Um Alquimista Preguiçoso - Capítulo 80
Depois de passarem por mais algumas tendas, Xiao Ning e os outros voltaram para o local em que o palco estava montado. Neste momento, a quantidade de pessoas ao redor daquela área era maior do que antes e a movimentação, menor. Muitos pareciam buscar um lugar adequado para permanecer enquanto aguardavam por algo.
Nas ruas e por todos os lados, as lanternas que pareciam ser apenas decorativas começaram a ser acesas, muito embora a luz trazida por elas estivessem sendo ofuscadas pelo resquício de sol ainda presente.
― Logo as encenações começarão. ― disse o tio Chang, espremendo-se na multidão enquanto abria caminho para os outros passarem. ― Esse lugar vai ficar ainda mais cheio, então vamos para o palanque. Os Anciões das Famílias e os participantes do Festival da Geração do Caos podem assistir tudo de lá.
Enquanto seguia o grupo, Xiao Ning se permitiu desviar o olhar por um segundo e em meio ao amotinado de pessoas, não muito longe da área em que estavam, de fato, a alguns passos de distância, deslumbrou de uma vista que fez seus olhos brilharem e a boca salivar.
Ele se adiantou e puxou a manga da camisa de Xiao Chan.
― Ei, olha ali. ― Apontou para uma barraca singela, preenchida por três prateleiras de madeira, uma sobre a outra, as quais se viam ocupadas por garrafas de licor branco e vinho amarelo de arroz. ― O que acha de dar uma esquentada no corpo? Hehe! ― exibiu um sorriso cobiçoso.
Percebendo que o filho e o afilhado haviam parado, o tio Chang também interrompeu o avanço. Xiao Shui olhou para a direção apontada pelo preguiçoso e ao se dar conta do que se tratava, questionou:
― Você quer ingerir álcool pouco antes do evento começar? ― Franziu as sobrancelhas, estranhando a decisão. Não parecia algo sábio de se fazer; embebedar-se antes das batalhas.
― E qual o problema? ― indagou Xiao Ning. ― Assim, quando eu apanhar, não sentirei dor nenhuma. É o néctar dos deuses e o anestésico dos demônios! Ahahahah! ― caiu na gargalhada.
― Se você estiver são quando as lutas começarem, não irá apanhar! ― retrucou o tio Chang, exprimindo um tom de censura. Não via problemas nos mais jovens tomarem uma ou duas taças de vinho durante uma comemoração, mas era o tipo de coisa que se faz em família, não no meio da rua. Além do mais, exagerar na dose é algo ruim. E julgando pela última vez que serviu vinho ao afilhado, ficou com a vaga impressão de que ele não era dos mais controlados. ― Agora, vamos. Hoje não é dia de beber.
― Ê povo chato! ― resmungou Xiao Ning, antes de soltar um arquejo frustrado e retomar o avanço em direção ao palanque.
Passando pela multidão, contornando o palco que serviria de arena para os jovens cultivadores batalharem, o tio Chang guiou o grupo até o tablado elevado, do outro lado.
Neste momento, no palanque, os líderes das quatro Famílias não eram os únicos presentes. Diversas pessoas, algumas das quais Ning nunca tinha visto, marcavam presença conversando umas com as outras. À primeira vista, a atmosfera parecia animada, porém, olhando mais de perto, notava-se uma rivalidade amigável.
Sem poupar fôlego, os membros de cada Família gabavam-se de seus jovens representantes que logo gravariam seus nomes na história da cidade, travando lutas emocionantes. Antes mesmo das batalhas começarem, todos queriam provar o quão superior eram seus discípulos, falando de suas evoluções e conquistas ao longo do ano.
Aqueles Anciões mais astutos, aproveitavam a oportunidade para provocar o adversário e quem sabe, descobrir um ou dois segredos que pudessem trazer a vantagem para o seu lado.
Enquanto os mais velhos seguiam conversando e gargalhando, os jovens, aqueles que seriam o destaque da noite, fechavam-se em seus próprios mundos, repassando os planos que haviam formulado ao longo dos últimos meses apenas para esse dia.
Isolados em seus próprios pensamentos, a maioria demonstrava estar bastante ansioso. Para muitos, esta seria a oportunidade de suas vidas. Caso conseguissem algum destaque, não chamariam atenção apenas dentro de suas respectivas Famílias, como, devido a quantidade considerável de forasteiros, seus nomes poderiam vir a reboar para além das fronteiras da cidade. Para aqueles que desejavam entrar em uma Seita, esta era a chance de mostrar seus talentos.
Entretanto, a despeito do clima competitivo em algumas partes e a tensão em outras, existia um bando que parecia não dar a mínima para nada disso. Em seus olhos, a única coisa que se via era a empolgação por estarem naquele lugar e o medo por ficarem em evidência.
Andando pela plataforma enquanto se admirava com a paisagem das ruas lotadas, um grupo versátil era visto explorando o cenário sem a sombra de um Ancião limitando seus movimentos ao dizer o que poderia ou não trazer vergonha a Família. Era um bando de jovens e adultos que demonstravam nunca ter tido o privilégio de subir a tais posições ou ficar ao lado de figuras tão proeminentes.
Suas maneiras eram pouco polidas se comparadas aos membros das quatro Famílias. Nos rostos de alguns, era notado o puro êxtase por estarem próximos de pessoas proeminentes igual aos Anciões, cujos cultivos se elevavam sobre todos os habitantes da Cidade da Fronteira do Caos. Enquanto outros pareciam deslocados, fora da zona de conforto; olhavam a todo instante para os lados e, envergonhados, ajeitavam suas roupas empobrecidas.
O grupo era composto por dois adultos e seis jovens, sendo um deles uma garotinha que aparentava não ter mais do que cinco anos de idade. O homem e a mulher de aparência humilde, responsáveis pelos garotos e garotas, faziam parte daqueles cujo divertimento e fascínio estavam estampados no rosto.
Segurando a garotinha no colo, o homem apontava o dedo para as pessoas lá embaixo com um sorriso no rosto, fazendo a pequenina se alegrar a cada comentário, enquanto a mulher, de cabelo preso em um penteado simples e trajada em roupas desbotadas, escorava-se no parapeito, deslumbrada. Eles formavam um casal espontâneo, que apesar do visual humilde, pouco se importavam de estarem cercados por pessoas importantes.
Dos jovens, dois demonstravam ser particularmente mais íntimos do casal. Eram garotos semelhantes e que traziam em seus rostos a alegria genuína e simplicidade do casal. O mais velho, de cabelo raspado, possuía uma expressão astuta, marcada por olhos ágeis e atentos.
Já o mais jovem, cuja idade não aparentava ser tão distante do outro, aspirava ser um garoto perspicaz, concentrado, através de seu modo de agir, denunciando os pensamentos de alguém cauteloso, que avalia a situação antes de tomar qualquer ação. Contudo, mesmo tendo uma personalidade mais controlada, esbanjava um carisma sociável, falando abertamente e brincando com os outros ao seu redor.
Do grupo de jovens, a mais velha, uma garota de cabelo marrom, usando um conjunto de roupa amarela-escura, era a mais concentrada de todos. Apoiada no parapeito, fitava o palco no qual travaria suas batalhas logo mais, com um olhar obstinado. Era visível pelas mãos calejadas e uma pequena cicatriz na altura da sobrancelha esquerda, que se dedicava às suas tarefas e trabalhava duro em seus objetivos.
Já as duas outras jovens que complementavam o bando, pouco inibidas se comparadas ao restante, tomavam cuidado para não chamar atenção, olhando a todo momento para os lados, apreensivas, como se estivessem vendo gigantes poderosos sobrepujando suas miseráveis sombras.
Aquelas pessoas, diferente dos membros das quatro Famílias, possuíam algo em comum, e isso era suas aparências simplórias e o cultivo baixo. Enquanto os jovens prodigiosos, representantes das grandes potências que lideram a Cidade da Fronteira do Caos, vestiam roupas elegantes, espalhafatosas, e portavam armas e armaduras robustas, imponentes, o bando não usavam nada mais do que vestimentas simples, desbotadas e sem graça, mas julgando pela maneira que se portavam, aquelas eram suas melhores roupas. Sequer possuíam qualquer coisa para proteger seus corpos durante os confrontos.
E quanto a armas, a única usando uma espada era a mais velha e mesmo assim, baseando-se na bainha surrada, não se tratava de um artefato muito confiável. As únicas que se mostravam mais bem preparadas eram as garotas acanhadas, que apesar de não possuírem armaduras, trajavam indumentárias coloridas e floridas nas bordas. Contudo, ainda não se comparava a modesta camisa azul-vibrante, tecida com linhas sofisticadas, usada sob a armadura negra de Xiao Shui.
E seus cultivos, bem, o homem e a mulher, responsáveis pelo grupo, não estavam sequer na 1ª Camada do Reino Mundano; eram pessoas comuns, aquelas tidas como Mortais. E a menininha, como já era de se esperar, também não havia começado a cultivar. Já o restante, a diferença entre eles e os discípulos das quatro Famílias era perceptível logo ao encarar o nível da mais velha, que embora parecesse ter seus dezoito a dezessete anos, ainda estava apenas na 6ª Camada do Reino Mundano.
Xiao Ning não precisou de muito esforço para dizer a origem aproximada daquelas pessoas. A despeito de sua pouca vontade de participar deste Festival, nos últimos dias, Xiao Shui fez questão de deixá-lo informado sobre tudo: como funcionava, as regras, os prêmios e as pessoas que participarão.
Segundo Shui, o Festival da Geração do Caos seria disputado entre vinte e cinco jovens, o que foi uma surpresa para Ning, pois pensou ser uma competição reservada apenas aos cinco escolhidos de cada uma das Famílias. Mas conforme aprendeu, existia uma quinta organização presente na cidade.
A Cidade da Fronteira do Caos era governada pelas quatro Famílias: Xiao, Xu, Qin e Zhan. Em troca de proteção e outras infraestruturas básicas, como a construção e manutenção de fossas, reservatório de água potável e importação de alimentos e outros produtos, a população pagava uma taxa considerável de imposto.
Devido a sua localização remota e o constante risco de ataque de Bestas Demoníacas, a agricultura era pouco praticada, tornando-se assim, preciso comprar provisões de outras regiões. E a despeito da rica fonte de água subterrânea localizada naquela área, mantida pelos riachos, córregos e chuvas, os reservatórios precisavam ser construídos usando Runas Mágicas rudimentares, que perdiam o efeito com frequência, demandando, dessa forma, uma constante supervisão e cuidado.
O motivo para isso se devia ao inverno rigoroso que ocorria entre o terceiro até o sétimo mês do ano, sem falar no clima imprevisível provocado pela Montanha Ancestral de Jade que era capaz de adiantar ou prolongar os invernos e trazer longos períodos de seca. As Runas serviam para manter a temperatura da água, impedindo-a de congelar durante os tempos mais gelados ou evaporar nos dias de seca.
Quanto às fossas, elas haviam sido construídas fora dos limites da cidade, do outro lado da muralha. Os dejetos eram levados até os reservatórios por meio de um complexo sistema de dutos que passava por toda a cidade. A manutenção era feita uma vez a cada cinco anos e sempre exigia um grande esforço, tanto por parte das Famílias, quanto dos cidadãos comuns.
No passado, existiram algumas tentativas de construir um sistema de encanamento semelhante ao das fossas, porém, para a água. Na época, um grande tanque foi erguido numa área elevada que ficava entre o território da Família Xiao e Xu. O intuito era conduzir água potável através de dutos para todas as casas da cidade, algo semelhante com o que era feito na capital do império, Reluzente, e em outras províncias. Porém, a ambição se provou falha quando, na primeira tentativa, o depósito foi destruído após uma tempestade violenta que veio da montanha. E na segunda, mesmo sob a constante vigilância de cultivadores, uma Besta Demoníaca venenosa conseguiu entrar no reservatório e contaminar todo abastecimento, matando diversas pessoas. Desde então, nada do tipo foi tentado novamente.
É claro, além desses serviços básicos, as Famílias também eram responsáveis por manter a segurança e a ordem da cidade, pois a visita de saqueadores e pessoas más intencionadas não era incomum. Além de tudo isso, também havia o comércio e a exportação de itens para regiões fora da Floresta das Mil Perdições, entre outras coisas.
Para administrar tudo isso e minimizar as rixas internas, um antigo tratado foi feito entre todas as Famílias. Um representante é escolhido pelos Patriarcas e Matriarcas para comandar e organizar todas as questões da cidade e gerenciar os impostos arrecadados, dado que todo o dinheiro é usado para a manutenção e ampliação das infraestruturas. Seria essa pessoa que ouviria os pedidos e zelaria pelo bem-estar da população.
Para impedir qualquer tipo de corrupção, os líderes das Famílias podem intervir a qualquer momento e tirar a pessoa escolhida do cargo, além do que, uma multa de valor considerável seria aplicado a toda a Família do responsável.
Atualmente, quem desempenha tal papel é o Patriarca da Família Zhan, Tengfei, que assumiu o cargo de Lorde da Cidade há pouco mais de quinze anos. Desde então, vem se provando um homem sensato, de caráter inquestionável e um excelente governante.
Entre as coisas administradas pelo Lorde da Cidade estava uma instituição chamada: Fundação Quatro Pilares.
A Fundação Quatro Pilares foi criada a gerações pelas Famílias. Trata-se de um instituto voltado para o ensino do cultivo para a população geral.
Ser Mortal não significa ser incapaz de cultivar. Pelo contrário, todas as pessoas possuem o que é preciso para praticar Técnicas de Cultivação; elas já nascem assim. No final, ser Mortal é uma questão de escolha… ou quase isso.
No Império Dourado, a maioria das Técnicas de Cultivação estão em posse de grandes Famílias e Seitas. Mesmo as organizações medianas, como é a situação da Família Xiao e as demais, têm certa dificuldade em obter técnicas de alto nível. E para a população comum, isso é quase impossível, pois mesmo as encontradas para vender, em mercados e leilões, são fracas e muito caras. E se, ainda assim, um Mortal conseguir colocar as mãos em uma, existe outro problema que é aprender a usá-la.
Além disso, há outra coisa que impede muitas pessoas de tentar adentrar no caminho do cultivo. E isso é o medo.
Um cultivador está sempre cercado por diversos perigos. Como se já não bastasse o risco de serem atacados por outros cultivadores, também há a ameaça das Bestas Demoníacas. Durante um ataque desses monstros de forças inimagináveis, são eles que assumem a linha de frente, colocando suas vidas em risco e entrando em batalhas sangrentas.
Quando se está em uma Família ou Seita de poder considerável, até que o cultivador evolua, fique forte e possa lutar suas próprias batalhas, ele ou ela terá a proteção de todo um grupo já preparado para agir mediante tais situações.
Contudo, se a pessoa vier de uma família de Mortais, sem ter nenhum apoio por trás, não apenas precisará encontrar os próprios recursos, como estará vulnerável a qualquer situação perigosa, por mais miserável que ela seja.
Por esses e outros motivos, muitas pessoas sem o devido suporte preferem continuar sendo reles Mortais e dedicar suas curtas vidas a uma profissão, como agricultor, pescador, ferreiro, entre outras. Pois, por se tratarem de ofícios indispensáveis ou muito procurados, por exemplo, cozinheiros, eles sempre terão proteção nos momentos de perigo.
Porém, foi pensando nessas pessoas incapazes de conseguir recursos devido a ameaça evidente, que a Fundação Quatro Pilares foi criada. Com o objetivo de dar uma oportunidade aos residentes que desejam ingressar no mundo do cultivo, uma espécie de “escola”, patrocinada pelas Famílias, foi fundada na Cidade da Fronteira do Caos há anos atrás.
Como o instituto tem a capacidade de receber apenas trinta alunos novos por ano, é realizado um teste de competência no primeiro mês do ano. O teste é aberto para todos e não há nenhum custo para fazê-lo. A única exigência para participar é ter entre dez e quinze anos de idade.
Por causa dos custos elevados envolvendo tudo sobre cultivo, parte dos impostos arrecadados são usados para cobrir os gastos, enquanto a maior parcela fica como responsabilidade das Famílias. E também, para diminuir as despesas, é usado como professor um praticante do Reino Virtuoso, selecionado entre uma das organizações já presentes no município.
As Técnicas de Cultivação e Combate também são fornecidas ao instituto, mas como era de se esperar, todas possuem níveis baixos e não existem muitas opções para serem escolhidas. E o mesmo se aplicava às armas, às quais são difíceis de obter até mesmo pelas grandes potências.
Segundo Xiao Shui, uma vez que os discípulos da Fundação alcançasse o Reino do Despertar, algo que, devido à falta de fundos, geralmente acontecia mais tarde, quando atingiam a idade dos vinte e três a vinte e cinco anos ou mais, eles teriam uma vaga garantida em algum posto importante da cidade.
É claro, se desejassem, também poderiam partir e tentar ingressar em uma Seita ou buscar uma profissão diferente em outras regiões, mas o normal era eles assumirem postos como vigília, guardas de fronteira ― responsáveis por supervisionar as duas entradas e saídas disponíveis aos forasteiros que desejavam entrar ou deixar a cidade ― e, em casos especiais, quando o discípulo demonstrava um grande talento, poderia até mesmo ser convidado para servir a uma das Famílias.
Nos últimos dias, Xiao Ning ouviu bastante coisa a respeito da Fundação Quatro Pilares e de todos os outros que seriam seus possíveis rivais durante o Festival da Geração do Caos. Alguns dias do treinamento de Xiao Shui foram dedicados ao estudo e no tempo restante, ela repassava tudo, contando a ele o que aprendeu.
Foi por esse motivo que não precisou de muito esforço para dizer que aqueles jovens, carentes de uma Energia Espiritual mais refinada, eram, na verdade, integrantes da Fundação Quatro Pilares. E o homem, a mulher e a menininha, muito provável, fosse a família de algum deles, que de alguma forma conseguiu autorização para subirem no palanque, um lugar reservado apenas para os participantes do Festival, os Anciões e Líderes das Famílias.
Enquanto avançavam em direção ao lugar em que o Patriarca Enlai estava, tornou-se evidente que muitos dos participantes ainda não tinham chegado. Das pessoas presentes na plataforma, apenas quatorze delas pareciam ter a idade adequada para ser um dos competidores; e isso contando com Xiao Ning e Shui. Além disso, ao menos um desses jovens não participaria do Festival.
Ao lado do Patriarca Enlai, notava-se a presença da 7ª Anciã Huo. Ela estava acompanhada de um homem careca cuja cara arredondada o fazia parecer mais corpulento do que de fato era e que demonstrava ser bastante íntimo do Patriarca, pois conversavam de maneira descontraída, dando gargalhadas e tapinhas nos ombros um do outro.
Na frente deles, escorada no parapeito, admirando a paisagem abaixo, encontrava-se uma garota de cabeça erguida e nariz empinado. Sua postura indicava certa arrogância imatura, inflada por uma vida de mordomias.
Não foi preciso muito esforço para reconhecê-la. Aquela era, como adorava citar, a filha da 7ª Anciã e uma das amigas de Xiao Shui, a qual Ning conheceu durante o Evento de seleção e voltou a encontrar quando as garotas foram buscar Shui para ir até a cidade participar das festividades, Xiao Li.
Embora não tenha se saído tão mal no Evento de Seleção, ela não havia sido classificada para participar do Festival. Era provável que estivesse ali apenas para acompanhar a mãe.
Outra coisa que evidenciava a ausência de alguns jovens que em breve se enfrentarão em um palco diante de toda a cidade era a falta de pessoas como Xiao Guo e Xiao Jiao e o próprio Xiao Bai, os quais não podiam ser encontrados em canto algum.
Quando notaram a aproximação de Xiao Ning e os outros, o Patriarca e a 7ª Anciã foram logo abrindo espaço para os recém-chegados se juntarem a eles. Devido aos inúmeros ouvidos atentos ao redor, nada sobre Alquimia foi dito. Mesmo o tio Chang querendo indagar sobre o cerco formado pelos líderes das outras Famílias, não disse nada, apenas deu início a uma conversa agradável e despretensiosa.
O grupo continuou conversando por algum tempo. Em certo momento, o tio Chang saiu para cumprimentar os Anciões e líderes das outras Famílias. Ele era um Ancião, afinal, e precisava manter a cordialidade. Enquanto isso, Xiao Shui se juntou a amiga; era bom ter uma conhecida para conversar neste momento de antecipação e tensão.
― Onde Xiao Yu está? ― perguntou, referindo-se a outra de suas amigas, que por também ser filha de um Ancião, conseguiria subir no palanque, caso desejasse.
― Ela e as outras estão aproveitando o festival juntas. ― respondeu Xiao Li. ― Minha mãe pediu para eu acompanhá-la, então não pude ir com elas.
Conforme as amigas deram início a uma conversa amigável, o irmão mais velho de Shui recebeu as boas-vindas atrasadas do Patriarca, aproveitando o momento para narrar sua jornada ao longo dos últimos anos, desde que deixou a cidade. E Ning foi apresentado ao homem careca, que pelo visto, era marido da 7ª Anciã e pai de Xiao Li.
O dia aos poucos foi se encerrando e à medida que o tempo passava, mais pessoas foram chegando no palanque. Daquelas que era familiar ao preguiçoso, Xiao Guo foi o primeiro a chegar; estava sozinho. Em seguida foi a vez de Xiao Jiao, acompanhada pela 2ª Anciã Ah-kum.
Quando viu a 2ª Anciã chegar, Xiao Ning foi correndo recepcioná-la e não demorou muito para começar a usar o seu tom paquerador. E por mais que estivesse recebendo olhares estranhos de todas as partes, por causa de seu comportamento libidinoso, foi parar apenas quando recebeu um cascudo na cabeça que fez seu corpo todo tremer, quase assaltando sua consciência.
O Jovem Nobre Bai chegou apenas quando já era de noite. Sua presença foi notada e estranhada por todos da Família Xiao. Como era de se esperar, muitos aguardavam sua chegada, afinal ele era um dos grandes destaques da noite. Entretanto, o estranho residia no fato de ter aparecido sozinho.
O seu avô, o 1° Ancião Dong, não era visto em canto algum. E não apenas ele, mas todos os seus aliados pareciam terem se ausentado nesta noite festiva, com exceção do 3° Ancião, que se encontrava isolado num canto, de cara emburrada.
Essa ausência causou certa inquietação ao Patriarca, que olhou para o 3° Ancião Zi com suspeitas.
Porém, para Xiao Ning, esse acontecimento teve pouca relevância, pois outra coisa chamou sua atenção. Mais cedo, quando viu o Patriarca cercado pelos líderes das outras Famílias, reparou que um deles possuía o cultivo excedente aos demais.
Um homem, de presença marcante, não apenas já havia adentrado ao Reino Soberano do Despertar, como se encontrava na 2ª Camada. Depois de observar os níveis de cultivo na Cidade da Fronteira do Caos, Ning podia afirmar que aquele era, sem sombra de dúvida, o indivíduo com a maior Energia Espiritual em todo o município.
Atualmente, devido ao Festival da Geração do Caos, era possível notar a presença de alguns cultivadores Soberanos espalhados por toda a cidade. Mas aquele homem era diferente, pois não se tratava de um forasteiro, vindo de uma Seita poderosa ou algo do tipo, ele era o líder de uma das Famílias.
E no primeiro momento, isso surpreendeu Xiao Ning, dado que, romper a barreira do segundo Despertar era uma tarefa ainda mais trabalhosa do que avançar para o Reino do Despertar. Era até mesmo difícil comparar os dois eventos. E como o império Dourado é carente na Alquimia, alcançar tal feito, para uma Família mediana que não dispõem dos recursos necessários para auxiliar na evolução, contando apenas com o puro talento, era algo impressionante que mesmo ele precisava reconhecer.
Xiao Ning viveu por muito tempo e podia falar com propriedade que avançar para o Reino Soberano do Despertar, sem as pílulas de um Alquimista para auxiliar ou Ervas Espirituais raras, era um feito impressionante para qualquer um.
E ele sabia que essas pessoas na Cidade da Fronteira do Caos não possuíam tais recursos extravagantes, pois na Família Xiao, mesmo existindo tantos cultivadores Espiritualistas, nenhum deles tinha conseguido se tornar um Soberano.
Contudo, o que realmente chamou a atenção do preguiçoso foi o surgimento de um homem cuja aparência indicava ter acabado de entrar na meia idade; o cabelo preto profundo lembrava lascas de obsidiana, o peito estufado e braços avantajados apontavam o vigor de um jovem, com muito para viver. Trazia em suas costas uma capa de cor bordô, a qual, no centro, estampava a figura de uma vinha de três pontas, decorada por uma fruta em cada extremidade.
A capa e o símbolo eram idênticos ao que o Patriarca da Família Zhan estava usando. Porém, o mais assombroso, ao menos para Xiao Ning, residia no fato de ele estar na 1ª Camada do Reino do Soberano do Despertar. A Família Zhan possuía não um, mas dois Soberanos. E isso representou uma espantosa surpresa para ele.
A chegada do homem foi recebida com grande exclamação e espanto. Ninguém estava esperando sua presença, exceto o Patriarca da Família Zhan, que pareceu ainda mais confiante ao vê-lo.
Xiao Ning, dando um passo à frente para estudá-lo mais de perto, comentou:
― A Família Zhan parece ser impressionante.
― Mas é claro. ― respondeu Xiao Chan, que apesar de ter permanecido um tempo fora, entendia bem do assunto. ― Ela é a mais forte da cidade.
― Por enquanto. ― manifestou-se Xiao Shui, entreouvindo a conversa. ― Pois o meu Gege ficará muito mais forte que todos eles, não é?
Ela tinha uma confiança absoluta e, um tanto cega, nas capacidades de seu irmão e parecia não se intimidar nem mesmo estando na presença de dois cultivadores Soberanos. Por outro lado, Xiao Chan apenas deu um sorriso desajeitado. Não se achava tão capaz assim.
― Porém, nossa Família não fica muito distante. ― disse Xiao Li, que desde que se encontraram, não saiu do lado de sua amiga. ― Nossa Família é a que mais possui cultivadores Espiritualistas.
― Além do mais, dizem que o Patriarca Enlai logo avançará para o Reino do Soberano do Despertar. ― complementou Xiao Chan.
Ao tempo em que o grupo entrou num debate sobre as capacidades de cada organização, do outro lado, o assombroso membro dos Zhans teve uma conversa breve com o seu Patriarca sobre um assunto que, julgando por sua expressão, parecia ser sério. E sem dar tempo de mais saudações serem trocadas, ele se virou e rumou em direção aos Anciões dos Xiaos.
O homem não havia trocado sequer uma dúzia de palavras com os integrantes de seu grupo, quando se virou e saiu sozinho, mirando o Patriarca Enlai.
Notando sua aproximação, a 7ª Anciã Huo aprumou a postura e recuou um passo, deixando o Patriarca na frente. Naquele momento, quase todos os olhares se voltaram para os Xiaos, intrigados com o que aconteceria a seguir. A exceção foi o grupo da Fundação Quatro Pilares, que estavam entretidos, assistindo o acender das luzes ao longo de toda a cidade.
Quando o homem se aproximou, o Patriarca Enlai logo tratou de cumprimentá-lo com toda a cortesia.
― A quanto tempo, Supremo-Ancião Yanlin. ― saudou em um tom respeitoso.
Aquele não era ninguém menos do que o único Supremo-Ancião da Família Zhan. Uma pessoa respeitada por ter travado diversas batalhas em nome da Cidade da Fronteira do Caos.
― Sim, faz muito tempo, Enlai. ― concordou ele, retribuindo o cumprimento com um sutil aceno. ― Você sabe que não sou um homem de diplomacia e não gosto de enrolação, por isso vou perguntar direto. Acabei de ouvir que os Xiaos colocaram as mãos em um Alquimista. É verdade? ― indagou, sem fazer qualquer tipo de cerimônia, deixando sua voz ecoar por toda a plataforma.
Ao soar de suas palavras, os olhares de esguelha lançados em direção aos Xiaos deixaram o anonimato e prestaram toda a atenção no que seria dito a seguir. Mesmo os integrantes da Fundação Quatro Pilares, que parecia não ter tomado conhecimento da presença do Supremo-Ancião dos Zhans até o momento, começaram a se agitar ao ouvir a declaração.
― A Família Xiao tem um Alquimista? ― murmurou o homem segurando a garotinha, com uma voz assombrada.
― Eu tinha escutado rumores… então é verdade. ― resmungou uma das meninas, que ao longo do dia pareceu tomar mais coragem e não se sentia tão deslocada quanto antes.
Ao ser questionado de maneira tão direta, a 7ª Anciã Huo não pôde evitar de lançar um olhar cauteloso em direção ao Patriarca Enlai. Mesmo a Anciã Ah-kum pareceu surpresa, enquanto o tio Chang lançou um olhar sério em direção à Zhan Tengfei.
Fazia algum tempo que o Supremo-Ancião Zhan Yanlin não voltava à cidade, por isso sua aparição foi motivo de surpresa. Mas agora, Xiao Chang entendia o porquê de ele ter voltado depois de um longo período fora.
― Pelo que eu ouvi de Tengfei ― olhou na direção do Patriarca de sua Família ―, todos já estão comentando sobre o assunto. Não há motivos para segredo.
Outra razão pela qual o Supremo-Ancião era uma pessoa bastante conhecida se devia a sua pouca delicadeza ao tratar assuntos importantes. Sempre foi um homem direto, que não guardava dúvidas para si. Nunca gostou do jogo sórdido da política e por isso também jamais cogitou se tornar um Patriarca. Era um cargo que exigia diplomacia e astúcia; características das quais era desprovido.
Ao ouvir seu Supremo-Ancião abordar um assunto delicado como aquele com tamanha indiscrição, Zhan Tengfei só pôde balançar a cabeça em lamentação e deixar um suspiro pesaroso escapar. Não devia ter contado a ele. Quando soube da notícia envolvendo um Alquimista, pensou que deveria reunir todos os membros mais importantes da Família e discutir sobre o que fariam a seguir.
E apesar de conhecer bem o temperamento do Supremo-Ancião, devido à importância do conteúdo, pensou que, ao menos desta vez, ele seria discreto. Contudo, foi ingênuo.
Notando as dezenas de olhares focados nele, Xiao Enlai pigarreou, tentando parecer inocente. Algumas horas antes, os outros líderes tentaram descobrir exatamente a mesma coisa, porém fizeram uso de abordagens bem mais discretas. A única que foi quase tão direta quanto o Supremo-Ancião foi a Matriarca dos Qins. Mas mesmo ela não ousou dizer a palavra, como se a pronúncia pudesse amaldiçoá-la.
Naquela hora conseguiu disfarçar, trazendo assuntos controversos à tona. Mas desta vez a coisa não seria tão simples.
Após declarar para toda a Família que possuíam sim um Alquimista os apoiando das sombras, sabia que seria inevitável isso acontecer. Todos naquela cidade tinham ouvidos atentos. Entretanto, esperava prolongar o “inevitável” o máximo possível.
― Bem, isto é algo um tanto novo para nós também. Ainda estamos tentando entender o ocorrido. ― declarou Enlai, sem assumir ou negar qualquer afirmativa.
Porém, o Supremo-Ancião Yanlin era uma pessoa direta. Não gostava de fazer cerimônias. E dessa forma concluiu:
― Então é verdade. ― afirmou. ― Só espero que os Xiaos não se esqueçam de nós, quando ascenderem aos céus.
― Como poderia? Somos aliados há muito tempo. ― disse Enlai, tentando encerrar o assunto.
Satisfeito com a resposta, o Supremo-Ancião gesticulou em despedida e se retirou para o lugar no qual sua Família se reunia.
Após a troca de poucas palavras, o palanque subitamente caiu em silêncio. Olhares assombrados, carregados de interrogação e espanto, foram trocados pelos presentes. E tão súbito quanto foi a pausa, de repente, uma explosão de ânimos tomou conta do lugar.
Os membros de cada Família se reuniram no mesmo instante e começaram a discutir. Por mais que tentassem manter as vozes baixas, a confirmação perante um boato espantoso, levou todos a um novo nível de disposição, deixando-os incapazes de conter o ruído que brotava do fundo de suas gargantas.
Os integrantes da Fundação Quatro Pilares foram os que mais se agitaram. O homem e a mulher vibraram alegremente, comemorando o acontecido. Se os Xiaos se tornassem mais fortes, então o lugar em que moravam passaria a ser ainda mais seguro.
Os jovens também participaram da euforia. Os garotos vibraram em alto e bom tom, sem se importar em chamar a atenção, já as garotas lançaram olhares de admiração e reverência em direção aos discípulos da Família Xiao. Em seus olhos, eles se tornaram pessoas abençoadas.
Por outro lado, a mais velha de todas, murmurou para si mesma com um semblante obstinado:
― Se eu conseguir um trabalho na Família Xiao, talvez eu consiga me tornar uma cultivadora Espirituosa. ― repetia diversas vezes.
Muito embora também estivessem agitados, as outras Famílias não conseguiam compartilhar do entusiasmo expressado pelos jovens ingênuos da Fundação Quatro Pilares. Tal acontecimento poderia trazer consequências desastrosas, incluindo uma mudança drástica no poder.
Enquanto isso, aquele responsável por criar toda a euforia, tinha um olhar preguiçoso no rosto, ao tempo em que pensava se isso era motivo para tanto. Xiao Ning já havia entendido que Alquimistas eram importantes e desejados. Entretanto, criar tamanho tumulto sem ao menos saber de suas habilidades parecia um pouco de exagero.
E se o Alquimista fosse um mero iniciante? E se as pílulas que ele conseguia criar não passassem de falhas grosseiras? Talvez, a questão tenha sido inflada devido à recente evolução de Xiao Guo. Mesmo assim, tudo aquilo parecia um pouco excessivo.
Bom, também existe a possibilidade de apenas estar muito acostumado a existência chamada “Alquimista” e ser incapaz de compreender as emoções daquelas pessoas.
Por outro lado, Xiao Shui a todo momento manteve um olhar atento em Ning, temerosa pelo que ele poderia fazer. Ao longo do tempo que passou ao seu lado, começou a entender que o colega não era o tipo de pessoa que gostava de guardar segredos ― afinal, aquele preguiçoso falou isso diversas vezes. Por esse motivo, ficou com medo de ele resolver ir lá e contar para todo mundo a verdade. Precisou ficar de olho nele para impedi-lo de fazer qualquer estupidez.
Para ser sincera, depois de entender um pouco mais sua personalidade, ela já não sabia nem mesmo se era uma boa ideia deixá-lo participar deste Festival.
Xiao Chan, que descobriu o segredo há pouco tempo, tentou ser discreto para não chamar a atenção, mas durante o interrogatório curto e direto do Supremo-Ancião, lançou alguns olhares de admiração em direção a Ning. Enquanto Xiao Li, em sua ignorância, pareceu estufar ainda mais o peito e empinar o nariz. Não precisava saber de nada para se gabar e se sentir orgulhosa de sua Família.
Em contrapartida, Xiao Bai, isolado em seu canto, tinha um olhar severo voltado para “o alquimista”.
Após o aparecimento do Supremo-Ancião Yanlin, o clima no palanque mudou. O ar se tornou carregado e uma atmosfera cautelosa e investigativa tomou conta do lugar. A todo instante, olhares furtivos eram flagrados espiando a Família Xiao. Para muitos, a noite não seria a mesma. Seus objetivos já não seriam olhar por seus prodígios enquanto davam o máximo de si no campo de batalha.
No entanto, fora do tablado, a festividade continuava. Cada vez mais pessoas se reuniam ao redor do palco montado para as lutas. As tendas localizadas nas áreas mais distantes da cidade foram ficando vazias, conforme a multidão se dirigia para o centro.
De repente, uma explosão de palmas soou, fazendo o ar vibrar e o clima festivo ganhar uma nova disposição. A abertura do grande Festival da Geração do Caos estava para começar.
Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.