Uma Nova Lenda Surge - Capítulo 29
Em meio aos uivos dos lobos que corriam nas planícies próximas, eu podia escutar o som de minha carne sendo rasgada pela pequena agulha, aquecida por uma vela que iluminava o quarto.
— Que da carne cresça, que da alma viva… — Kashisujo entoava um antigo cântico enquanto fazia com que o meu sangue escorresse ao longo de minhas costas.
Um antigo ritual utilizado para facilitar a conjuração de técnicas usadas pelos guerreiros, apesar de cortarem o seu efeito pela metade, se mostram uma forma eficaz de utilizar a energia em meio a um combate direto.
Fiquei debruço em minha cama enquanto ela finalizava o rito, passando um pouco de água, que havia permanecido no sol boa parte do dia, em minhas feridas abertas.
O calor aconchegante da água aquecida foi penetrando em minhas veias aos poucos, e assim fechando as cicatrizes, deixando um caminho para que minha alma possa acessar os círculos desenhados, com aço e fogo, em minhas costas.
— Está pronto. — Ela fala passando um pano seco em minhas costas.
— Obrigado.
— Evite usa-los por um tempo, pelo menos até que o seu atual corpo possa se movimentar unido com a alma.
— Tudo bem, vamos dormir agora, antes que possamos acordar alguém.
— Talvez devêssemos passar juntos essa noite, para que eu possa te entregar um pouco de minha energia, para agilizar a cicatrização.
— Não precisa se preocupar, pela manhã já estarei bem.
Ergo os cobertores e me coloco abaixo deles, me cobrindo e preparando a mente para dormir um pouco.
— Como teremos um momento intimo dessa forma?
— Quer mesmo saber a resposta?
— Certo… Boa noite, amanhã será a nossa folga, aproveite para conhecer as pessoas do campus, irei averiguar o local para treinarmos.
— Já tenho alguém em mente, então pode relaxar.
Fecho os meus olhos e mergulho em um mundo de sombras por mais um dia.
Será que algum dia serei perdoado pelos pecados que cometi no passado? Não, ficarei manchado pelo sangue deles pela eternidade, tudo o que posso fazer é seguir em frente e corrigir esse universo… Talvez assim eu possa dormir em paz…
Escuto o fraco fechar da janela do quarto, por extinto abro os meus olhos e começo a me mover lentamente para fora da cama. O invasor havia entrado sozinho no local, e era cauteloso o bastante para praticamente sumir em meio à escuridão do quarto.
O invasor então segue cauteloso até a minha cama, enquanto eu me aproximo silenciosamente dele pelas costas, e antes que ele pudesse revelar o seu motivo de entrar no local, prendo o seu braço direito nas costas e fecho a sua boca com a outra mão.
— Não fale nada. — Sussurro.
A pessoa então tenta balançar a cabeça em resposta.
— Certo, vou te soltar e quero que me diga quem é você, e por que invadiu o meu quarto há essa hora.
Solto a boca da pessoa, que respira profundamente antes de começar a falar:
— Sou Evelyn e vim para Djarski com o objetivo de confirmar algumas informações, além de espionar a princesa de longe. — A jovem dama fala e sua voz fria e seca sai cortando o ar até chegar a meus ouvidos.
— Então, você sabe quem eu sou?
— Sim, e não planejo revelar para ninguém.
— Como que eu poderei confiar em você?
— Você tem razão, nesse caso que tal sairmos em um encontro amanhã? — Ela segue em um tom frio.
— Me chamando para um encontro usando esse tom frio? Isso fere os meus sentimentos. — Sigo zombeteiro, mas em um tom baixo, para não acordar outros alunos.
— Está marcado, te encontro amanhã no portão principal às dez horas, agora se você não se importa.
— Não importa o que eu faça, você não irá revelar nada ainda… Tudo bem. — Solto ela, que segue a passos silenciosos para a janela. — Esteja lá no horário, caso contrario lhe caçarei.
— Eu estarei.
Ela abre a janela e pula suavemente para fora, eu a fecho em sequencia, seguindo para minha cama enquanto fico esperando pelas respostas que poderia obter no dia seguinte.
Ao amanhecer do novo dia, deixo Kashisujo dormindo, e após me arrumar sigo para a cantina do campus, onde a maioria dos alunos se encontrava. Alguns em grupos, outros com pilhas de livros ao seu redor e um pão preso na boca.
— Marshow! — Gainiri corre em minha direção a paços rápidos, quase derrubando dois alunos que cruzavam os corredores entre as mesas.
— Bom dia… — Falo em meio a um bocejo virando-me na direção da voz dela.
— Já comeu?
— Acabei de chegar na verdade.
— Perfeito! Vamos comer juntos?
— Pode ser.
Às vezes não entendo a motivação para a união dos seres de gêneros diferentes, o objetivo dessas criaturas quanto à copulação normalmente vem do pensamento impregnado de manter a espécie, daí vem o seu desejo a união, mas o meu caso é diferente…
Por ser uma criatura que viverá até o fim da existência eu não vejo o motivo de criar outros como eu, mesmo que…
— O que era mesmo…? — Sussurro.
— Falou alguma coisa?
— Não, vamos pegar a nossa comida.
Em um balcão próximo a uma das paredes tinha três grandes cestas cheias de pães amanhecidos, e duas jarras de barro cheias de água, com copos de barro as circulando.
Apesar de normalmente não se fazer uma refeição a esse horário, os corvos prepararam um belo banquete para as pessoas desse mundo.
Pego um pão e encho um dos copos para mim, Gainiri fica só me observando enquanto pego a comida e sigo para um dos bancos me sentando.
— Não vai comer?
— Não, prefiro esperar pelo almoço, por sinal já sabe onde vai comer?
Como era de se imaginar… Ela busca entrelaçar ainda mais seus laços comigo, mas…
— Fui chamado por uma velha amiga para sair.
Arranco um pedaço de pão, com meus dentes, o umedecendo com água em sequencia.
— Posso saber aonde vocês vão?
— Sei lá, ela que vai preparar tudo, eu aceitei o convite mais para conversarmos sobre os últimos anos.
Não é um grande motivo, mas deve servir para ela não me seguir, não posso perder esse contato que tenho, afinal, não conheço muitas pessoas dentro dessa instituição, além dela possuir algo que eu desejo.
— Tudo bem… Não irei mais te incomodar. — Gainiri começa a se levantar aos poucos, para ir embora.
— Se quiser, podemos nos encontrar amanhã para uma sessão de estudos, apesar de ter tido ótimos instrutores, não tenho certeza que saberei tudo que é necessário para acompanhar os demais.
— Certo! Nos vemos amanhã então! — E junto de um sorriso ela sai saltitando.
— Não está causando nenhum problema para ela, certo? — Sainersh se aproxima da mesa com um pão e um copo.
— Ela é só uma conhecida que vai me ajudar nos estudos. — Falo antes de abocanhar mais um pedaço do pão.
— Poderia ter pedido para mim, afinal eu que sou a sua responsável!
— Não precisa ficar com ciúmes, afinal eu não sinto nada por ela, assim como não sinto nada por você. — Falo indiferente da situação.
— Eu também não sinto nada por você! — Diferente dela que volta com raiva. — Eu sou apenas a sua responsável, e desde que você não me cause problemas pode sair com quem quiser!
— Pensei que isso já estava prescrito, mas tudo bem. — Coloco o ultimo pedaço em minha boca e levanto-me. — Vou indo, afinal tenho um encontro para ir.
— Um encontro! — Ela me para com um grito, que todos na cantina escutam. — Você está aqui há um dia, e já está me causando problemas?!
— Pode relaxar, é só uma amiga de infância, e nossas famílias já autorizaram caso queiramos ter alguma relação.
— Se os seus pais autorizam esse relacionamento impuro, não sou quem irá lhe impedir… — Ela abaixa o tom de sua voz e fala de maneira mais contida.
Sigo os meus paços desejando deixar Sainersh para trás, apesar das mentiras deixadas junto dela, e de seu pão amanhecido.
As horas passam e eu fico a espera embaixo da sombra de uma das poucas arvores do campus, observando os demais alunos treinando as suas técnicas, mas…
— Eles nunca venceriam uma batalha real, não… Uma guerra. Então porque os corvos se esconderam aqui?
Após algumas horas refletindo deitado aos pés de uma arvora, utilizando o gramado verde como colchão, levanto-me e sigo até os portões onde vejo uma jovem garota, com um longo vestido rosa cheio de babados, desde a sua cintura, me encarando fixamente.
— Você demorou querido! — Estando a poucos metros dela, ela corre e se agarra em meu braço direito.
— Evelyn, não precisa de todo esse exagero.
Diferente das outras vezes em que havia me encontrado com ela, hoje ela aparentava estar mais animada, mais viva.
— Não seja bobo, não nos vemos há anos! — Ela sorri desconfortavelmente, seu olho direito tremia mostrando parte de sua raiva.
— Me desculpe por atrasar tanto tempo para lhe ver.
— Vamos indo, te levarei em uma ótima taberna da região.
Com ela ainda se prendendo infantilmente em meu braço direito seguimos caminhando cidade adentro. Os cidadãos iam e vinham, passando por nós tomando o devido cuidado para não esbarrarem, e derrubarem alguém no processo.
— Você deveria conter as suas mentiras. — Evelyn fala com seu tom frio, próxima ao meu ouvido.
— Eu sei… Tenho mentido muito para manter o disfarce, mas acho que tenho exagerado em algumas.
— Saiba que a Catrina não gostou de receber a sua resposta através de uma carta. — Ela segue mudando de assunto, ignorando minhas desculpas.
— Não tive muita opção, eu ainda não era eu.
— Então é verdade, você recobrou as memórias.
— Em partes, ao tocar em um antigo cubo pude ver varias de minhas vidas passadas, sei que não sou apenas um humano mais.
— Mesmo assim, você deveria ir falar com ela.
— Não, acho melhor ela me esquecer, e seguir com a sua vida, só assim ela poderá ser feliz.
— Eu concordo, mas a sociedade não funciona desta maneira, ela talvez nunca te perdoe.
— Não preciso do perdão dela para seguir a minha estrada.
— Vejo que nada do que eu diga vá mudar sua decisão, tudo bem… Mudando de assunto, eu acho que você deve saber o que eu estou fazendo aqui, no reino inimigo.
— Sim, me diga também tudo o que você sabe sobre os reinos.
— A história entre os dois reinos é longa, mas em um resumo rápido, as duas princesas Catrina e Sainersh se encontram em uma grande briga desde a época dos antigos reis.
Sainersh é a princesa desse reino, então é fato, estou sendo observado de perto pelos corvos, eu tenho que retornar o mais rápido possível.
— Os verdadeiros reis eram irmãos que dividiram o reino após a morte de seu pai, os reinos viviam em harmonia no começo, mas por alguma razão o pai da Catrina iniciou uma guerra, que se estende até os dias de hoje.
— Entendo…
— E por isso eu estou aqui, não consegui ir muito afundo, mas acredito que estão criando demônios a partir dos corpos dos melhores estudantes.
— Demônios?
— Sim… Querido, chegamos! — E após uma longa, fria e silenciosa conversa, chegamos ao local destinado e eu sou recepcionado por uma voz animada e calorosa.
Entramos no estabelecimento e pedimos pedaços de porco assados com mel, que não leva muito tempo para ser trazido.
— Mas e você? O que tem feito? — Ela me pergunta enfiando um pedaço do porco em sua boca com as mãos.
— Nada de mais, até agora só caminhei e me conheci mais, ou seja, obtive respostas sobre quem sou.
O lugar era bem movimentado, tendo até um bardo tocando um alaúde em um palco improvisado, enquanto os fregueses comiam, bebiam e conversavam.
— O que você planeja fazer agora?
— Apenas encerrar com essa guerra, é provável que eu seja mandado para outro mundo nesse meio tempo, mas não deixarei mais mortes ocorrerem em vão.
— Que guerra?
— Paciência… Esquece o que eu disse. — Parece que meus irmãos não desejam colocar as pessoas inocentes em uma batalha que não pertence a elas.
— De qualquer forma tem algo que eu gostaria que você fizesse para mim, talvez isso até te ajude em sua jornada.
— Para alguém que tentou me matar mais cedo, você está ousada.
— Eu não tentei te matar, como eu disse só queria ter certeza que era você, bom, de qualquer forma, tem um pingente que me pertence e eu gostaria que você o pegasse para mim.
— E o que eu recebo em troca?
— Informação.
— Justo, onde o alvo se encontra?
— Existe uma mansão na rua principal que realiza exposições para os nobres locais, eles possuem uma grande coleção de relíquias das antigas famílias da nobreza e heróis do passado.
— E o seu pingente está entre eles?
— Exatamente, eu o perdi há muito tempo, e seria de grande ajuda se você recuperar ele.
— Você me da o que eu desejo em troca de eu dar o que você quer, nada mais justo.
Terminamos de comer, ela paga a conta e seguimos para o campus em silencio, eu teria muito trabalho durante a noite.
Nos grandes portões da instituição nos separamos combinando de nos reencontramos durante o período de estudos, abaixo de uma famosa arvore do campus.
Uma relíquia perdida há muito tempo, e era meu dever recupera-la essa noite. Invadir residências privadas e roubar itens preciosos delas, parece que voltei aos meus dias de gloria até.
Vou até a pequena biblioteca do campus e fico estudando até o anoitecer. Era impressionante o conteúdo que eles possuíam em suas mãos, mas sem poder fazer nada.
Famosos pesquisadores como Aristóteles e Hundo, mais conhecidos por influenciarem mundos de nível dois e serem os precursores das viagens entre mundos através de fendas.
Após a lua subir ao céu, sigo com cuidado evitando alunos e guardas, até estar a uma distancia segura do campus, entro em um beco e ativo o quarto circulo em minhas costas, mudando a minha aparência para um homem de meia idade com barba por fazer, e corpo esguio.
— Isso será perfeito.
Ainda com o uniforme do colégio, caminho pelas ruas pouco movimentadas, até chegar à rua principal, eu calculo rapidamente e percebo que existem cerca de cinco soldados rondando o local.
Caminho silenciosamente evitando as luzes dos lampiões até chegar à porta da mansão, que havia sido trancada por dentro.
Caminho pela lateral direita procurando outra entrada possível, e para a minha sorte uma das janelas havia sido deixada aberta, entro calmamente no local que aparentava ser a cozinha.
O fogo da lareira havia sido recentemente apagado, deixando as brasas ainda queimando no local, calmamente eu caminho até a porta de madeira a movendo silenciosamente para que não rangesse.
Caminho pelos escuros corredores, com o segundo circulo em minhas costas ativo, para que assim eu pudesse ver como o dia.
— Se eu fosse um pingente onde eu estaria?
Sigo para a entrada principal, pensando em como o “museu” teria sido montado, sabendo que normalmente no andar superior ficavam os quartos, e do lado direito possuía a cozinha, logo e salão de jantar, então provavelmente eles montaria a estrutura a esquerda, onde ficaria o salão de festas.
Seguindo os meus instintos, vou até a porta que levava até a sala do lado, e de fato, era um grande salão com alguns armários feitos de carvalho recheados com espadas, mascaras, pratarias entre outros itens de valor.
— Aqui está você…
Em um dos armários, um belo pingente se encontrava recostado a uma almofada feita, provavelmente de nylon.
Movo a porta de vidro, o suficiente para pegar, na terceira prateleira, o pingente que havia vindo atrás.
— Achei fácil…
— Ei você! — Um dos soldados que realizava a ronda aponta a fraca luz vinda da vela de seu lampião na minha direção.
Dentro do salão tinha eu o soldado, e muitas prateleiras que poderiam facilmente serem quebradas.
— Acho que superestimei vocês.
Olho os arredores em busca de um ponto de fuga, mas não existia essa possibilidade, eu teria de lutar.
No mesmo armário onde eu havia pego o pingente, tinha uma rapieira, com o desenho de espinheiro com fortes detalhes em dourado ao longo de seu corpo, e em seu cabo desenhos de rosas mergulhadas em ouro.
Pego a espada e corro na direção do soldado, que prepara a sua espada curta para defletir o golpe, mas ao me aproximar o suficiente passo a afiada ponta da arma na garganta do homem, que acreditou tolamente, que eu o atacaria no peito para perfurar seu coração.
Soltando do lampião que se parte no chão, apagando a sua chama, e da espada o homem leva suas mãos para a garganta se afogando no próprio sangue que já sujava as minhas botas.
Eu não teria muito tempo até que os demais soldados se aproximassem, por isso abri uma das janelas e parti por um beco próximo, agora com o pingente e uma rapieira em mãos.
Volto para o meu quarto no campus, após retornar para a aparência de “Marshow”, a Kashisujo não se encontrava no momento, mas como já estava tarde, limpo o sangue da espada a colocando em um dos cantos do quarto.
Retiro minha roupa, e coloco a calça que uso normalmente para dormir, caminho lentamente até a cama, onde me deito e cubro-me, com o fino cobertor de nylon.
Agora com o pingente da Evelyn em mãos eu poderia extrair mais informações dela, afinal ela soube que eu estava aqui, não posso deixar mais informações vazarem…