Uma Nova Lenda Surge - Capítulo 23
O vento batia sobre os poucos vestígios que sobraram da antiga sociedade, erguendo a poeira que preenchia as ruas e becos da região.
— Estão prontas meninas? — Pergunto sem esperar por repostas.
— Você ao menos sabe o caminho pelo qual temos que percorrer? — Mas diferente de minhas crenças Scramblery me responde com outra pergunta.
— Faço a menor ideia, no entanto eu pedi por um mapa que deveríamos percorrer para a Shi, procurem em suas bolças.
Seguindo a minha orientação Djinskrel e Scramblery procuram em suas bolças pelo pequeno pedaço de papel do qual eu havia mencionado, e lá estava ele, em minha bolça.
— Estava comigo!
Começo a abrir o pequeno embrulhado de papel até retornar ao seu estado original, o mapa foi feito utilizando a topografia da cidade em ruinas e seus arredores, o objetivo ficava a dois dias de viagem do ponto onde havíamos saído.
— Perfeito, sigam-me e não haverá erros, pararemos apenas para comer, se tiver algum problema fique a vontade para ser deixado para trás.
“Os fins justificam os meios”, uma frase assustadora dependendo de quem a cite, mas não despreze essa pessoa, nem toda disputa pode ser resolvida sem sangue derramado, afinal o ser é algo grotesco.
— Vocês sabem por que Kazi Cadere possui esse nome? — Falo enquanto seguimos por uma rua principal do local.
— Não seria por ser a terra sem fim? — Djinskrel responde.
— De certa forma não, ninguém sabe sobre o seu inicio, pois muitas terras já haviam sido lançadas aqui antes de sua descoberta. Por isso Kazi de fim e inicio.
— E as criaturas dessa terra desolada, como se originaram? — Scramblery entra na conversa.
— Outra coisa que não se tem nem ideia de como ocorreu, não se sabe nem a sua origem nem como saem dessa terra, só se sabe que o mundo que tiver apenas um shirglitsu estará acabado.
— É por isso que os grupos de caça foram criados, nossa mãe nos contou um pouco sobre Kazi Cadere, já que ela era uma das “portas” para cá.
— É bom saber um pouco sobre o ambiente no qual se caminha, mas conhecimento de mais pode acabar fazendo mal também.
A maior arma que próprio ser pode ter é o conhecimento, afinal sem ele você não terá nada, nem a própria vida…
Continuamos a conversa até a primeira parada que faríamos, Scramblery e Djinskrel sentaram no meio fio para beber um pouco da água de suas garrafas e descaçarem as pernas.
— Vou dar uma olhada na região, vocês podem me esperar aqui enquanto isso.
— Fique a vontade.
Sigo até um dos prédios da região, que perdeu os seus últimos andares por causa da corrosão e de batalhas que ocorreram em seu interior.
Marcas de garras e sangue já enegrecido pelo tempo, poderiam ser encontrados pelas paredes daquele pequeno prédio residencial.
Sigo pacientemente até a escadaria que me levaria para o ultimo andar que permanecia em pé. Corpos e restos de pessoas permaneciam caídos pelo chão, alguns com suas cabeças esmagadas por grandes pedras, outros ressecados pelo sol sem os demais membros.
Me aproximo dos restos de uma parede, me escorando sobre ela para observar o horizonte que permanecia parado, quantas horas já havia passado para o sol se mover apenas um minuto?
Desde a minha primeira vinda para essa terra desolada nos últimos dias, apenas uma hora havia se passado sobre ela, um espaço onde o sol sequer existe, mas todo planeta que cai sobre esse terreno tem uma luz própria que demora dias para se passar apenas uma hora.
Uma terra cercada por mistérios e mortes, onde a esperança é apenas uma fagulha para os mortais. O norte era o nosso destino, o ninho dos verdadeiros demônios que vivem nessas terras.
Após tomar um pouco de ar enquanto observava as terras dos arredores, retorno ao encontro das duas que permaneceram no meio fio da estrada que não via nenhum automóvel há dias.
— Espero que tenham descansado o bastante, pois iremos tocar direto daqui, acho que sei uma rota alternativa melhor.
— Espero que esteja certo.
— Vamos dar um voto de confiança, afinal ele é o único disposto a nos ajudar…
— Não se preocupe, logo estarão de volta aos braços da mãe de vocês.
Retornamos a caminhar, mas dessa vez eu as ordeno pelo caminho secundário do qual possuíamos de opção, a linha do metro da cidade.
Algumas ruas a frente do local onde estávamos possuía um pequeno declive causado por um desmoronamento de uma das estações do metro local, apesar dos perigos que teria ao adentrarmos naquele buraco era uma opção valida, vendo que a rota que era usada pelo metro encurtava de forma extrema o caminho para o local que desejávamos chegar.
— Como é bom caminhar por uma cidade planejada… — Acabo soltando junto de um suspiro.
— Nós seguiremos por esse buraco! — Scramblery fala em espanto ao nos aproximarmos da cratera.
— Sim, e é bom que vocês saibam lutar para o caso de alguma emergência.
— Não existe outro caminho para seguir? Acho que talvez você deva relevar dessa vez.
— Vai por mim, apesar dos perigos esse é a melhor rota! Se sairmos agora devemos chegar lá em torno de uma a duas horas dependendo da sorte.
— Você só pode ser louco! Eu prefiro caminhar por mais um dia inteiro do que entrar nesse buraco! — Scramblery berra me encarando em plena fúria.
— Eu concordo…
— Sendo assim. — Pego o mapa que eu havia embrulhado e posto no bolso interno de meu sobretudo, estendendo ele para elas. — Podem seguir o caminho que desejarem, nos vemos lá!
Ela pega o pequeno embrulhado de papel, confusa, de minha mão, eu aceno para as duas deixando a minha mochila para trás, trazendo comigo apenas a espada embainhada e escorrego para dentro do metro abandonado.
Briga em meio a uma jornada desse calibre me seria inútil, por isso deixa-las a mercê da sorte, apesar de ser cruel, era a melhor opção do que seguir com duas jovens que já lutaram as suas guerras.
Sigo pelo longo corredor do metro na esperança de não me encontrar com nenhum shirglitsu ou desalmado no local, mas ela logo se vai junto com os berros de choro de uma criança.
Eu até pensei em deixa-la para a morte, mas infelizmente o problema estava no caminho que eu deveria seguir.
— Merda… Bom que se dane.
Coloco minha mão direita na parte interior do sobretudo, sobre o meu peito esquerdo e inicio a minha silenciosa oração.
— Em meio aos confins a de vir a mim, aquela que seu nome julga os pecantes seguidores de falsas verdades, em Karmine está seu nome, em Jarvane sua existência, lervant zackmaneris.
E ao retirar a minha mão de dentro do sobretudo, lá estava uma espada sem igual de lamina fina que poderia chegar a cortar o aço sem sofrer avaria.
— Alguém?! Por favor, ajude ao menos essa criança! — A voz falha, mas ainda viva de um homem ecoa pelos corredores até os meus ouvidos.
Disparo em uma corrida rápida, utilizando de meu pé direito para dar o impulso inicial e não demora muita para eu estar de frente com as criaturas que ameaçavam a vida de uma civil e um soldado perto da morte.
As criaturas sem olhos e pelo que mais lembrava a um rato gigante, cercavam os dois, brincando com os corpos de seus companheiros antes que chegassem ao próximo estágio.
— Faz tempo que eu não brinco de gato e rato, desde que me lembro. quinhentos anos?! Não, acho que já me perdi!
Agacho-me em meio a minha corrida, utilizando da minha velocidade para deslizar poucos metros sobre o trilho e pedras, mas sendo o suficiente para cortar a barriga de uma das criaturas, deixando com que o seu estomago e entranhas junto de seu sujo sangue escuro caísse sobre meu rosto e roupas.
— Ah! O néctar da vida, pena que eu odeio o amargo que ele deixa em minha boca. — Lanço a espada para cima que se finca nas pedras da parte superior do túnel. — Agora se me fazem o favor morram!
Junto à agonia da criatura que teve sua barriga rasgada, mas continuava em pé para lutar, parto para cima das duas que permaneciam intactas.
Elas se afastavam esperando as minhas brechas, que nunca surgiriam, enquanto se reposicionavam para me cercar, esquecendo o homem a beira de seu fim e da pequena menina que chorava se escondendo atrás de um defunto.
Estralo os dedos de minhas mãos e o meu pescoço antes de seguir para cima das duas criaturas a minha frente.
— Um verdadeiro guerreiro sabe se virar sem as suas armas…
Sigo em um salto para os shirglitsus que se preparam para o ataque, utilizando de suas garras e dentes afiados, prontos para cortar e rasgar a carne de suas vitimas.
Chegando próximo ao primeiro o golpeio com força em seu crânio, levando-o para o chão, criando uma pequena ponte que me levaria ao segundo, onde junto de um sorriso chuto a lateral direita de seu corpo o lançando a parede do túnel.
— Acham que aguentam contra mim? Inocentes! — Falo ao pousar de costas para as criaturas.
E com um forte rosnar o ser que sangrava constantemente, corre em minha direção sem medo, esparramando seu sangue enquanto sujava seu estomago, que arrastava pelo chão, com terra e areia.
— Tenho pena da sua tolice! Mas agradeço o apoio!
Viro-me rapidamente e corro na direção da criatura, aproveitando de seu corpo, como uma plataforma para pular em direção da espada que permanecia fincada na superfície do túnel, dando em conjunto um grande chute na fuça do animal.
Agarro a espada que descrava facilmente da superfície na qual havia sido fincada, e eu retorno para cima dos trilhos, as criaturas que haviam ido ao chão se reergueram como se meus golpes não tivessem efeito.
— É por isso que eu odeio shirglitsus, mesmo de mandíbula quebrada, clavícula detonada e estomago a mostra, eles continuam atacando sem temer a vida! — Bufo antes de avançar neles para terminar a luta de uma vez.
No primeiro da linha, que já permanecia com a mandíbula quebrada, eu corto em um golpe sua cabeça, o segundo, que permanecia com a clavícula detonada, divido o corpo ao meio sem muito esforço, e o terceiro recebe uma estocada que atravessava sua boca até sair pelo ânus do animal.
Os três vão ao chão, dessa vez mortos.
— Finalmente acabou… — Falo limpando com a manga direita o meu rosto que permanecia sujo de excrementos e sangue de um dos três shirglitsus.
Caminho lentamente até a pequena criança que permanecia tremendo de medo atrás do falecido homem, estendendo uma de minhas mãos para ajuda-la a se levantar.
— Está tudo bem, eu já matei os monstros que te assustavam. — Falo com um grande sorriso no rosto.
A criança me encara por alguns segundo antes de voltar a se esconder aos berros.
— Puta que pariu! É por isso que eu odeio essa criaturas… — Paro para respirar e prossigo forçando um sorriso dessa vez. — É seguinte pirralha! Eu estou a permitir que siga comigo ou fique aqui e morra talvez de fome, talvez por alguma doença ou até por uma daquelas criaturas que eu matei ali, qual a sua escolha?!
Antes que a menina assustada pudesse me responder o homem que aparentemente havia morrido começa a grunhir e a se move lentamente.
Sem esperar que a transformação se completasse, pego sua cabeça e dou-a com força contra a parede, vezes o suficiente para que a superfície de pedra se partisse e os miolos do homem se espalhassem pelo local.
— É o seguinte se estiver decidida a me seguir venha, caso contrario fique e morra, e sendo cincerro eu prefiro que você fique.
Sem esperar mais sigo o meu caminho lentamente ainda ouvindo o choro da criança que não passaria de um estorvo para mim.
No entanto não demora muito para a pequena criatura avançar e puxar a minha manga, a ignorando sigo o meu caminho.
— O-obrigada… — Ainda com a voz rouca a criança tenta se comunicar.
— Não me agradeça, eu só matei as criaturas, agradeça ao homem que desperdiçou a vida nessas terras desoladas.
— Porque você é assim?
— Porque quem muito viu, muito sabe, e saber não é algo verdadeiramente bom, assim como viver.
— Você é engraçado, qual o seu nome?
— Além de irritante é mal criada? Não sabia que ao perguntar o nome de alguém deve-se antes se apresentar?
— Sinto muito… Meu nome é Shorn e o seu?
— Me chame de K, deve ser mais fácil para você praga.
— Não é praga é Shorn.
— Comigo você é praga, não passa de um estorvo em meu caminho e só causara problemas, saiba que apesar de estar comigo você não estará segura, eu irei primeiro me proteger, para depois pensar se lhe ajudo.
— Certo… — A pequena garota fala cabisbaixa.
— Eu não sou seus pais ou salvador, sou apenas uma pessoa que por acaso estava passando pelo mesmo local que você estava.
A realidade pode ser cruel, mas é necessária, afinal apenas com ela podemos evoluir, e quanto antes ela souber o que está havendo melhor será para os próximos curtos anos de sua vida.
— Você sabe onde estamos?
— Em Rargmene.
— Ainda lembro dos tolos dias que eu respondi erroneamente de imediato como você. Esqueça tudo que você sabe pequena criança, estamos em Kazi Cadere, a terra desolada do tempo, dá para dizer que todos aqui foram abandonados para morrer.
— …
— Cadê os seus pais? Acredito que mortos, ou talvez tenham te abandonado para não terem problemas.
Não demora muito para que a quietude se fosse e os berros da criança ressoassem novamente pelos tuneis.
Vendo a situação agarro a criança pela garganta, erguendo ela na altura de minha cabeça, a privando de respirar.
— Direi apenas uma vez, eu não me importo de te matar, por isso não chore, não faça barulho, só fale comigo o necessário e acima de tudo me obedeça como se sua curta vida dependesse disso, porque depende!
Ela tenta acena com a cabeça lutando por sua vida arranhando minha mão e braço no desespero, largo ela que cai no chão junto de um baque, a ignorando eu retorno a andar.
Tentando segurar o choro a pequena Shorn me segue alisando a sua garganta, provavelmente ainda sentindo a dor do aperto que causei.
— Com o tempo você se acostumara com a vida que esse mundo pode lhe causar. — Encaro a pequena criatura feita de carne e alma antes de prosseguir. — E você ainda terá muito tempo para prosseguir por essa estrada.
Ao longo do escuro corredor podia-se ver, enfim, a luz do sol indicando o meio do dia, que nunca acabava. A pequena Shorn que me seguia desde que nos encontramos em meio a aqueles tuneis, agora não chorava nem se escondia.
Talvez eu tivesse sido duro de mais com ela, afinal não passa de uma criança abandonada à própria sorte nessa terra desolada e pútrida.
Talvez ter trazido a morte pudesse ser uma alternativa naquela hora, mas não me vejo feliz em matar esses inocentes apesar do sofrimento que posso causar a eles.
— Vamos Shorn não foi de todo mal, logo chegaremos a um lugar cheio de pessoas ruins que enganaram a sua mente, por isso confie em mim e faça o que eu lhe mando.
Sem responder, ela apenas acena lentamente com a cabeça, afinal qual o problema das crianças de hoje em dia?
Assim como dito ao sair pelas escadarias de uma das antigas estações nos encontramos de frente com um prédio lotado de homens e mulheres com armaduras pesadas que cobriam seus corpos por completo, em suas costas grandes asas de plumagens negras se estendiam pelo ambiente.
— Olá?! Vim fazer uma pequena entrega para o chefe de vocês! — Falo em um tom elevado para atingir todas aquelas pessoas, enquanto andava lentamente na direção do prédio com as mãos erguidas.
Sem perderem tempo, todos ao redor do local sacam armas de nível cinco apontando em minha direção, um pequeno disparo daquelas coisas poderia desintegrar de imediato o que toca-se, sorte que eu só iria me ferir por causa delas.
— Shorn, pode vir calmamente comigo.
A garota que aparentava ter entrado em um transe ao ver o local cheio daqueles seres alados, volta para o mundo real e começa a caminhar em minha direção seguindo os meus passos.
— Eiiii!!! Cabeças de passarinho!!! Vão ficar só a apontar essas armas ou vão descer e me levar ao seu líder?!
— Nos desculpe pela recepção hostil que tivemos aqui senhor. — Um dos corvos se aproxima mais de nós. — Estamos tendo um tratamento mais radical nos últimos tempo por causa dos caçadores que estão cada vez mais ativos na região.
— E eu lá tenho cara de caçador?! Eu tenho que lembra-los quem sou?! Tenho que fazer um show para demonstrar a minha verdade?!
— Não será necessário senhor Kardurins, mas é raro ver um rosto como o seu. O que trousse o lendário cavaleiro negro até nós?
— Nada de mais, tirando uma pequenina coisa que me pertence que, sei lá, talvez um de seus amigos tenha botado as mãos imundas nela… Talvez!
— Posso ver com um de meus superiores, mas por causa de nossa localização isso pode acabar levando alguns dias, se quiser podemos arrumar aposentos para você e sua escrava, até recebermos noticias.
— Eu agradeceria imensamente, por sinal muito em breve outras duas companheiras minhas apareceram pela região, se os senhores não se importarem, poderiam deixar lugares reservados para elas também?
— Seria um prazer atender esse pedido do senhor, então, por favor, me sigam, os deixarei na biblioteca até os aposentos estarem prontos.
Sei mais delongas, somos escoltados para dentro do prédio em ruinas que ao contrario de sua aparência decrepita externa, seu interior permanecia intacto como se fosse novo.
As luzes do local funcionavam perfeitamente, as plantas que formavam um portal, próximo a porta de entrada, permaneciam com as suas folhagens esverdeadas com brilho vivo.
— Fico impressionado em ver que conseguiram manter as aparências mesmo em um lugar como esse. — Falo com entusiasmo.
— Não é tão difícil de manter as aparências tendo uma equipe como a nossa.
— Exibidos… — Sussurro.
Continuamos andando até chegar a uma sala cercada por estantes lotadas de livros, com uma pequena mesa retangular em seu centro, tendo uma pequena concentração de livros e pergaminhos deixados próximo de um candelabro que permanecia com as suas velas próximas de seu fim.
— Pensei que vocês tinham eletricidade no local. — Falo apontando para o candelabro.
— Infelizmente o nosso gerador só funciona durante o dia e a energia armazenada não consegue durar a noite inteira para áreas triviais como essa.
— Já pensaram em por uma bateria maior?!
— Fiquem a vontade no local, retorno dentro de uma hora para leva-los até os aposentos. — Ignorando a minha pergunta o corvo segue até a porta a fechando na sequencia.
Shorn segue para as cadeiras da mesa onde se senta e permanece em silencio. Sigo até uma das prateleiras para ver o que tinham no local, metafisica, geometria, teoria das energias, nada para uma criança da idade da Shorn.
— Ei, Shorn! Ainda está chateada por eu ter ferido a sua garganta?
— … — A garota permanece imovel, sem mostrar reações.
— Sabe, quando eu tinha a sua idade eu vi muita coisa da qual eu desejava permanecer longe, mas aqui estou, então pequena Shorn, não fique se achando só por causa de um sufocamento.
— Pelo… Pelo que… Você já passou…? — Ela fala cabisbaixa, ainda se engasgando em meio às palavras.
— Durante toda a minha vida eu posso afirmar que devo ter experimentado de tudo, desde as dores mais profundas, até os prazeres mais intensos.
Pego um livro com anotações sobre a propagação da matéria nula em meio ao espaço infinito e vou até mesa, onde me sento de frente com a Shorn.
— Mas quando eu tinha a sua idade eu tive que enfrentar sozinho a terra dos mortais, sem nenhum companheiro ou moeda no bolso, cheguei a ser enganado e vendido como escravo na época.
Os olhos da criança se arregalam com a minha história, enquanto eu foleava o livro que tinha escolhido na estante.
— Mas ao descobrir o que estava acontecendo tive que fugir do local matando muitos pela minha frente, salvando aqueles que permaneciam comigo naquele calabouço deplorável.
— Você… Os matou… Como fez com… As criaturas?
— Digamos que sim, afinal naquela época ainda não se tinha muito conhecimento sobre as artes da energia, e como eu havia sido preso não possuía armas…
Não é tão difícil de se lembrar daqueles dias, vendo que foi o meu primeiro banho de sague, meu corpo totalmente sujo pelo sangue daqueles que me aprisionaram, minhas mãos ainda pingando o viscoso liquido vermelho por onde eu fosse, e entre as minhas unhas as vísceras de minhas vitimas.
— Você teve sorte pequena Shorn, eu nunca iria ajudar se não tivessem em meu caminho, mas parece que o destino escolheu uma outra rota para você. Deveria era estar feliz!
— O que… Vai acontecer… Comigo?
— Não faço a menor ideia, tudo o que sei é que você será deixada em uma zona segura e nós provavelmente nunca mais nos veremos, o que acha?
— Pensei que… iria me matar…
— Eu iria, se você não parasse de chorar e me não obedecesse, que bom que fez a escolha certa!
A garota engole a seco se levantando e seguindo até as estantes, pegando um livro aleatório, e parando no local para fingir que estava lendo.
Vendo que agora estava sozinho, aproveito para focar na leitura que me interessava, afinal o escritor daquela obra era o meu autor favorito, eu mesmo!