugar. Havia algumas máquinas de ar condicionado posicionadas estrategicamente. Tinha uma casinha no fundo, como se fosse um depósito e vi que Roberto tinha acabado de sair de lá, com alguns pesos e um colete que parecia um daqueles usados por atletas, lotado de ferros para aumentar o seu peso.
Ele não disse nada, apenas sorriu e me entregou o colete que eu coloquei prontamente. Notei que os cinco pesos eram bem menores que o normal e também que posicionou os cinco ao redor do tatame. Assim que estava pronto, ele voltou até mim e cruzou os braços enormes dele.
— Certo, para o seu primeiro dia, você vai manipular esses pesos comprimidos — ele disse — Você precisa exercitar sua habilidade.
— Tudo bem, vou fazer.
Foi difícil pra caramba. Era como se eu estivesse tentando levantar uma mesa com um dedo só, mas consegui depois de muito esforço.
— O que está fazendo? — ele foi ríspido no tom de voz.
— Levantando o peso, não era isso?
— Você entendeu errado… É para levantar todos.
É… Seria difícil. Passei a próxima hora tentando erguer eles. Era diferente de como eu fazia com moedas, mas eu consegui em algum momento ter essa consciência. Ele me fez levantar os pesos repetidamente, como se eu estivesse treinando uma parte do meu corpo. Quando passou uma hora, ele olhou para mim.
— Você vai fazer o seguinte agora — disse — Enquanto levanta todos os cinco pesos, você vai arremessar um deles até onde estou.
Ele não estava mais do que dez metros de distância de mim, não parecia que seria muito complicado, porém, fracassei de primeira. Não consegui nem três metros.
— Você está brincando — ele segurou a risada.
— Ei, vai ferir meus sentimentos.
Não aguentei e perdi o controle por causa da crise de risos. Roberto foi bem compreensivo e entrou no depósito, voltando com algumas bolas de borracha e uma garrafa de água. Ele jogou para cima e com um movimento involuntário, sabendo que não cairia perto de mim, puxei o objeto para a minha mão.
— Viu? Seu poder já está melhorando, até a velocidade em que puxa os objetos aumentou — ele riu — Seu progresso foi bom com apenas uma hora, imagine fazer isso por um mês inteiro?
— Um mês? Todo dia?
— Não, você vai descansar nos finais de semana para aguentar o que vem depois.
Abri a garrafa e tomei um pouco de água.Olhei Roberto nos olhos.
— Vou tentar mais uma vez, posso?
— À vontade.
E voltei ao treinamento, focado em melhorar rápido o bastante para que logo pudesse usar minha habilidade de maneira efetiva. Quanto mais eu me dedicasse, mais forte ficaria e estaria pronto para defender aqueles com quem me importo. Por algum motivo, não conseguia tirar Ângela da cabeça.
——
O treinamento se prolongou até de tarde. Foi das dez horas da manhã até as duas da tarde focado em conseguir lançar os pesos. Mas, infelizmente, só consegui até os sete metros. Roberto decidiu fazer uma pausa para o almoço e me trouxe um sanduíche do depósito. Comemos juntos enquanto ele me explicava os movimentos que deveria fazer para ficar mais confortável durante o uso dos meus poderes.
Assim que terminamos de descansar, senti que todo aquele esforço finalmente estava cobrando do meu corpo, mas não desisti e decidi ir até o final do dia sem reclamar, já que queria manter uma boa impressão.
— Certo, a próxima etapa vai ser o seu controle em movimento — começou Roberto, ele pegou as bolas de borracha e as apertou — São bolas ocas que não vão te machucar, mas se atente quando for desviar delas.
— Você vai usar algum poder?
— Não, mas vai ser rápido o bastante para que você tenha um desafio, então não tire o colete e se mantenha segurando os pesos.
Concordei e fiquei empolgado, já que não parecia tão difícil.
— Só vai parar quando conseguir desviar de dez seguidas.
— Acho que consigo.
Não parecia tão difícil… Né?
E quebrei a cara novamente.
Não importava o quanto eu me dedicava no controle e na minha própria velocidade. As esferas sempre raspavam em mim na segunda jogada. O meu corpo fadigado pesava sempre ou eu simplesmente não conseguia manter o controle dos pesos. Roberto parou quando viu que não estava chegando a lugar nenhum.
— Se o seu corpo não acompanha, use o seu poder.
— Como assim? — não estava entendendo a proposta daquela prática que era na verdade bem simples.
— Você vai entender, apenas se concentre.
— Certo!
Demandou mais vinte minutos até que consegui finalmente desviar de três seguidas sem muito trabalho. Foi na quarta vez que finalmente entendi o que deveria fazer. Quando Roberto arremessou uma bola direto no meu peito, compreendi como o meu poder deveria atuar naquela atividade.
Me concentrei completamente na esfera e a empurrei com o meu poder, facilitando a minha esquiva. A esfera voou e rolou no chão até uma das paredes. Fiquei extremamente feliz e pulei de alegria, mas vi que Roberto estava rindo e me perguntei o motivo, até que percebi os pesos caindo no chão.
— Ótimo que entendeu, agora novamente.
Prosseguimos o dia todo com isso. Melhorei muito, mas foi preciso interromper o treino quando deu dez horas da noite e meu corpo mal se aguentava de pé. Ele deu de ombros e guardou tudo. Ele me deu um retorno positivo sobre o dia e disse que não esperava que eu fosse dominar aquela arte tão rápido, algo bem normal para um principiante, mas fui elogiado pelo meu esforço e dedicação, mesmo cansado e cheio de dores, sem contar os machucados que ainda tinham se curado totalmente. No final das contas, estava indo bem.
— Dez horas da manhã aqui, chegue preparado e é melhor não haver reclamações.
— Sim, senhor!
E foi assim que meu treinamento infernal para me tornar um Renascido capaz de me defender começou.