Sirius - Capítulo 58
Capítulo 58: Mnemósine (Final)
— A sensação de estar vivo!
A voz grave, rouca e pesada vinha da garganta de Jihan, seu cabelo preto longo estava esbranquiçado, como se tivesse esquecido da sua cor. Sua pele, pálida, como se estivesse esquecido o sol. Seus olhos, pretos, como se tivessem esquecido do seu brilho. Seu corpo também parecia haver se esquecido de suas feridas, pois elas lentamente desapareciam.
— Agora… Hm? Você ainda está consciente?
De dentro do buraco do chão, o homem sentiu uma leve presença, fraca, mas ainda viva e se regenerando.
BRAM
Subitamente, cinco criaturas levantaram-se do solo e em frenesi o atacaram.
— Sem graça…
Dando um passo para trás, como se tivesse em uma caminhada no parque, acertou uma palma no rosto do monstro mais próximo, seguida de uma no estômago do segundo. Os toques leves prosseguiram graciosamente por menos de cinco segundos, sem parecer apresentar ameaça alguma às criaturas. Mas, no momento em que a sequência parou, todos os cinco explodiram no ar em centenas de pedaços.
— Se esqueçam de como é ter um corpo…
Da cratera, a maldição que havia sido enterrada por Li saltou. Sua estrutura estava mais macabra, raízes que lembravam braços numeravam dezenas pelo seu corpo, atacando o homem por todos os ângulos.
— Me surpreende você ser tão fraco e conseguir manter a consciência na minha presença… — observou — Bem… ᛈᚩᚱᛖ!
Um idioma desconhecido saiu de sua boca, mas o que ecoou pela floresta foi um som diferente.
“Pare”
O demônio, que havia investido todo o resto de sua energia em uma última investida, simplesmente parou no ar, congelado. Tudo que se mexia eram seus olhos, que mesmo em um tom vermelho fosforescente, exalavam um sentimento diferente do de deboche e superioridade que possuíam antes.
— Você está confuso… tudo bem, é exatamente dessa forma que muitos se sentem… — disse, apaticamente. — Até há pouco tempo você pensava que nada poderia te parar, mas está tudo bem, eu te dou permissão para pensar dessa forma, pois… você também sou eu…
Estendendo sua mão na direção do monstro preso no ar, o homem fechou sua palma, como se agarrasse algo, e a puxou. Um pequeno cristal rasgou o peito da criatura e foi em direção a ele. A maldição, que até então estava congelada, caiu no chão. As raízes que compunham o seu corpo começaram a esfarelar, seus braços e pernas desfaziam-se no ar.
— DeVOLva… — repetia, enquanto, em vão, ela se arrastava, tentando alcançar o fragmento que havia sido retirado de seu corpo.
— Como eu disse… está tudo bem… a energia contida no meu fragmento que estava contigo me ajudou a acordar, é o mínimo que posso fazer… você vai esquecer dessa dor… e todos esquecerão de você… — disse o homem, vendo o que restou do monstro se desfazer completamente no chão. Quando ele apertou o cristal em suas mãos, o objeto se desfez, liberando uma fumaça preta que foi absorvida pelo seu corpo. — Agora…
COF COF
— Sangue? O que está acontecendo? Eu já curei esse corpo, ele deveria durar… será que ele ainda é fraco e não consegue sustentar meu poder?
O homem olhou para sua mão, ela estava tremendo, lagrimas de sangue escorriam pela sua face.
— Outro corpo, certo, eu preciso de outro corpo…
Vendo Matheus no chão, ele estalou os dedos. As raízes que já estavam frágeis se esfarelaram e libertaram o líder. Se aproximando do inconsciente, ele tocou seu peito.
— Ahn? Por que eu não consigo!? Por que estou preso!? O que tem de errado com esse corpo! — gritou em confusão. Fechando os olhos rapidamente, o homem analisou a estrutura corporal de Li. As veias de sua testa saltaram.
— ZILÁ! COMO OUSA TENTAR ME PRENDER NESSA ABERRAÇÃO, SEU DESGRAÇADO!
O grito furioso gerou uma onda de choque que estremeceu a floresta inteira. Mais sangue começou a escorrer pelos seus ouvidos e nariz.
— Traidor! Eu arrancarei a carne de seus ossos, rasgarei sua alma e afundarei sua existência no oblívio!
BLARGH
Mais sangue saiu pela sua garganta.
“Devo só deixar esse corpo morrer e renascer? Não… eu perderia muito poder e isso demoraria centenas de anos…” pensou, enquanto encarava o próprio sangue em suas mãos. “Esse corpo é talentoso… e suas memórias indicam que ele vai se encontrar com aquele verme algum dia… talvez eu deva só esperar o momento certo… sim…”
— Parabéns, garoto, você ganhou mais um tempo de vida, continue crescendo, ficando mais forte… o que são algumas poucas dezenas de anos… quando o esquecimento… é eterno….
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— Li… Li, acorda!
— Ele está realmente bem? Como pode estar tão ileso…
“O que está acontecendo?”
Jihan lentamente abriu os olhos, Lisa estava próximo a ele, balançando seu corpo e tentando acordá-lo, Glória estava de pé ao lado dela.
— Você acordou! — A sacerdotisa o abraçou sem pensar duas vezes, lagrimas inundavam seus olhos. Jihan instintivamente adulou sua cabeça. — Eu achei que você tinha morrido…
— É claro que estou vivo — riu. — Como eu poderia deixar uma pessoa tão adorável sozinha!
— Li… todos achamos que você estava morto… o que aconteceu? — perguntou Glória.
— O que aconteceu… eu me lembro de ter aplicado um golpe muito forte naquele monstro e… acho que derrotei ele?
— Você… não se lembra?
— Me lembrar do quê?
— Seu peito foi perfurado por uma lança!?
— Bem… não tem nenhuma ferida aqui… — Puxando o que restou da armadura de couro que agora estava completamente destruída, de fato, não havia nenhum ferimento de perfuração em seu corpo. — Aquela maldição conseguia utilizar de ilusões, tem certeza de que não foi isso?
— Ilusões… — Glória colocou a mão em seu rosto, sua cabeça estava doendo, não era uma explicação ilógica e Jihan não parecia estar mentindo. — É… faz sentido…
— De qualquer forma, cadê o Hans?
— Ah… ele está apagado, mas está bem — respondeu. — Ele tentou invocar uma criatura, mas falhou por algum motivo, o rebote deve ter o afetado.
— Matheus e Fynn?
— Eles também estão bem… Nós havíamos conseguido soltar o Fynn mais cedo e Matheus estava praticamente liberto quando te encontramos… provavelmente pelo mesmo motivo daquilo — respondeu, apontando para o céu.
— Daquilo…?
Olhando para o que deveria ser a copa das árvores, Jihan percebeu que as folhas que antes tampavam o céu caiam aos montes, muitas delas se desfaziam antes mesmo de tocar o chão. Mesmo sem serem tapadas, o sol já havia se escondido e a luz das estrelas não iluminavam tanto.
— Eh… quanto tempo apaguei, já está de noite?
— Algumas horas, na escuridão todos perdemos a noção de tempo… — respondeu a mulher. — Já ouvi falar de alguns demônios que conseguiam associar sua força com certos locais, uma forma de manter sua vitalidade viva mesmo quando seu corpo principal se desfaz… mas uma floresta inteira eu nunca tinha visto pessoalmente…
— Haha, isso não quer dizer que sou mais incrível ainda por derrotar esse monstro?
BAMP
— Aí, para que isso? Eu ainda estou machucado… — disse Li, colocando a mão onde Glória o havia dado um cascudo.
— Você merece! — respondeu, se virando de costas. — E Jihan… obrigada… por tudo.
Olhando para ela, surpreso, ele respondeu sorrindo: — Não precisa agradecer, somos um time!
— Hum… é, somos um time… bem, vou ver como estão os outros, eu quero sair o mais rápido possível desse lugar — concordou, saindo de perto deles.
— Hihihi, a senhorita Glória age dessa forma, mas ela quem estava mais preocupada com você quando o senhor não havia acordado ainda — comentou Lisa.
— Ainda com esse papo de senhor? Você pode me chamar de Li…
— Ah… Li… então, seu cabelo sempre teve esse detalhe?
— Detalhe?
— Sim, essa mecha branca… — respondeu, mostrando os fios brancos em meio ao longo cabelo preto.
— Mecha branca… acho que não… será estresse? Estou envelhecendo rápido demais?
— Hahaha, você é mesmo um senhor!
— Que maldade, não tenho nem 21 ainda, eu poderia muito bem ser seu irmão mais velho!
— Irmãozão? — disse Lisa.
— Ah, que nojo vocês dois… — Da mesma garganta da menina, uma outra voz saiu. A sacerdotisa ficou envergonhada e estava preparada para pedir desculpas.
— Isso é inveja? — Li, no entanto, apenas adulou sua cabeça novamente e, antecipando o que ela iria falar, continuou. — Não se preocupe, outro dia falaremos disso…
Lisa sorriu e concordou com a cabeça. Escondendo suas preocupações, o grupo tomou um tempo para respirar e aliviar a tensão. Com Jihan conseguindo se movimentar, eles lentamente carregaram os três inconscientes para fora da floresta onde haviam deixado os cavalos. O alívio e a felicidade de estarem vivos os manteve de pé. Nada sabiam, do que acontecia em um lugar muito distante dali.
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Uma fortaleza isolada do mundo se erguia no topo de uma montanha cinzenta. Suas paredes de pedra escura deixavam-na quase invisível na noite, exceto pelas tochas que estavam penduradas pelas muralhas. Os corredores longos e abertos se estendiam por dezenas de metros, levando a uma grande porta de ferro, decorada com inúmeras runas antigas.
RENKKKK
A porta se abriu quando um homem de armadura passou por ela. O soldado se ajoelhou perante um altar, cujo trono estava virado para a janela do salão, uma vista que compreendia tudo que estava abaixo da montanha.
— Mestre, um dos Aviccis, Ventris requisitou uma reunião entre todos os 12 membros — disse o soldado.
— Hahaha… — Uma voz áspera e profunda soou do trono. — Aquele velho é muito ardiloso, mas tudo bem… ele finalmente apareceu…
— Senhor?
— Minha cria finalmente chegou a esse mundo…