Shihais: Remanescentes da Aura - Capítulo 30
[ Campo de Treinamento 1 da Academia Shihai de Asahi, às 13h. ]
Um local vasto a céu aberto com solo terroso e um muro branco circular protegendo a área acessível por um grande vão, é o paradeiro dos 15 alunos da turma 1F, espalhados em grupos.
À certa distância, construções de cimento e equipamentos de treino como barras, halteres, tatames etc., contam com a iminente vinda do suor árduo… ou lágrimas.
Pássaros cantam enquanto o sol resolve mirar direto no rosto de Akemi, que de roda formada com Miya, Aruni e Sho, protege os olhos do sol ofuscante para analisar os arredores.
Todos estão aqui? Pelo visto, sim… Nihara está lá longe com aqueles… “amigos” dele. Espero que continuem por ali, distantes…
Outra preocupação vem.
E como será que é o instrutor? Imagino um velho sábio que ensinará o caminho do corpo perfeito… Não, clichê demais. Deve ser um gigante musculoso com cara de poucos amigos… Mas isso também é clichê! O que restaria…? Sabe, é melhor nem pensar mais.
Miya, sem papas na língua e a menor paciência, resolve cruzar os braços para verbalizar a pergunta que já está na ponta da língua de todos: — Acho que o instrutor está quase se atrasando. Alguém tem relógio? Ou uma bola de cristal?
Aruni diz ansiosa: — E-eu não… Você tem, Sho?
— Um relógio? Não. Quem dirá uma bola de cristal. Até quase cheguei atrasado aqui, não tive tempo de comer nada — Claramente Sho não queria estar onde está.
— Pois é — Akemi reflete com um ar de detetive — você ainda não nos disse onde estava.
— Na verdade — Sho tem o olhar perdido no vazio — nem eu sei o que aconteceu direito…
Sem que alguém consiga se aprofundar sobre o caso misterioso de Sho, Nikko surge rapidamente, jogando um braço em volta do pescoço de Aruni, assustando-a.
— Aah!
— Calma, Arunizinha! Sou eu! Estava com a Kyoko, finalmente consigo chamar aquela garotinha pelo primeiro nome, é tão fofo…! E então, pessoal! O que tá pegando?!
— Estamos esperando o instrutor — informa Miya — já deve ser uma da tarde e nada dele aparecer.
Nikko arregaça a manga do braço direito que envolve Aruni.
Oh! Ela tem um relógio… E aquilo é feito de quê?!
Com uma caixa de prata esterlina polida, mostrador de marfim, ponteiros de aço azulado, vidro de cristal e uma pulseira de couro albino, o relógio de Nikko recebe todos os olhares da roda. — Corrigindo, são meio dia e cinquenta e nove! Será uma hora da tarde em três… dois… um…
Fiiiiiiiiu-BRUUUUUUUUUUUUM!
Como se o próprio céu estivesse se vingando da terra, algo atinge o chão diante dos alunos como um meteoro cortador de ventos, levantando uma tempestade de areia que teria deixado qualquer deserto orgulhoso.
— Cof cof cof… — Akemi é o único a tossir.
— INFERNUS! POR ACASO ALGUÉM AQUI TEM ALERGIA À AREIA?! — uma voz masculina, grave como a de um leão, mas com um toque histérico, explode no ar.
O-o-o que é isso?!
No meio das baixas nuvens arenas, uma imensa silhueta escura se forma antes da névoa começar a se dissipar sutilmente.
Ainda abraçada à Aruni, Nikko também não consegue segurar a tosse enquanto abana a poeira à sua volta. — Cof cof. Ai, nossa! Que desagradável! De onde veio isso…? Op! — Ela entra em alerta ao ver o que a areia escondia.
Na posição de descansar, um homem de aparentemente quarenta anos, vestindo apenas coturnos, uma calça verde escura camuflada e um quepe preto, exibe músculos que provavelmente têm seus próprios músculos menores. Seus olhos castanhos saltados, barbicha abaixo da boca e pelos no queixo acentuam uma cara decidida a intimidar qualquer um que cruze seu caminho.
Cicatrizes pelo corpo do militar contam histórias de guerra, provavelmente envolvendo feras indomáveis e batalhas épicas que fariam qualquer um reconsiderar suas escolhas de vida; e no pescoço, um pingente de prata em formato triangular completa o visual, a cereja de um bolo de terror.
Todavia… apesar de toda essa demonstração de imponência, o nariz romano e a altura do militar gera dúvidas nos alunos. Afinal, ele está mais para “versão compacta” do “gigante musculoso”.
— ESTÃO ESPERANDO O QUÊ?! SE PERFILEM EM ORDEM NUMÉRICA!
Os alunos se alinham em um piscar de olhos, todos lado a lado em descansar, usando de referência a direita de Akemi — o 01 — que de olhos fechados continua a tossir sem parar com as mãos na boca.
— Uh-cof cof cof!
— QUE P#RRA É ESSA, RECRUTA?!
O rapaz abre os olhos e espia à sua direita, percebendo a pose de todos os seus companheiros, assim, ele se corrige abruptamente. Mas ao ver a sua frente, se depara com o militar quase colado em seu rosto e perguntando: — É o Zero Um, guerreiro?! — Dessa vez, estranhamente a voz soa afinada, falha e nasal. Embora ainda masculina, o tom cômico não deixa de causar medo nos inexperientes, especialmente por causa dos olhos arregalados.
— Emm… Sou eu, senhor!
Tá muito perto…! Calma, ele tem a minha altura? E essa voz agora… Estou seguindo ordens de um rato?!
O tom do instrutor realmente parece fino em certos momentos. — Excelente, Zero Um. Mais uma dessas e você felizmente terá que encerrar sua jornada vital aqui mesmo, é o ciclo de qualquer animal — mas em outros momentos, ele volta a ser grave e histérico — ENTENDIDO?!
— A-ahm…! Sim, senhor! — E lá vem o típico suor de alguém prestes a ser jogado numa piscina sem saber nadar.
O militar se vira para caminhar em frente aos alunos; sua voz grave, mas levemente contida, se espalha pelo campo. — BOM DIA, SENHORES! DEIXEM-ME ME APRESENTAR! SOU CONHECIDO COMO YUJIRO YURA, ALTO MAJOR COMODORO DE CAÇA DO SEXTO REGIMENTO ÁURICO! ESTRIPADOR DE URSOS E DEGOLADOR DE DRAGÕES! ENTRETANTO PARA VÓS, É MAJOR YURA!
Caçador… um shihai que doma e derruba feras de porte altíssimo. Ele não deve ser brincadeira.
O major chega até Sho — o 15 — e faz uma meia volta volver digna de qualquer desfile militar. — ESTAREI SENDO O INSTRUTOR DO CONDICIONAMENTO FÍSICO E TREINAMENTO MARCIAL DE VOCÊS! E COMO JÁ POSSUEM FORMAÇÃO BÁSICA EM UM INSTITUTO ÁURICO, CREIO QUE NÃO TEREMOS CONTRATEMPOS — informa ele, passando pelo 01.
Hmmmm…
O militar se vira novamente. — CHAMAREI OS SENHORES PELO NÚMERO DE IDENTIFICAÇÃO, SOU HORRÍVEL COM NOMES! ATÉ ESQUEÇO O DA MINHA MÃE! SEMPRE TENHO QUE OLHAR ESSE MALDITO PINGENTE PRA LEMBRAR, ENTÃO PREFIRO CHAMÁ-LA DE DONA MORTE… Nunca tive tanto medo na frente de outro ser… EEENFIIM! MESMO NÃO LIDANDO DIRETAMENTE COM VOSSAS AURAS, PRECISO SABER DO QUE O CORPO DOS MEUS RECRUTAS É CAPAZ DE FAZER! PARA ISSO, QUERO QUE CADA UM DEMONSTRE SUAS HABILIDADES ÁURICAS!
Akemi engole em seco. A última vez em que usou sua aura não foi recente.
Parado de perfil diante do 15, o major aponta para uma mesa de madeira um pouco distante e anuncia: — À MINHA DIREITA ESTÃO ALGUNS ARMAMENTOS, INCLUSIVE AS PARAFERNÁLIAS QUE VOCÊS DEIXARAM NA RESERVA.
Hmmm, dá pra ver katanas, arcos, escudos… Espera! Aquilo é… um ancinho? Quem usa uma coisa dessas como arma…?! Bom, às vezes deve ser daquela casinha.
Uma construção retangular colada ao lado da mesa de armas captura os olhares de Akemi.
As paredes brancas ligeiramente ásperas são clareadas pela luz do céu que invade as janelas quadradas com barras de ferro enferrujadas; mesmo assim, o interior não é visível pelos de fora, acessível apenas por uma porta de madeira lascada.
— E COMO PODEM VER, AO LADO DA MESA HÁ UM TROCADOR! DENTRO DELE, COLOCAMOS TODOS OS UNIFORMES DE TREINAMENTO IDENTIFICADOS COM O RESPECTIVO NÚMERO DE CADA ALUNO DESSA TURMA! DEIXEM ESSES GAKURANS E SEIFUKUS FEDIDOS DE VOCÊS DOBRADOS NO LOCAL RESERVADO E SE TROQUEM ANTES DE PEGAR O ARMAMENTO, CASO USEM… Então por gentileza, tentem não destruir ou matar alguma coisa… ZERO UM!
— S-sim, Major Yura!
O instrutor se aproxima, sua voz aumenta a cada passo. — TU ÉS A CABEÇA DA TROPA, A PONTA DA SETA, A REFERÊNCIA! TUDO COMEÇARÁ POR VOCÊ! ENTÃO NOS MOSTRE O QUE SABE FAZER DE MELHOR COM SUA CARCAÇA! — Ele para bem na visão de Akemi e olha aos céus, suplicando de mãos levantadas. — Ó deuses! Não deixem que minha baixa expectativa nesse bando de abomináveis piore no primeiro dia.
— Prometo dar o meu melhor, senhor!
— ARGH! ANDA LOGO! DIREÇÃO AO TROCADOR!
Tum! O rapaz leva um forte empurrão pelas costas e quase vai parar no chão.
Caramba! Esse cara não é meio bipolar? Parece até esquizofrênico…!
Dentro do trocador, Akemi é recebido por um ambiente escuro com feixes quadráticos vindos das janelas.
O local é examinado com atenção.
À esquerda, um longo balcão de madeira sustenta uma fileira de bermudas pretas e camisetas brancas precisamente dobradas de forma que números e nomes bordados no peito se sobressaiam. O primeiro da fila, identificado por “01, Aburaya”, silenciosamente aclama para ser usado…
A porta de madeira é vagarosamente aberta, e com passos lentos até uma área vazia diante da turma, Akemi se sente um peixe fora d’água com seu novo uniforme.
— PARABÉNS, ZERO UM! CONSEGUIU FICAR AINDA MAIS RIDÍCULO NESSES TRAJES! E QUE CICATRIZES E MANCHAS HORRENDAS SÃO ESSAS NOS SEUS BRAÇOS…?! ARGH! NÃO QUERO NEM OUVIR A RESPOSTA… APRESENTE-SE!
— Então… eu não uso armas. Devo me apresentar neste lugar aqui mesmo?
— Ah, é inacreditááááveeeel! — resmunga o major, histérico ao agir como se quisesse arrancar a pele da própria cara. Logo, sua feição raivosa busca o jovem isolado. — QUER UM PALCO PRA VOCÊ, ZERO UM?! PODE DEIXAR QUE EU FAÇO!
O major imperceptivelmente se agacha e coloca as mãos no solo.
BRRRUUUMM!
O chão treme, e um tablado de areia é erguido debaixo dos pés de Akemi, quase fazendo-o perder o equilíbrio. — Woooo-ow!
Uma aura de areia? Incrível!
O instrutor, com os braços cruzados insinuando que acabou de esculpir uma obra-prima, pergunta: — Está de bom tamanho pra você, Zero Um?!
— Sim, Major Yura!
— ENTÃO AGILIZA!
Neste momento, ter a atenção de todos é algo que Akemi definitivamente não queria. Especialmente o olhar de Nihara, que o observa em uma expressão de desgosto capaz de murchar as mais belas flores.
Caramba, como eu começo?!
— É… ahem! Pois bem… minha aura é de eletricidade.
— E qual o tipo? — pergunta o instrutor.
— T-tipo?
— EMANADOR, DOBRADOR, RETRATOR…! ME DIGA QUE INFERNUS TU ÉS! ARREGO, ZERO UM!
E eu sei lá o que essas coisas significam!
— Eu acho que… emanador?
— … Você acha, Zero Um? — O instrutor está incrédulo.
O garoto não consegue responder; seus olhos procuram refúgio, mas obviamente não há onde se esconder, ele é o destaque do momento.
— QUE SEJA! — grita o major, já quase perdendo a paciência — MOSTRA LOGO O QUE SUA AURA FAZ!
— E-eu consigo fazer uns truquezinhos com as mãos! — Akemi se prepara para tentar direcionar correntes elétricas de uma mão à outra.
Faz tanto tempo que não uso isso… Não posso falhar!
O garoto fecha os olhos para se concentrar ao máximo. Suas mãos se aproximam, deixando um espaço entre elas, e ele busca aquela energia que deve estar dentro de si…
Mas não está…
— E ENTÃO?! ESTAMOS ESPERANDO!
— E-eu tô tentando! — responde Akemi, mexendo os dedos de maneira estranha.
— … Tá tentando me aloprar, Zero Um?
— N-n-não, major! Eu juro que estou tentando, ma-
Irado, o instrutor pisa fortemente no chão; seguidamente, mais um tremor vem abaixo dos pés do garoto destacado.
BBBBRRUMM!
Akemi é bruscamente alavancado por um firme pilar de areia inclinado, voando no ar como um boneco de pano desajeitado. — WAAAAAAA-
Poof… Zonzo, ele cai de costas no chão, entre Nikko e o Major Yura.
… Ai… Caramba… o que foi isso…?
Repentinamente…
E-quêêê…?!
Ele é erguido no ar pelo colarinho do gakuran.
— ACHA QUE MINHAS TUTORÍAS É HORÁRIO PRA ACOCHAMBRAR?!
— N-não é isso! Eu… eu só…
O major solta o rapaz, que cai de cóccix no chão.
— VOLTE PARA SUA POSIÇÃO! RÁPIDO, SEU BISONHO!
Catando cavaco, Akemi se levanta, tentando manter a dignidade… se é que ainda lhe resta alguma. Em descansar, ele ofega por ver a própria alma ir e voltar.
Enquanto se move lentamente para o próximo aluno, o Major Yura diz: — Sua existência me enoja, Zero Um. Não dá nem vontade de te punir.
— Perdão, senhor… — Aqui temos mais um vacilo.
Vvumm…
O instrutor novamente surge em olhos aterrorizados. — PERDÃO?! Hmmm… — ele coça a barbicha, pensativo. — Perdão rima com flexão.
— F-flexão?!
— POSITIVO, RECRUTA! DEIXE TRINTA PRA MIM!
TRINTA?!
— A-a-agora?!
— IMEDIATAMENTE!
Akemi se joga no chão para flexionar, mas sua posição… bem, digamos que é mais apropriada para um grilo do que um humano.
Quando ele tenta executar então…
— Está com dificuldades, Zero Um?
— Uuff…! De forma alguma! Eu consigo!
O major se agacha e olha medonhamente no rosto de Akemi para sussurrar: — É impossível você durar mais uma hora aqui, sabia? Mas sabe quem eu sou, Zero Um? — Antes de qualquer resposta, ele bate no peito com orgulho e grita na orelha do jovem — EU SOU O IMPOSSÍVEL! — Em pé, ele volta a se dirigir à turma — NÃO IMPORTA O QUÃO FRACOS SEJAM, OS TRANSFORMAREI EM MÁQUINAS MORTÍFERAS! MAS PARA ISSO, VOCÊS IRÃO SUAAAR, SANGRAAAR E CHORAAAR DE ARREPENDIMENTO POR ESTAREM VIVOS! Pelo menos é o que eu penso de alguns… Ah! E se alguém quiser desistir, é só falar como uma criancinha: Ai, major! Sou muito frágil e inútil! Eu não consigo e irei desistir…! ESTAMOS ENTENDIDOS?!
— SIM, SENHOR! — brada a turma, vibrando o solo em que Akemi ainda tenta sobreviver às flexões.
— Excelente… ZERO DOOOIS! — O instrutor se posiciona cara a cara com Nikko, que mesmo numa situação tão séria, mantém o olhar confiante e sorriso fechado.
Vamos ver no que isso vai dar…