Shihais: Remanescentes da Aura - Capítulo 41
Uma cama de solteiro pela esquerda do dormitório ampara Nikko.
— Rrrrnnnn… Zzzzz… He hiii… Rrrrnnnn… Zzzzz…
A expressão relaxada e alegre denuncia que a garota navega no estágio mais profundo do sono, provavelmente vivendo um dos melhores sonhos que sua mente já ousou criar…
Miya toma a frente para entrar no local. — Não precisa se preocupar com o tom de voz, com certeza Nikko não irá acordar agora.
Quando Akemi passa pela porta, sente um cheiro fresco e levemente adocicado no ar.
Que cheiro peculiar, é algum sabonete de garotas?
O dormitório possui um formato retangular, mas as paredes brancas se curvam suavemente ao fundo, acompanhando a arquitetura arredondada do edifício. Uma ampla janela acompanha a parede à frente de ponta a ponta, mostrando a vastidão de uma noite escura e silenciosa sem uma mísera estrela no céu.
À esquerda, Nikko dorme largada em uma cama solitária, e à direita, um beliche simples e sem proteções domina o canto.
Bem ao lado do beliche, na parede à frente, uma cortina branca, meio amarrotada e fechada, pendura-se de uma haste curva, improvisada como um trocador.
Já no chão, um tapete preto reflete a única luz presente vinda da lua, solitária em sua vigilância celestial. Seu brilho pálido se espalha pelo quarto, dando ao ambiente um clima de tranquilidade…
Akemi está paralisado, seus olhos ficam presos pela escuridão lá fora, que parece puxá-lo para algum lugar distante.
A ausência de estrelas e o silêncio absoluto exercem um fascínio impossível de resistir…
— Ei, tá fazendo o quê parado aí? — Miya aparece no campo de visão do rapaz, seu braço esquerdo sustenta roupas vermelhas e dobradas, enquanto sua mão esquerda estendida oferece um pequeno saco de papel kraft((O saco de papel kraft é um invólucro simples e robusto, feito de papel marrom natural de textura ligeiramente áspera. Normalmente, é usado para guardar alimentos.)) — toma.
— Oh — Akemi se desperta da hipnose — o que é isso?
— Taiyakis((Taiyaki é um doce asahiano em formato de peixinhos, um bolinho feito com massa semelhante a waffle, tradicionalmente recheado com anko (pasta de feijão doce).)), são da Nikko, mas não tem problema você comer esses. Tem um monte nas gavetas dela.
— Gavetas? — indaga Akemi, pegando o saco de bolinhos.
— Cada dormitório tem três criados para cada aluno — Miya aponta para móveis de madeira sob a janela, levemente curvos como a parede em que encostam — nossas maletas, roupas e outras coisas estão ali. A da Nikko está à esquerda, a minha à direita, e a sua no meio. Pode dar uma olhada quando quiser. Enquanto isso, vou colocar as minhas roupas de dormir… — Com o kit de roupas dobradas, ela vai ao trocador à direita.
Caramba! Esqueci que poderia usar um pijama aqui… Dormir com esse gakuran não deve ser nada confortável, pelo menos não estou fedendo… Mas isso não vem ao caso agora, o que está acontecendo não parece nada certo.
— O-olha… — Akemi está receoso — isso tudo não é meio… perigoso?
— O que é perigoso? — pergunta Miya, ao fechar a cortina. Sua silhueta aparece difusa pela transparência da cortina fina, e agora, apenas sombras de movimentos representam a troca de vestes.
— A gente já conversou sobre isso. O Marechal Ichikawa… ele não me quer perto de você, imagina perto da própria família dele.
— Sério que você ainda pensa nisso?
— Até parece que você não viu o que ele pode fazer.
— Eu vi sim. Até porque é somente ele quem protege toda a ASA.
— … Sozinho?
— Toda a academia está ao alcance dele. Nada escapa daqueles olhos. Afinal, sabemos bem que ele é o próprio vento. Para ele estar entre nós neste exato momento não custaria nada.
— E-então por que você continua o desafiando?
— E o que você quer que eu faça? Jogar nosso acordo no lixo?
— Não é bem isso… Não podemos nos dar o luxo de causar problemas maiores, se continuar assim, jogaremos tudo isso fora. Além do mais, a gente mal se conhece pra se arriscar desse jeito um pelo outro…
— Então… — Miya abre a cortina, e seu olhar neutro à janela é revelado juntamente das novas vestes: um pijama de gola alta, vermelho intenso, ornamentado com flores douradas. Seus cabelos, agora livres das presilhas de chamas, caem lisos sobre a testa — precisamos nos conhecer melhor.
Essas roupas… são tão diferentes… MAS O QUE ELA QUER?!
— Ahm… Nos conhecer melhor?
— Sim, será melhor para a nossa confiança — concorda Miya, depositando o seifuku usado sobre o móvel próximo.
Akemi continua confuso. — E… como você quer fazer isso?
Com um giro simples e gracioso, a garota se dirige até a escada do beliche. — Vá nesta cama de baixo. Ficarei na de cima — quando coloca o primeiro pé descalço no degrau de madeira, seu olhar se volta como o de uma predadora que já marcou território. — Nem tente me contestar… — Assim, ela segue subindo.
— Ah, ok…
Com o saco de taiyakis entre os dedos, o garoto tira os tênis pretos e, ao se aproximar do beliche inferior, puxa o cobertor para o lado e se senta, inclinando os ombros um pouco para trás na tentativa de encontrar uma posição confortável com os pés no chão.
Todas as camas daqui são tão boas assim?
— E então — diz Miya, escondida no beliche de cima — conta aí sobre você — sua voz doce soa em um tom curioso e travesso.
— Sobre mim? — indaga Akemi, abrindo o saco de bolinhos.
— Até agora só conheço seu lado tímido e desajeitado. Quero saber quem é você de verdade, de onde vem.
Palavras são procuradas enquanto um taiyaki recebe a primeira mordida. — Bom… como posso começar…? Eu nasci em outra cidade, que por sinal, é bem perto de Toryu.
— Sério? Onde?
O rapaz hesita, o momento em si o traz um peso indesejável. — … Mushi…
— A cidade de descarte?! — A revelação surpreende.
— Sim…
O silêncio impera por um instante; esse detalhe parece ter gerado surpresa e empatia.
— … Como você vivia lá?
— Era uma cidade humilde, todos os moradores meio que se conheciam, mas… eu era muito tímido. Nunca me aproximei de ninguém.
— Nem dos seus pais?
— Eu nunca vi o meu pai, e a minha mãe… ela… faleceu no meu parto…
— Ah, Akemi… eu… Desculpa por perguntar. Eu sinto muito.
— Tá tudo bem, de qualquer jeito era impossível eu conhecê-la… diferente do meu pai…
— E quem cuidou de você?
— Meu avô, por parte de mãe. Ele… bem, a gente já discutiu inúmeras vezes, mas é a pessoa mais importante da minha vida. Me criou como filho. Foi ele quem me deu o nome… Se bem que ele poderia me dar um melhor, não?
— Ei! Aposto que ele escolheu com muito zelo. Não desmereça a criatividade do seu avô. Tenho certeza que ele só quis o melhor pra você.
— Também penso assim. Por mais que ele fosse contra os meus maiores desejos, ele fazia de tudo pra me proteger e dar a melhor educação. Só que de onde eu vim, era difícil ter uma vida decente no futuro, parecia que tudo era quase impossível, não dava pra sonhar alto. Mas agora eu estou aqui… — O jovem abaixa a cabeça, refletindo suas lembranças.
— … Akemi… — Miya chama, a escuridão do dormitório torna sua voz mais densa, quase solene.
— S-sim?
O que será que ela quer agora? Esse tom me dá um mal pressentimento…
— … Você sempre foi trivial, não é?
O QUÊÊÊÊ???!!!
O garoto sente o estômago revirar.
M-M-MA-MAS EU NEM CHEGUEI A FALAR NADA! COMO ELA CHEGOU NISSO?!
— E-ei… Miya, do que você tá falando? He-hehe… — Uma risada fraca acompanha o engasgo com a própria ansiedade. Parecer descontraído se torna impossível no instante em que o suor frio escorre, flagrando o nervosismo estampado no rosto.
— Não adianta disfarçar. Me diga logo, sim ou não?
Deixando o saco de bolinhos de lado, Akemi se deita de lado na cama, cobrindo-se e encarando a parede. Ele sente um nó de emoções confusas: tristeza, vergonha, até mesmo um toque de revolta.
— Akemi?
— … Sim… eu era trivial até poucos dias atrás. Como descobriu?
— Bom, a cidade de Mushi poderia ter sido uma grande metrópole, sabe? Igual a Toryu. Mas séculos atrás, Mushi acabou perdendo toda a sua comunidade áurica para Toryu, a sede do império na época. Ideais fascistas e preconceituosos surtiram efeito até que 100% da região imperial fosse composta pelos áuricos mais poderosos, assim consolidando Toryu como a capital de Asahi. Mas agora, mesmo que o governo tenha mudado e boa parte dos não áuricos consigam ter uma vida melhor, nada disso foi o suficiente para mudar drasticamente o rumo das coisas. Enquanto Toryu abriu portas para triviais, Mushi ficou tão marcada que até hoje não há um único áurico que viva lá.
Deitado, Akemi sorri sem graça. — Acho que me entreguei só de falar que vim de lá, né?
— Para ser honesta, entrar num combate de auras sem ter nenhuma confiança em suas habilidades é impensável, o fato de você ter nascido em Mushi só me faz perguntar ainda mais se você é realmente áurico há muito tempo.
— Eu não sei explicar o que passou na minha cabeça naquele dia…
— Era claro que você estava perdido na luta. Entretanto, suas expressões diziam uma coisa, mas seu corpo tinha outras vontades. Mesmo quando você se rendeu, algo dentro de você ainda queria lutar, seus instintos gritavam por aquilo, enquanto sua mente… bom, ela não estava nem um pouco preparada, certo?
Incapaz de responder imediatamente, Akemi processa os comentários com atenção, e se revirando para olhar as tábuas de madeira que suportam o beliche acima, reflete.
Ela fala com tanta convicção sobre mim, mas ela não parece nem um pouco errada… É óbvio que ela sabe de algo a mais do que eu.
— Realmente, alguma coisa agia por conta própria, não sei se é certo dizer que eram instintos, mas algo além disso, minha aura parecia querer me proteger.
— Às vezes, em momentos cruciais da nossa vida, a aura age por conta própria, isso se chama cataclisma áurico. Emoções como medo, alegria, tristeza e ódio podem fazer com que percamos o controle de nossas energias áuricas, e a chance de um desastre acontecer se torna bastante alta, principalmente quando nossas habilidades estão bem aprimoradas. Para sorte de Nihara, você claramente era um iniciante.
Akemi ergue o tronco da cama, novamente ficando sentado, sua mente está ainda mais confusa.
Cataclisma áurico…? Já ouvi o significado disso antes.
— Você quer dizer que, se eu tivesse experiência, eu poderia ter vencido?
— Não exatamente. Só quero que entenda uma coisa, a aura é uma extensão de você, e ela pode te proteger, mas o verdadeiro crescimento vem de você. Quem tem o maior potencial de evoluir e aprender novas habilidades é você, a aura por si só não tem tanta capacidade comparada ao seu usuário.
O que Miya diz não entra bem na cabeça de Akemi, são tantas informações que é difícil conceber a realidade do mundo áurico.
Seu cerne ainda é de um simples trivial.
— … Eu não consigo entender, você fala como se ela tivesse vida… — Vup! — Oh?!
Miya surge de cabeça para baixo, pendurada na borda da cama de cima, com o rosto a centímetros de Akemi, que arregala os olhos ao ver a expressão risonha e um tanto quanto provocativa da garota. As mechas pretas e rubras se misturam, pendidas como uma cascata de magma vermelho. — Você realmente não sabe de nada, né? — diz ela, com um sorriso astuto; seus olhos se apertam levemente, quase se fechando.
O rapaz fica sem reação por um tempo, chegando a pensar que viver em uma comunidade áurica sem conhecimentos básicos pode ser tão perigoso quanto andar entre leões; mas, por fim, passa a mão na nuca e ri da situação. — Hehe, é… Acho que ser formado em uma escola para não áuricos não vai me ajudar num lugar como este.
— Fique tranquilo, dará tudo certo! Vamos te ajudar.
— E teremos tempo pra isso?
— Claro! Mas agora não é hora, tá muito tarde. Amanhã a gente começa.
— Amanhã…? Caramba! — Akemi coloca as mãos na cabeça — o que terá amanhã?!
Um sorriso meio é a resposta. — Hihihi, não é nada com o Yura, você não vai desmaiar de novo. Agora durma!
Vup!
Miya desaparece no beliche de cima, deixando Akemi sozinho na imensidão de seus pensamentos.
— Eh…? Espera! Você nem me falou sobre você! Eu tenho muitas perguntas!
— Rrrrnnnn… Zzzzz…
É sério isso?!